terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Kafka, a carta ao pai.

 Teria Franz Kafka ( Praga, 1883- Kierling Áustria, 1924) escrito Metamorfose, O Processo, O Castelo se suas experiências na infância não tivessem a marca da tirania paterna?




É possível especular que sim como ele deixou evidente em Carta ao Pai, escrita aos 36 anos. Foi publicada postumamente e nunca enviada ao pai. Aliás, seu desejo foi o de que toda sua obra fosse destruída após sua morte. A carta revela o sofrimento, a humilhação, o desprezo paternos. Exemplos, como o da aula de natação, o contraste do corpo opulento e forte do pai com o corpo franzino do filho; o pedido de um copo de água à noite recusado e o castigo, ficar ao relento em um puxado fora de casa; à mesa era obrigatório comer rápido, sem sujar o chão, enquanto debaixo da cadeira paterna havia migalhas, e ele ficava à vontade para cortar a unha, apontar lápis e cutucar o ouvido. 

Esse tratamento lhe serviu como modelo para avaliar o mundo e o próprio pai: um mundo com escravos que cumprem ordens; o mundo do pai alimentado com ódio dos que não o seguem; e um mundo dos felizes, livres de comando e obediência.

A proibição de falar, a acusação de ser fraco, desajeitado, tratado com insultos, com ironia, risos maldosos, ameaças, o fizerem perder a autoconfiança. As comparações eram frequentes, com ele, pai, que trabalhou desde muito jovem, que privilegiava os negócios, que tinha talento para vendas, ao passo que o filho era inepto, suas "altas" ideias (ou seja, os escritos de Franz) não serviam para os negócios. Uma de suas publicações foi mostrada ao Pai, que a largou na mesa de cabeceira. Nos escritos lamentava o que não podia lamentar junto ao Pai.

A mãe entre o marido e os filhos, tinha uma posição penosa. A tirania paterna perdurou em todas suas realizações, escreveu ele na Carta. A consciência culpada foi carregada na vida adulta. Nenhum consolo com a religião judaica, que Franz valorizava e para o pai importava apenas a fachada.

Outro desastre foram as tentativas de noivar e casar. Nenhum respeito pelas suas escolhas. Por que não se casou? Obstáculos que pertencem à vida, escreveu ele, a pressão do medo, da fraqueza, da falta de consideração para consigo, além de o casamento dos pais não servir como melhor exemplo. Como seria casar e viver sob a sensação de perigo?

 Com Dora Dymant, sua amante, um consolo nos dois últimos anos de vida.

 

Tudo o que para o Pai seria sem culpa, para ele uma culpa semelhante a viver dentro de um caixão funerário. Uma incapacidade para a vida que Franz a tomou como responsabilidade sua, inclusive o fato de ter permanecido solteiro. Se casasse estaria sujeito às permanentes acusações paternas de desonestidade, acomodação e parasitismo.

Ao final da Carta afirmou que chegar tão próximo à verdade pode acalmar e tornar vida e morte mais leves.

***

Sim, sua obra carrega a marca da tirania paterna, a vida como um interminável processo, até mesmo acordar e se descobrir uma barata

***

Há testemunhos de que o pai era benevolente, tratava bem a todos seus subordinados, e Franz teria exagerado na carta. Absurdo! Justamente os tiranos o são em casa, nunca com os de fora do círculo familiar. 

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Quando a fortaleza desaba

 Uma das virtudes, segundo Aristóteles, é a da fortaleza. Ser virtuoso hoje tem uma conotação de fraqueza, de ser certinho, até mesmo carola, e, quanto ao termo "fortaleza", o que vem à mente é a força física, músculos exercitados. 

No sentido ético, a fortaleza é uma virtude, quer dizer, um bom hábito, algo que se pratica, que se manifesta nas ações, e que, ao ser praticada torna as pessoas mais justas ou do contrário, injustas. Sempre mirando o meio termo, nem falta, nem excesso, é certa "disposição de caráter que torna alguém bom, e que o faz desempenhar bem a sua função" (Aristóteles), requer sabedoria, não a intelectual e sim a sabedoria prática.

A fortaleza é uma virtude das mais excelentes, tem a ver com a firmeza de caráter, de enfrentamento, de coragem para tomar decisões, mesmo nas situações mais difíceis. A fortaleza se diferencia de dois opostos, o lado fraco que é o medo, e o lado extremo que é a confiança desmedida, temeridade, audácia, algo comum em nossos dias, talvez possamos ainda incluir nesse excesso, o exibicionismo.

Esses seriam os aspectos morais dessa virtude, a fortaleza.

Há outro aspecto, quase invisível, a fortaleza representada pelo papel da mulher.

Fortalezas são planejadas e construídas para durar, para enfrentar o inimigo, para vencer, nunca para sucumbir.

Mas é possível que fortalezas desabem. 

Quando na cozinha não se sente mais o cheiro bom da comida, daquele macarrão com frango; quando o avental fica dependurado, sem uso; quando se ouve na casa apenas o ruído do relógio; quando na cadeira de balanço o corpo cansado se larga e o olhar perde a vivacidade; quando essa cadeira não mais conforta alguém; quando os passos ágeis se tornam lentos e pesados; quando as tarefas e afazeres cotidianos, antes executados mesmo inúmeros e incessantes, agora representam um fardo.


      O vazio

 O que houve? Desemparo, as paredes racharam, os alicerces ruíram. 

E esse é um lado na vida das mulheres, pouco ou quase nada considerado.

O outro lado é muito mais visível, mais cruel e muito bem conhecido. Vai além da perda de sentido ou da falta de reconhecimento. É o modo como as mulheres precisaram se submeter a um papel, ou são submetidas ao papel de coadjuvante, devem obedecer ao comando, ao "conheça seu lugar". Não são ouvidas e nem respeitadas, estão sob o jugo do autoritarismo.

A muitas dessas mulheres, a violência não deu a chance de construir ou reconstruir sua fortaleza.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Ser criança no Borundi

 Alguns dias atrás, em reportagem de TV5 Monde, o depoimento de uma mãe: a filha de cinco anos tinha sido violentada e morta. Enquanto isso, os demais filhos chafurdavam no lixo e na lama. No lixo em busca de algo aproveitável, comida inclusive.

A mãe olha para o repórter e diz que não possui nenhuma foto da menina para mostrar como ela era. Talvez no intuito de alguém saber quem e como era a garota e assim esperar algum resultado, uma denúncia. Ou talvez para lembrar dela, o que é duvidoso tendo em vista as condições de extrema pobreza, quando há outras prioridades, entre elas, sobreviver.

***

O Borundi é considerado o país mais pobre do mundo, a população é em sua maioria hútu, são 12,5 milhões de habitantes, em um território pequeno, encravado na parte central-sul da África, a oeste fica a nascente do rio Nilo. Ali se encontra o maior e mais profundo lago de água doce, com 16 % da água doce do mundo e que se estende por outros países. No Borundi é aproveitado para pesca, contudo perigosa dada a precariedade das embarcações e a ameaça de crocodilos.

A produção agrícola exportada é maior do que a produção para consumo, escassa, e carregada nas costas ou bicicletas para os mercados, quase que exclusivamente de cereais, frutas e verduras. Há fome generalizada, as casas são choupanas insalubres, as autoridades em especial policiais corruptos arrancam o que podem do pouco ganho, em média 10 dólares por mês. O desmatamento, a péssima qualidade da saúde pública em um território densamente povoado, contribuem para a miséria, mortalidade infantil e uma expectativa de vida de apenas 45 anos.

Uma das fontes dessas informações é um vídeo no You Tube, "Como é viver no país mais pobre do mundo". O entrevistador pergunta quantos filhos certa mulher tem, ela "acha" que são seis. Em outra choça dormem no chão oito pessoas, crianças morrem de repente, há tráfico de crianças para Uganda e dali para países árabes.

Apenas 13% têm acesso à internet. Daí o espanto e a indignação que produz a reportagem referida no início, sobre a mãe cuja filha foi estuprada e morta, e dela não há uma foto sequer, importa enfatizar isso.

***

Pois bem, o contraste, a abissal diferença com relação a outras culturas e sociedades, são espantosos.

Para ficar apenas no exemplo da ausência de imagens, diariamente, por motivos e situações desde a mais banais e corriqueiras, até os mais relevantes e impressionantes acontecimentos, as fotos, as imagens, os vídeos, invadem nosso dia a dia.

As crianças são clicadas o tempo todo, desde que nascem, durante todo seu desenvolvimento, suas transformações, tudo é captado por imagens. 

E daquela menina, nenhuma foto...

(Sem imagem para ilustrar esta postagem).

sábado, 25 de novembro de 2023

Filosofia e poesia - Heidegger e a poesia popular

O poder da palavra: sem ela não nos conectaríamos com o que há e também para dizer o que não há. Precisamos das palavras para expressar o que surge, o que brota e o que se vai e se esvai.

As coisas todas em seu ser convidam e permitem que delas se fale. Considere isso: quem delas fala, quem exprime os seres em seu vigor?

Isso se dá por nossa ação, nosso fazer e nossas técnicas que transformam o natural em instrumentos. Mas, para além da eficácia da técnica, há algo mais essencial, as palavras que fixam os seres, que lhes dão vida e sentido.

Há um lado, digamos, "interesseiro", raso, calculista. E há o lado essencial, o de nós, seres humanos que habitamos a casa de tudo o quanto existe, a casa do ser, como diz Heidegger. Qual é a casa do ser? A linguagem. Não linguagem no sentido lógico ou gramatical, e sim linguagem tanto no sentido cotidiano e habitual, como no sentido absoluto que é quando o dizer se torna poesia. A poesia é vasta, mágica, transforma o que não está ainda aí, traz à presença certa plenitude, um vigor.

O dizer poético não é aquele que chama atenção facilmente, literalmente, não atrai à primeira vista, nem é um vislumbre estético passageiro.

O dizer poético é uma experiência, uma harmonia que a força da palavra traduz, uma novidade, um caminho conduzido pela linguagem, uma vereda, um modo de ver, uma rara abertura para o ser. 

Encontrar a palavra disponível para apresentar o ser, é a isso que o poeta nos convida.

A canção popular, por vezes, atinge esse dizer mágico, traduz aquela abertura:

"É tão difícil olhar o mundo e ver

O que ainda existe

Pois sem você meu mundo é diferente

Minha alegria é triste"

(Erasmo e Roberto Carlos)

Como pode alegria ser triste?! Esse oxímoro ou paradoxo assume um novo sentido, não é paradoxal que a antiga alegria se tenha transformado em tristeza, e que atualmente seja uma triste alegria. Sob o olhar do poeta. 

"Deixe-me ir, preciso andar, vou por aí a procurar; rir pra não chorar ... 

Quero assistir ao sol nascer; ver as águas dos rios correr; ouvir os pássaros cantar; eu quero nascer; quero viver.



Cartola e tantos outros compositores traduzem, criam e transformam vivências e percepções: "eu quero nascer"...

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

A publicação de periódicos de ciências humanas e a moda intelectual

 Recentemente a revista "Percursos", da UDESC, que recebe contribuições na área de ciências humanas e de ciências sociais aplicadas, anunciou o seguinte tema para o seu dossiê:

"Perspectivas contracoloniais e ecologias antirracistas em tempos de catástrofes planetárias".

Essa chamada para o dossiê chamou minha atenção pelo título, do que se trata, é político, ecológico, denúncia de violência racial, é sobre aquecimento global? Enfim, provoca certa perplexidade e dúvida: qual é o rumo que toma o pensamento atual em ciências humanas e, por extensão a reflexão filosófica?

O termo "perspectivas" sugere que podem ser diversas e diferentes visões, pode-se seguir um caminho, mas outro caminho não seria problema.

O termo "contracoloniais" significa ser ou ir contra colônias, seriam as antigas colônias na África, Ásia, América do Sul? Ou seria um tipo de colonização do pensamento, um empecilho ao livre pensar?

Mas, em seguida aparece o termo ou conceito por demais sabido e esclarecido, "ecologias", o estranho é o plural, ecologias, que aparentemente não tem nada a ver com a ecologia da ou na natureza, como atenção ao meio ambiente, cuidado com o planeta, poluição, importância das florestas, a preservação da Amazônia, enfim, o que hoje em dia se entende quando se fala em ecologia. Seriam ecologias antirracistas...

Quando se menciona "raça", no caso acima "antirracistas" o peso e o significado social, econômico e histórico acende, ou melhor, incendeia o debate, as controvérsias e a atual situação de povos e etnias que sofrem ou sofreram preconceito, violência e discriminação, tudo isso é por demais evidente. 

O que intriga é relacionar colonialismo, proteção e cuidado com a natureza, ou seja, ecologias, com raça.

Seria um retorno às origens, penso no caso dos descendentes de africanos no Brasil, apontar caminhos para sua integração, para um antirracismo?

(Mencionar raça no atual momento da guerra Israel/Palestina faria sentido se "antirracismo" se referisse a uma política favorável aos judeus. Não é o caso porque na guerra ideológica eles são considerados povo "opressor").

A cada termo desse chamamento para o dossiê, a análise e a compreensão ficam mais complicadas.

E se mencionarmos raça ao lembrar da terrível perseguição, morte, castigos, enforcamento dos negros nos EUA até recentemente pela KKK? Seria essa denúncia um movimento antirracista?

Entretanto, fica ainda mais difícil seguir uma dessas vias teóricas, pois o título indica que se deve situá-las no tempo, que tempo é esse? O das "catástrofes planetárias". Quer dizer, derretimento da calota polar, secas, inundações, calor extremo, enfim, todas essas catástrofes seriam o pano de fundo histórico, social e econômico desses conceitos "contracoloniais", das "ecologias antirracistas"?!

A exigência de publicação de parte da academia paga seu preço, seja pela "obrigação" de seguir temas e conceitos da moda intelectual, pela irrelevância ou até mesmo pelo tempo gasto.

***

Escrever artigos para revistas acadêmicas é atividade séria de pesquisa, presume-se sua contribuição para um melhor entendimento e talvez perspectivas (sim) para esclarecer ideias, propostas, abrir caminhos, por meio de estudos com base na sociedade atual, detectar problemas, sua origem e possível solução.

Isso é possível, desejável e produtivo. 


 

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Guerras são sempre injustas?

 Joseph Conrad, escritor polonês que aos 23 anos passou a escrever em um primoroso inglês, disse em sua obra "Nostromo":

Em época alguma da história do mundo tiveram os homens qualquer dificuldade de infligir tormentos corporais e mentais aos seus semelhantes. Tal aptidão lhes veio da crescente complexidade de suas paixões e do precoce refinamento de sua engenhosidade (p. 333).

A obra é de 1909, a mensagem é atemporal.

O direito de defesa contra atos de terrorismo, como foi o caso de Israel contra o Hamas, tem despertado polêmicas que vão além da guerra. Posições à esquerda, à direita, paixões extremadas, discursos de chefes de Estado, de organizações, de associações humanitárias, reportagens com as cenas mais terríveis de tortura de um lado e de devastação e destruição de outro lado.

A guerra começou com atos de terrorismo, portanto, não se tratou de uma guerra "convencional", houve tempo, financiamento, treinamento, planejamento para infligir morte de civis, esconder reféns e contar com o fator surpresa. Surpresa não só para israelenses, também para os próprios dois milhões de habitantes da faixa de Gaza. 

A defesa de Israel precisa desmontar a capacidade assustadora de infiltração dos terroristas do Hamas entre os palestinos. A vida na Faixa de Gaza que já era difícil em tempos de "paz", pois havia absoluta necessidade de ajuda humanitária, a maioria pobres, sofre com os ataques de bombas e tanques, mas ela própria é uma população refém. Povo que precisa professar uma crença, que precisa se sujeitar a ver meninos instruídos para matar, para odiar, e sem opção, aceitar ser comandado de fora pelo Irã e pelo Hamas, cujos chefes moram luxuosamente no Catar. E ainda a questão territorial, uma fronteira de poucos quilômetros fechada com cercas aramadas. 

Sofrimento sem fim.

De seu lado, Israel precisa enfrentar organizações terroristas, defender suas fronteiras e se haver com a opinião pública ocidental. Nessa corrida de ratos em túneis, de detenção de reféns, de acusação de morticínio de crianças, Israel ficou do lado digamos assim, antipático, opressor, cruel, defendido pelo monstro do capitalismo mundial, os EUA.

Ora, guerras são sempre cruéis, se são ou não justas, não há como responder à pergunta do título.

Mas há que dar publicidade a certas tomadas de posição, no caso do Brasil, o presidente que faz declarações e acusações destemperadas, em aliança com a esquerda radical, antissemita, e claramente ignorante de fatos, de reportagens que mostram a situação mais de perto, mais próxima do que seja enfrentar o terrorismo islâmico.

Eles estão matando inocentes sem nenhum critério. Jogar bomba onde tem crianças, onde tem hospital, sob pretexto de que um terrorista está lá, não tem explicação. Primeiro vamos salvar as crianças e as mulheres e depois a gente faz a briga com quem quiser. (Lula, novembro de 2023)

Qual critério é preciso ter? Critério em guerra? Há sim terrorista dentro do maior hospital de Gaza, e em túneis. O Hamas usa civis como escudos! "Fazer a briga com quem quiser". O que é isso, presidente, isso são termos?!

terça-feira, 14 de novembro de 2023

"Investigações Filosóficas", 70 anos de sua publicação (última parte)

A segunda parte de Investigações Filosóficas se divide em 14 capítulos, o mais longo sobre o conceito de ver. Há uma desmontagem da noção de mente como contendo processos internos, puros. Wittgenstein prossegue com a tese dos jogos de linguagem, do comportamento e do que ocorre em situações diversas para mostrar que o pressuposto de estados mentais semelhantes entre si, que pertencem à consciência dos sujeitos, não se sustenta.

E ele questiona: como a consciência surgiu, como se aperfeiçoou, como as impressões dos sentidos formam como que quadros; como por meio da palavra, de movimentos e gestos do corpo, descrições são feitas; como "eu tenho medo" é suscetível de ser descrito? Em que ocasião e contexto pode ser dito? Estados mentais de medo, de crença podem ser afirmações, hipóteses, impressão dos sentidos, descrever algo para alguém, por sua vez, é outro processo, outro conceito. Crer falsamente é impossível. 

Quanto ao ver, entram diversas categorias, um vê isto outro vê aquilo, um vê detalhes que o outro não percebe, um compara, outro não. A fonte dessas capacidades pode interessar um psicólogo, mas ele, filósofo, se interessa pelos conceitos e seu lugar em nossas diversas experiências.

A figura de Jastrow do pato/lebre é um dos exemplos usados por Wittgenstein sobre a capacidade de ver aspectos de certas imagens externas, e não internas ou mentais. 



E para sustentar essa tese, ele recorre a vários casos, a vários exemplos: relatar uma experiência; exclamar "é uma lebre" ao ver de repente o animal saltar; ver algo como tal de longe, e ao se aproximar, descrever o visto; ver como côncavo ou convexo, achatado ou tridimensional. São sempre conceitos operando, fixando os inúmeros papéis das imagens em nossa vida.

Diferentes modos de ver.


A criança entra em uma caixa que diz ser sua casa, ela a "vê" como casa. Objetos podem se tornar isso ou aquilo, podemos ver semelhanças, podemos olhar e não ver. Certo aspecto de um objeto visto em um desenho é relacionado a outros objetos. Assim, ver é diverso pode ser uma interpretação, um estado, um pensar.

A diversidade e capacidade de usar palavras, de ver, de interpretar, repetir algo, são diferentes experiências que podem vir acompanhadas por gestos, caras, tons de voz.

Com isso Wittgenstein mostra que se trata de processos, e exemplifica com "eu sei" semelhante a "eu suponho", "tenho certeza", "me lembrei disso". Já dizer "eu sei o que eu estou pensando" soa estranho: Toda uma nuvem de filosofia condensada em uma gota de gramática (p. 189).

Nós permanecemos inconscientes da prodigiosa diversidade dos jogos de linguagem cotidianos porque a roupagem de nossa linguagem faz com que tudo fique parecido (p. 191).

O que nos é dado? Padrões, o que aceitamos, nossas formas de vida.

Pergunte, como você aprendeu? Alguém diz ter faro para algo, é um padrão. Mas fingir dor é padrão no tecido de nossas vidas?!

Uma criança precisa de muito aprendizado para fingir; um cão não pode ser hipócrita e nem sincero... Se um leão pudesse falar nós não o entenderíamos (p. 190).

Questões filosóficas são dissolvidas ao serem inseridas em nossas vidas, em nosso aprendizado, nos usos da linguagem. Libertar a mosca do vidro. Sem transcendência nem transcendental...

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

"Investigações Filosóficas", 70 anos de sua publicação (parte II)

 Wittgenstein se detém em investigar a sensação, a de dor especialmente, na qual é preciso haver critério de identidade, como traduzir, como descrever a sua experiência de dor. Os outros podem compreender as expressões normais de sensação. Por isso mesmo, não são expressões privadas, há que se usar palavras em certos jogos de linguagem. E ele pergunta, "vermelho" é só para certa pessoa? A mão tem dor ou eu tenho dor na mão? Expressar sensações requer critérios, reconhecer, capacidade de descrever a dor. Dores não se apresentam como imagens em um quadro.

Note-se aí uma crítica ao empirismo, há inúmeras funções e propósitos da linguagem, pensar sobre casas, dores, bem e mal ou tudo o quanto se quiser ou puder, não provém de percepção dos sentidos. O que não significa ser Wittgenstein um behaviorista, apenas que os processos mentais são reportados a usos normais, e não significa tampouco resolver o problema filosófico da sensação. O comportamento de dor é reconhecível, o grito pode expressar dor, e isso difere de uma sentença ser a expressão do pensamento.

E quanto a "pensamento"? Para o filósofo há muitos modos de expressão, de compreensão, atitudes que podem resultar em sucesso ou insucesso, modos de viver e de pensar, de justificar e isso tudo não fica englobado pelo "pensamento". A fala é o veículo do pensamento, mas é preciso saber em que situação e contexto se usa o termo "pensamento": pensar em uma canção, dizer algo em voz alta, ou só para si, lembrar de algo, contar algo, escrever uma carta, dificuldade para escolher palavras. Há intenção antes da expressão? Haver intenção está ligado a costumes e instituições, é preciso uma língua. Pensar algo pode ser visto como "incorpóreo"? Sim, se comparado a comer, por exemplo. Pensamento é algo estranho?! Mas não quando pensamos... 

Wittgenstein considera que pensar se assemelha usar um instrumento, ferramentas tal como se usa para calcular, para indicar, e sempre seguindo critérios de aplicação. Esses usos das palavras fazem dele um nominalista? Não, pois o erro do nominalismo é considerar que todas as palavras são nomes. A "vida" de um signo é seu uso. Uma seta indicar direção depende de um uso.

A lógica proposicional é desconstruída, pois a proposição é usada em casos como o de justificar, e a própria justificação vai até certo ponto, e só assim atinge seu objetivo. Inferir pertence aos contextos normais de fala, em que entram os propósitos, as ocasiões. Os conceitos têm usos diversos, não formam um capa a priori, eles são instrumentos que podem expressar interesse, direcionar a atenção. O processos interiores, mentais precisam seguir critérios que vêm de fora, que levam a tomar decisão, recuar, permanecer, seguir em frente.

Enfim, na parte I de Investigações Filosóficas as palavras chave não são mais sentença, relação pictórica com fatos e sim jogos de linguagem, situação normal de uso, contexto, seguir regras e a infinita diversidade de comportamento requerido por nossas formas de vida. 

 Wittgenstein com Francis Skinner em Cambridge

É a filosofia em plena horizontalidade, eis-nos, assim somos, agimos, falamos. Nada a respeito de noções metafísicas, éticas, políticas, e sim a imensa variedade de comportamentos linguísticos e não linguísticos. 

(parte final na próxima postagem)

sábado, 4 de novembro de 2023

"Investigações Filosóficas", 70 anos de sua publicação (parte I)

 A linguagem cotidiana é empregada para mostrar que é a própria linguagem cotidiana a base de sua filosofia. E nisso reside o caráter revolucionário de Investigações Filosóficas, que, após 70 anos de sua publicação, permanece importante e influente.

Há seminários e encontros que comemoram a data, grande parte comentários baseados em filósofos da área, especialmente na área da filosofia analítica.

Mas que tal reler e extrair da própria obra  a relevante contribuição de Wittgenstein? Escrita em parágrafos durante 16 anos, ela gira em torno do que ele chamou de "jogos de linguagem", diversos e com inúmeras aplicações. 

A questão das proposições, seu sentido e sua referência, central e crucial no Tractatus, foi revista, e diz ele no prefácio, à luz de Investigações Filosóficas


                  Aniversário de 50 anos de Investigações Filosóficas (alemão/inglês)

As situações por ele imaginadas são as de uso normal, milhares de casos, "imaginar uma linguagem significa imaginar uma forma de vida" (§ 19). Assim é possível desfazer confusões como a de que o nome não tem, como Frege propusera, aplicação lógica. O nome não é o batismo de um objeto, um processo especial chamado "referência". Os nomes são empregados na linguagem cotidiana, assim Wittgenstein rebate seu amigo Russell.

As proposições e sua verdade/falsidade não são o núcleo da linguagem, e as regras indicam direções para o uso, sempre em certas circunstâncias, adequadas para a compreensão. Dúvidas devem fazer sentido, assim como a exatidão, e analisar proposições e sua mágica relação com os fatos, de que deve haver uma ordem a priori no mundo, essas dificuldades apresentadas pelos filósofos devem ser dissolvidas por meio do uso normal. Lançar para fora os óculos da pura representação, e mostrar que usamos comparações. 

O uso de afirmações que apresentam tal ou tal situação serve como um tipo de medida, seu uso prático esclarece mal entendidos, e assim a linguagem não fica girando em falso. A exigência formal de valor de verdade faz sentido quando se usam expressões para saber do que se trata, acerca de quem, do quê, em que circunstâncias...

Aprendemos, seguimos regras, e do uso correto de frases, surge a compreensão, sendo ela própria fonte do uso correto. Aprendemos por meio de diferenças gramaticais em cada ato como entender, saber, ler, ler com atenção. A capacidade de aprendizado pode ser bem sucedida ou não, e a compreensão é igualmente uma  capacidade fonte de uso correto. As diferenças gramaticais são aprendidas, não se trata de puro processo mental. Uma máquina de leitura não é capaz de uma mudança de comportamento que a frase, "já sei ler", por exemplo, implica. Apenas nós o fazemos em circunstâncias normais de aprendizado.

Assim, para Wittgenstein experiências, vivências, familiaridade com processos como ler, adivinhar, resolver quebra-cabeças, em todos há uso de critérios, o domínio de técnicas. E isso implica em total renovação da filosofia, questões como a da identidade do ser, essencial para a metafísica, é tão somente um processo de justificação, acertar com as regularidades que pertencem às nossas formas de vida.

(continua na próxima postagem)


quarta-feira, 25 de outubro de 2023

A magia da memória

 Evocar as diversas e incontáveis imagens que nossa memória armazena, é reviver alegrias, dores, sensações, experiências, algumas importantes, cruciais para nossa vida, outras irrelevantes mas, ainda assim, interessantes e curiosas.

 A enormidade de experiências e de vivências que são depositadas na memória podem ser elencadas, evocadas e nos alegrar, nos estimular, nos surpreender. Todo esse, digamos, arsenal, integra o que somos, nossa pessoa, nossos sentimentos, adesões e rejeições, algo vem à tona, algo fica retido e requer um estímulo, uma associação, uma ligação com o passado para ressurgir.

A casa, um quarto, a escola, a mala em que iam os cadernos, o uniforme, o sapato; as festas de aniversário, o natal, o ninho com chocolate da páscoa; as casas dos vizinhos, a casa dos parentes, o quintal dos avós; o carro da família, as viagens e passeios; cenas de filmes e impressões de leituras afloram, aqui e ali muitas vezes nem mais suspeitávamos de sua permanência dormente na memória. E, certamente, as brincadeiras. 



A evocação acontece com associações, em conversas, nos sonhos, com o modo de reagir a certa ocorrência, com estímulos visuais, auditivos, cheiros e gostos. Eles ressurgem como se fossem fotos que remetem a fatos, podem surpreender ou decepcionar, pois a rememoração pode vir carregada de emoções como as de alegria, de tristeza, de pesar, de arrependimento, de consolo.

A memória pode confirmar as inumeráveis vivências, mas pode igualmente confundir, florear, enganar, substituir, desprezar, fantasiar. Ora, essas atitudes de proteção são parte essencial dos truques e artimanhas da memória. São nossos desejos, medos, fraquezas que colocam uma tela, que pintam um quadro, digamos, aceitável. Entender, tolerar, reconhecer, são meios de evitar o esfacelamento, as quebras, os rompimentos. Por vezes sem volta.

Ainda assim, a memória consola. Mas pode ficar obscurecida, sensações e experiências apagadas, socadas, camufladas, escondidas, e de quem?! Da própria pessoa, acabam por fazer parte de sua vida, mas sem integração com essa vida, sem correspondência com o passado. 

A vivacidade e a multiplicidade do tecido da memória permite que se vá do presente ao passado e o passado fique integrado ao presente. A isso poderíamos chamar de vida completa.

A perda da memória, neste sentido, é a perda dessa vida completa.

***

Chego aos campos e vastos palácios da memória onde estão tesouros de inumeráveis imagens trazidas por percepções de toda espécie. Aí está também escondido tudo o que pensamos, quer aumentado quer diminuído (...). Enfim, jaz aí tudo o que se lhes entregou e depositou, se é que o esquecimento ainda o não absorveu e sepultou. Santo Agostinho, Confissões, livro X, § 8.

domingo, 15 de outubro de 2023

Os impasses da guerra no Oriente Médio

 O rumo inesperado que os ataques do Hamas sobre território israelense tomou durante a semana (de 07 de outubro ao dia em que escrevo, 15 de outubro 2023), se agrava a cada dia. Tomar partido parece que se tornou a única obrigação, e análises minimamente coerentes, com visão histórica e de conjuntura se perdem em meio a controvérsias, exige-se tomar partido, condena-se um ou outro lado, sem considerar o que está em jogo.

E o que está em jogo? A soberania de dois povos, o direito ao território, o direito à vida, o direito a instituições legítimas, ao governo próprio, a sua autodeterminação.

Na guerra de Israel contra o Hamas, surgem impasses, parece que estamos num beco sem saída, difícil sair de um estado de dúvida diante de tantos fatores a serem considerados. Que lado tomar?



É possível considerar dois tipos de adesão: a participação às claras, com responsabilidade pelo que é afirmado e passível de comprovação. E o engajamento cego que obriga a tomar partido, sem examinar razões e fatos.

O modo digamos, "participativo" é guiado por argumentos, as decisões são guiadas pelas consequências que tanto podem ser positivas como prejudiciais. Há abertura para críticas, capacidade de revisão diante de novos acontecimentos, busca permanente por esclarecimento, e, em especial, ver e de entender o que está em jogo, o outro lado da moeda. Aceitar quando evidências mostram que você pode estar errado. 

O modo "engajamento" visa tomar partido e execrar o outro lado, agir e decidir achando que você  está sempre certo, mesmo diante de evidências em contrário. O objetivo dos engajados é convencer, eliminar o adversário, obstinar-se com sua particular doutrina e visão de mundo, impedir a circulação de ideias, ver o mundo através de um véu que obscurece a realidade.

Há o estado de Israel, reconhecido, pelo qual judeus ao redor do mundo lutaram, que foi legitimado e cujas fronteiras foram estabelecidas. Ora, tais fronteiras sofreram e sofrem ameaça, precisaram ser defendidas e, em nome dessa defesa, expandidas. A que custo?

Há o povo e um estado palestino que precisa de um território, de governo legítimo, de reconhecimento, de fronteiras, exatamente e tanto quanto Israel.

E, finalmente, há uma governança mundial fraca, sem poder de atuar, hesitante chamada ONU. O poder real é o de países democráticos, que deveriam olhar para os dois lados, não de forma engajada com bandeiras ideológicas, e sim de forma participativa. E nisso encontra a barreira de países muçulmanos radicais, que sustentam o terrorismo, que treinam e armam milícias como o Hamas. 

Esses são os impasses. Indiscutível a defesa  de Israel dos ataques do Hamas e seus fanáticos, o pior e mais extremo exemplo de engajados, a ponto de impedirem que os próprios palestinos se desloquem e possam se salvar. Se isso não é terror, o que então é terror?

O neoliberalismo segundo Foucault

O modo de Foucault abordar o neoliberalismo surpreende, difere da maioria das críticas, e sugere um impasse. 

As críticas martelam na mesma tecla, condenação a priori, sem um exame mais sério da história política e econômica do Ocidente desde fins do século 19. A base teórica dessas críticas é o marxismo e sua doutrinação, especialmente em universidades, talvez mais do que por meio de partidos políticos. Para esses setores da sempre vigilante "intelligentsia", os países capitalistas, (China inclusive?) exploram, concentram a riqueza nas mãos dos poderosos, dos bancos e instituições financeiras que operam em seu próprio interesse, e oprimem os países pobres, o terceiro mundo, que se endivida, empobrece, estende as mãos e recebe migalhas. Fora FMI, Wall Street, abaixo o neoliberalismo e o capitalismo opressor "estadunidense".




Pois bem, a análise de Foucault não se baseia em ideologia. E Foucault não é e nunca foi adepto de socialismo ou comunismo (ver postagem neste blog).

A pergunta, como é possível analisar o neoliberalismo fora dos quadros teóricos do marxismo, que pregam socialismo/comunismo? Em aulas no Collège de France, nos cursos sobre governo e governabilidade, Foucault apresenta sob a forma de uma história do pensamento, algo diverso. Não de um ponto de vista político, sociológico e nem como uma teoria econômica que apenas reativa o liberalismo clássico. Diferentemente da crítica de teor marxista, sua análise não parte do pressuposto de que a sociedade de mercado seria uma forma insidiosa de capitalismo. Na leitura de Foucault, o neoliberalismo refere e projeta sobre uma arte de governar os princípios de uma economia de mercado, não pelo “laissez-faire” e sim pela vigilância, por uma atividade de permanente concorrência entre monopólios, o que requer uma política ativa. O governo intervém para regular, mas quem dá as regras é o mercado, no sentido de aumentar a produção e o lucro, de estabilizar os preços. O desemprego fica contornável com atividades mais rentáveis.

A política social equilibra os efeitos da desigualdade, com o surgimento da medicina coletiva e serviços que a melhoria na economia possibilita transferir para esses benefícios sociais. A desigualdade afeta a todos, e a única e verdadeira política social é o crescimento econômico. Não mais o homem da troca, e sim o empreendedor, não é a mercadoria que está em jogo, como pensara Marx e sim uma ética social de empresa, cuja forma se estende à cidade e à família. O sistema jurídico se adapta a esse crescimento e diferenciação das empresas.

O capitalismo tem papel político, as leis de mercado são amparadas e regulamentadas juridicamente com medidas “corretivas e inovações institucionais que permitirão instaurar, enfim, uma ordem social economicamente regrada sobre a economia de mercado" ao aplicar as regras de um Estado de direito, diz Foucault.

Não mais a soberania de um rei, nem Estado coercitivo e policialesco. O pressuposto do neoliberalismo são instituições concretas e públicas, tribunais administrativos que introduzem uma legislação formal no capitalismo. Isso é decisivo para haver crescimento, investimento, ações corretivas. Ao Estado de direito cabe fornecer as regras que garantem o jogo entre as empresas. A justiça se torna presente como mais um serviço público para dirimir conflitos.

Essa é a governabilidade moderna, seus mecanismos são os de mercado, empresariais. Assim, socialismo e com mais razão, comunismo, são regimes ingovernáveis, é que governar exige atualmente  regras institucionais regidas pela economia tal como descrita acima. Daí o impasse, impossível fugir das regras de tipo empresarial. As palavras de ordem da esquerda marxista contra o neoliberalismo, nem de longe o atingem. Falta-lhes visão histórica.

sábado, 30 de setembro de 2023

O ordinário e o extraordinário

 Somos cercados e acompanhados por situações banais, simples, cotidianas. E de tão simples e ordinárias que não damos a menor atenção a elas. São coisas e detalhes percebidos apenas quando nos perturbam, quando se tornam obstáculos na lida diária, nas atividades programadas, no horário apertado, no afazeres do dia a dia, no movimento que segue etapas previstas. 

O imprevisto atrapalha, pois precisamos de segurança, gostaríamos, inclusive, de poder prever acontecimentos, como não podemos, nos angustiamos. E, mesmo assim, prosseguimos.

Parar e observar, fazer parte de algo comum, ordinário, e ali se deter por algum momento, e deixar que o tempo, que a presença dele faça com que nos voltemos para o comum, para o banal. "Como eu não havia visto isso antes?" O espanto, a surpresa, a admiração quando o olhar se detém naquela paisagem, naquele rosto, naquele gesto.

São os meios simples e ordinários que nos levam ao extraordinário. O rio flui, leva, a correnteza esconde o leito, a profundidade é apenas adivinhada. Acompanhamos a superfície, o extraordinário é entender o caminho dele, a fluidez, e levar a metáfora da passagem do rio para o movimento de todos os seres. "Tudo flui, aos que entram nos mesmos rios, outras e outras águas afluem" (Heráclito).

A semente, a terra, o broto, a árvore, o fruto, o ordinário que se transforma em extraordinário, eis que no fruto há de novo semente. Essas reflexões se perdem no ato de comprar, no ato de comer. Seria preciso recuperá-las no ato de usufruir.

A natureza, tão simples, vira coisa a ser medida, disputada, esmiuçada do alto, alvo de políticas conservacionistas, de protesto de ambientalistas, esgarçada e explorada. 

Para o filósofo, que busca pensamentos que estão em paz (Wittgenstein), basta abrigar o inusitado, o extraordinário que é isso ser assim nos momentos absolutamente banais, nos quais há ser, e junto aos seres o sentimento, a sensação de enxergar o extraordinário no ordinário, poder ver e existir nestes momentos, próprios, únicos. 

A arte com seus múltiplos meios e facetas realiza isso, transforma o ordinário em extraordinário. A paisagem banal se reconfigura por meio da imagem capturada. 

Foto Gaio, Lapa- Paraná


sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Janja na Times Square, uma consideração metafísica.

 A viagem de Lula aos EUA ainda repercute, os encontros, as falas vazias que não têm nenhum compromisso com a verdade. Mas é sua esposa quem ofusca tudo isso, e brilha de outro modo, com danças, sorrisos, e zero de discrição. Lembram da Dona Ruth, esposa de Fernando Henrique? O oposto!

Mas vamos lá, consideração metafísica?

Quando os recursos ideológicos e políticos tornam as atitudes de Janja polêmicas, e para muitos fiéis petistas são atitudes incompreensíveis, resta uma análise metafísica.

Heidegger afirma que nossas experiências metafísicas, quer dizer, a respeito de fundamentos para simplesmente existirem seres, o Ser em geral, nunca alcançam o fundo, o fundamento. Nossas experiências metafísicas são abissais. Sem causa última, sem porto seguro e definitivo.

Isso nos leva a pensar, de onde vem, então, nossa segurança, nosso desejo de solo firme, de definição?

Isso se deve ao caráter das nossas vivências, todas elas particulares, idiossincráticas, próprias de cada um.

Nunca estamos seguros quanto a não precisar interromper nossas experiências, elas mudam e nos transformam o tempo todo, só a morte as interrompe.

O modo extremamente individual de cada um experimentar o que viveu, toda sorte de acontecimentos, de situações as mais diversas na infância, depois no enfrentamento das dificuldades e obstáculos da vida, são absolutamente pessoais, intransferíveis. Mesmo no caso de questionamentos, "por que você agiu assim?", feita por familiares, amigos, psicólogos, ou simplesmente pela própria pessoa buscando se compreender, é sempre o que se sentiu, como se sentiu, algo do abissal vem à tona, enquanto muito fica no fundo sem fim.

Pode ser a mais miserável, pobre, sofredora, ou a mais rica, bem-sucedida, famosa e influente, como hoje a mídia se refere aos atuais poderosos..., é sempre uma experiência pessoal, absolutamente individual.





O Brasil patrocinado pelo Banco do Brasil é só floresta, dança indígena, cantoria. Algo na experiência atual de Janja ressoa um desejo, não de justiça social, e sim de poder, daquele poder que o fausto e as cerimônias ensejam. Festas sem fim.

domingo, 17 de setembro de 2023

Causalidade e determinismo

 O conceito filosófico de causa se deve aos primeiros filósofos, justamente em sua busca de uma razão para tudo o que há. A noção filosófica de que tem de haver um princípio único que dê origem a todas as coisas se relaciona com a ideia de que tudo se conecta, de que não há acontecimentos independentes, aleatórios, inexplicáveis. Uma corrente causal se estende a todos os seres. 

Esse desejo de unidade e de clareza, de decifração e de explicação se deve à própria natureza da ação humana: o que se faz, o que não se faz, o que se intenciona, o que se pretende evitar, o que alcançar, e isso tanto na menor e mais simples das atitudes, como na mais complexa e plena de consequências. Para caçar, assar e comer a presa, para pescar, para construir uma ponte, para ultrapassar obstáculos, a humanidade precisou usar da causalidade, precisou entender e respeitar fenômenos da natureza, precisou construir abrigos proteger seus filhos, precisou lutar contra inimigos.

Em tudo isso funciona a noção de causa e efeito.

Por detrás do conceito de causalidade vige um pressuposto, o do determinismo. O único filósofo pré-socrático que recusou o determinismo foi Anaximandro. Para ele tudo foi gerado por um princípio indeterminado, ilimitado. Mas, essa causa primeira produziu tudo o que há no cosmos, quer dizer, seres determinados, específicos. 

Seria um mundo incompreensível se houvesse a pura e simples indeterminação.



A Física pressupõe modelos, não há uma única teoria para explicar a constituição atômica da matéria.

Por outro lado, o determinismo radical  pressupõe que se um estado de coisa fosse conhecido e inteiramente decifrado, todo o restante seria previsível. Esse determinismo ignora a necessária abertura para o desconhecido, para o imprevisível, para o inédito. Inclusive significa que a ação humana seria como que guiada por fios tais como os barbantes de um teatro de fantoches.

Por mais que a ciência encontre e comprove causas e leis acerca dos fenômenos naturais, novos e imprevisíveis acontecimentos surgem, provocam nova cadeia causal.

Não conhecemos tudo do passado e nem podemos prever que o futuro será desastroso ou glorioso. O que não quer dizer, mais uma vez, que o indeterminismo prevaleça. Temos suficientes certezas para não sermos engolidos pelo abismo. E que o inevitável um dia acontecerá...


terça-feira, 5 de setembro de 2023

O eterno e o telescópio James Webb

 Nosso tempo é vivido, mensurado, inescapável. Nascemos, vivemos e morreremos, impossível sair dessa condição. Só podemos nos expressar, nos comunicar em certa língua, gestos, sempre no nosso tempo, no nosso cotidiano, nas nossas vivências.

Se nos fosse dada uma linguagem em que pudéssemos falar num tempo eterno, ela não faria sentido algum. Usamos para nos referirmos frases no tempo passado (já era), no tempo presente (aqui e agora) e num tempo futuro (que ainda virá). E isso pressupõe sucessões, mudanças, movimentos que iniciaram e que vão cessar. 

Há eterno no homem? Em que sentido? Em nossa crença em Deus? Em nosso desejo profundo de nos eternizarmos, seja com nossos descendentes, seja com obras de arte, seja com a procura por nossas origens no planeta? Mas, só é possível buscar, descobrir, revelar acerca de certo período num tempo histórico, o da história humana

Até mesmo na ficção científica, com expedições a outros planetas, seres intergalácticos, naves estratosféricas, e tudo o mais que a imaginação e a criatividade são capazes de elaborar, somente são inteligíveis e comunicáveis porque dentro de um quadro de referência a estados temporais e sucessão de fatos, que são narrados, quer dizer, num tempo, que, evidentemente não é eterno.

Um dos mais poderosos instrumentos criados para especular sobre o espaço (e o tempo?) é o telescópio James Webb, resultado de uma sofisticada tecnologia que foi aprimorada por numerosos engenheiros, cuja montagem passou por testes, com risco enorme, mas calculado, de insucesso.

Lançado com êxito, temos imagens do passado de milhões de anos que chegam até o presente. Essas imagens são reelaboradas, são analisadas. Diante delas o mistério é simultaneamente velado e desvelado. São imagens belas, admiráveis e que provocam ainda mais especulações. Até mesmo a de captarem algo inédito e surpreendente. 




Enfim, nem o telescópio revela a eternidade, pois as imagens captadas se mostram, são de algo que está lá. 

A questão é, sempre estiveram? Sempre estarão? Se houvesse uma resposta, teríamos então o eterno? Seria eterno o tempo que sempre volta? O eterno retorno para Nietzsche é uma metáfora para o tempo com seus vários instantes, os "agoras" que sempre voltam, sem estado final, a dureza da vida humana que se repete. Esse seria o eterno que faz sentido...

E faz sentido poeticamente, emocionalmente. "Amor eterno", jura de amor entre apaixonados. "Eterna gratidão" em homenagem aos mortos. Quer dizer, os usos apropriados e compreensíveis de "eterno" estão em nossas vidas. No mais um enigma, resta a nós humanos especular.

PS.: série sobre o telescópio James Webb disponível na Netflix.


sábado, 19 de agosto de 2023

Eu e os outros

 O sentimento que se tem é o de que somos nós mesmos. Cada qual tem sua própria identidade. É como se cada um habitasse o seu corpo. Em nossa percepção temos certeza de sermos esta pessoa, com tais e tais  vivências, experiências, reconhecemos nossos desejos, planejamos e seguimos nosso caminho.

Será que essa identidade assim constituída não esconde da própria pessoa aquilo que a incomoda, será que o esquecimento não está cheio de medos, perturbações, cada qual com um "lá dentro" que bate mas não vem à tona?

E mais, não enxergamos o que somos e nem o espelho revela como gostaríamos que fôssemos. Quem nos vê, quem nos enxerga são os outros. De passagem ou durante a vida toda, há sempre alguém que nos enxerga. "Um homem pode ver o que ele tem, mas não o que ele é" (Wittgenstein, 1946, in Culture and Value), pois o que ele é passa pelo como o outro o vê.

Habitamos, vivemos em nosso corpo, e é impossível sair de nós mesmo para nos enxergarmos. Ainda assim, o misterioso na condição humana é perguntar o que somos e o que representamos para os outros e preocupar-se com isso, até mesmo dedicar-se a isso.

O tempo todo estamos atribuindo a uma pessoa de pronto: você é demais, você é lindo (a), você acertou, parabéns. Mas também, você não presta, você é fraco (a), você erra sempre, e muitos outros tipos de julgamento e avaliação. E o mais intrigante é que o outro também nos está julgando, e esse juízo do outro pode tanto aprisionar como libertar.

Vejo um miserável, um morador de rua, sujo e maltrapilho e o julgo.

Vejo alguém que dirige um carro esportivo e o julgo. 

Como ambos se veem faz parte de como são e de como querem ou podem ser vistos. Ao olhar do outro, a roupa, o perfume, o penteado, e toda a aparência é oferecida.



O maltrapilho sob o olhar do outro

Como então entrar em si, em nossa identidade sem depender do olhar do outro? O que é legitimamente nosso eu? 

A memória possibilita isso: buscar no passado, nas lembranças e reviver situações, alegrias, medos, reconstituir um lugar especial, um passeio, um jardim, um animal de estimação, o prato favorito, o calor da cama, uma canção antiga. Talvez por isso seja tão grave, tão desumanizador perder a memória.

O que a memória nos traz vem a nós sem o olhar do outro, sem o obstáculo do que precisamos representar para sermos nós mesmos.

Problema: essa vitória do eu precisa enfrentar ainda o obstáculo do esquecimento.

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

O ideal e o real

 Temos uma noção bem simples do que sejam o ideal e o real. Ideal é supostamente o melhor, o que gostaríamos de obter, o que projetamos como modelo, alcançável ou não. Real é tudo o que pertence à nossa lida cotidiana, palpável, que exige certa reação, impossível ficar indiferente.

Vejamos pelo prisma filosófico. Ideal para Platão é, verdadeiramente, a própria realidade, o real decorre do ideal. Como é possível?! A realidade com a qual nos deparamos é instável, mutável, aquilo que agora é, no minuto seguinte pode não ser mais. Para que possamos entender algo, para que possamos nos certificar de algo, é preciso que haja um modelo, uma ideia que não mude. A verdadeira realidade é ideal, a ideia de cada coisa permanece, é perfeita, não tem brechas, não é instável, pois se tivesse brechas e fosse instável seria impossível pensar, apreender as coisas em sua essência. Este nosso mundo é feito de cópias a partir de um modelo ideal, metafísico, essencial. Exemplo: não podemos conceber certo cavalo sem a ideia de cavalo.

Chamamos esse modo de conceber de "idealista". Interessante que a concepção de ideal, de eterno e de perfeito se encontra em nossas visões de mundo, na concepção de um além, de um mundo transcendente, espiritual, ao mesmo tempo desejável e temível.

A partir do século 19, e mesmo antes com Kant, houve uma revolução no pensamento filosófico. O verdadeiro não é mais o ideal e sim o real, o real que habita nossas cabeças, a razão pensante, não podemos ir além daquilo que nossa razão com seus conceitos nos permite conceber. O ponto de partida para acesso ao real é situar tudo em um tempo e em um espaço. O céu ideal de Platão desabou, se transformou em conceitos, em noções, em valores, em medidas.


Instrumentos de medida, perfeitos, exatos, utilizáveis.

E esses conceitos, noções e valores são nossos, completa Nietzsche, invenções. Nós somos os inventores das ideias, inclusive as de bem e de mal. 

Wittgenstein considerou que os ideais de exatidão da lógica e da matemática seriam nucleares, fórmulas e conceitos que possibilitariam espelhar a realidade, trazê-la para a forma inteligível de uma sentença. Mas, esse ideal de exatidão, que preside a todo pensamento inteligível, onde ele habita? Em nossas próprias formas de vida. Quando pensamos em algo exato, ideal, não precisamos de um mundo perfeito, além no nosso.

Pelo contrário, o ideal pertence ao nosso cotidiano, tem diversos usos. Há para Wittgenstein diversos tipos de exatidão. Pense em uma régua, ela é exata, tem um tipo de aplicação que é diferente da medida em jardas. Ambas são perfeitas, foram concebidas para tomar medidas. E cumprem essa função. 

Conclusão: nós humanos somos construtores, damos sentido às nossas vidas, e por vezes consideramos que esse sentido seja ideal, inalcançável. Outras vezes entendemos e acedemos às nossas necessidades bem concretas, bem reais, ora fáceis, ora difíceis de realizar. 

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

O que é dogma?

O termo "dogma" vem do grego, e significa aquilo que se pensa ser verdade, e é justamente esse o sentido com o qual é empregado. Dogma funciona como se fosse uma parede intransponível, ou um freio que restringe toda e qualquer crítica ou opinião contrária.

A força do dogma reside nisso, nesse fardo obrigatório e irremovível. Uma pessoa, em seu íntimo, até pode controlar sua crença, mas expressar opinião em público é proibido. Além disso, os dogmáticos controlam e impedem a expressão dos inimigos. Sim, pois dogmas não podem ser confrontados, cada qual, como se diz popularmente, no seu quadrado. 

Dogmas são formas de expressão afirmativas, assertivas e impositivas, e por isso mesmo incontestáveis. É como se fosse um ponto final tanto da linguagem como do comportamento e do pensamento. Até aqui a pessoa pode ir, nunca além do que é obrigatório pensar e dizer. É preciso seguir o líder da seita cegamente.

Desse modo o risco de contestação é mínimo ou inexistente, a crença permanece num lugar fixado, imutável. Não há como se comunicar por meio de um dogma, pois mostrar evidências, comprovar, discutir e explicar são formas de se comunicar, quer dizer de dar razões, ouvir os outros, tentar entender outros pontos de vista. Por isso, quanto aos dogmas, que são verdades de crença, é em vão mostrar o que outras culturas ou grupos pensam. Todo dogma é indemonstrável. 

O dogma guia o(s) adepto(s) de forma fechada, "quase como se alguém atasse um peso nos seus pés que restringe sua liberdade de movimento" diz Wittgenstein (Culture and Value, p. 28).

Dogmas religiosos controlam a vida e o comportamento, como as obrigações doutrinais nas religiões, a reza em direção à Meca, a obrigatoriedade do véu islâmico, a circuncisão no judaísmo radical, a crença na alma imortal destinada ao castigo eterno ou ao gozo eterno, a Santíssima Trindade para o catolicismo. 

Dogmas políticos requerem e podem vir revestidos por ideologias. Ideologias são partidárias, movem líderes tirânicos, obrigam à adesão ou aqueles que aderem o fazem por crença, por exemplo, de que a propriedade é roubo, de que o capitalismo é intrinsecamente mau, ou, ao contrário, riqueza e dinheiro podem e devem ser absolutamente almejados. Em geral em política posições ideológicas acabam por se tornar dogmas.

Por fim, não há como e nem porque contestar, resta acatar ou se livrar do peso atado aos seus pés.

Entretanto, religião e política podem e devem servir para que se possa respirar o ar livremente, inspirar cabeças e corações, permitir a livre adesão, e dessa forma levar adiante aspirações pessoais em uma sociedade onde reina a autonomia.