quarta-feira, 27 de março de 2024

Presunção, arrogância, orgulho

 Heirich Böll, prêmio Nobel de Literatura (1972), descreve em Billard um Halb Zehn (Bilhar às nove e meia), a situação da Alemanha no pós-guerra, terra arrasada, famílias destruídas, morte de crianças e adolescentes, e isso tudo numa perspectiva sui generis, particular, um outro lado da guerra menos conhecido e abordado em comparação com a terrível perseguição, condenação e morte conduzida pelo nazismo, os campos de concentração. 

Böll retrata a vida de pessoas, como lidar com as perdas, retrata o sofrimento das famílias em três gerações que perderam pais, filhos, irmãos, sonhos destruídos, esperanças soterradas, cemitérios em que vagam apenas lembranças. A dor pela morte da filha adolescente de um dos personagens é privada, particular, ela não teria seus próprios filhos, seu futuro foi arrancado. 




A certa altura um dos personagens diz: Não somos deuses, e muito pouco podemos nós presumir de sua sabedoria assim como de sua benevolência. É como se ele dissesse: vejam a que fomos reduzidos... Esse é o sofrimento real das vítimas de guerras, a destruição de suas casas, pais sem filhos, filhos sem pais, a fome, sem lado vitorioso.

Entretanto, parece que até mesmo em situações de paz, quer dizer, sem guerra declarada, pessoas há que se vestem de ouro, presunção suprema de poder, de decidir, de legislar, arrogantes, sequer olham a sua volta, vestidos da cabeça aos pés com orgulho, olhar superior, investidos de sabedoria divina, em um teatro de presumida benevolência.

Há quem mande, há quem obedeça, a qual preço? Há culpados disso ou daquilo, há inocentados disso ou daquilo. Mas não é só o lado jurídico, de qual direito se prevalecem ou se valem, e sim de algo que fica pressuposto, que não vem à tona, que sobrecarrega e dirige decisões, o não dito atrás do dito.

Vociferar, insultar, agredir se tornaram comuns, e isso no cotidiano: há os que se acham no direito de furar o sinal, de mostrar o dedo, de cuspir, de jogar na via pública ainda que seja um papel de bala. Ninguém está aqui para me ver ou punir, pensam os revestidos de ouro. 

Para outros, é a lei seguida estritamente ou interpretada conforme a ocasião e tendo em vista quem manda daquela vez. Por que uns são fanáticos destruidores de palácios, por que outros vazam informações, por que outros são conduzidos a informar, desinformar, iludir, enganar. E tudo isso publicamente, sem a menor vergonha. "Sim, isso foi o que eu disse, mas não queria dizer naquele momento diante daquelas pessoas." E assim invenções e historietas são veiculadas, depois desmentidas ao sabor da hora e da conveniência.

Somos fraudados, sem guerra alguma declarada, vivemos em luta uns contra outros, xingamentos, agressão, o dedo apontado e em riste, pessoas se investem de autoridade e prevaricam.

 

Não somos deuses, sequer podemos presumir como seria a benevolência divina, mas há os que se acham deuses, benevolentes e capazes de distribuir justiça acima de tudo e de todos.

E essa é uma guerra, sem tanques ou bombas, conduzida por canetas, assinaturas, delações, que costuraram um tecido prejudicial em nossa sociedade, que a todos amarra e que cavou trincheiras entre os pró e os contra, sem perceber que são inimigos e cegos, tanto os de um lado como os de outro. 

domingo, 17 de março de 2024

Ser menina adolescente na Índia

 Mês da mulher, até quando precisaremos dessa homenagem? Chegará o dia em que possamos sair à noite, atravessar uma praça sem temer uma abordagem ou algo mais grave, até mesmo ataque, estupro e morte?

Em 2017, em uma aldeia na Índia, pouco povoada e muito pobre, uma menina de 13 anos foi retida após uma festa de casamento, seus pais se retiraram mais cedo. Lá por uma da madrugada o pai encontrou a filha em estado desolado, inconsolável. Ela contou ter sido violentada por três rapazes que a largaram prometendo matá-la se fossem denunciados. Rapazes conhecidos de todos. O exame médico constatou o estupro, e tudo poderia ficar assim, eram costumes da aldeia tolerar e, em caso de denúncia, oferecer a "dádiva" de casar com um dos agressores. Isso restauraria a honra. Oferecer a menina ao agressor, casar-se com quem a violentou?!

O pai, a pedido da filha traumatizada, foi à justiça. Processo longo, cheio de empecilhos e o mais desalentador, a aldeia se voltou contra ele, pequeno agricultor, pobre, mas instruído e determinado: "Tudo o que se faz com honestidade dá certo", disse. Ele e toda a família passaram a ser hostilizados, ameaçados de morte. A determinação de ambos, pai e filha, é inusitada no país e, mais ainda na aldeia. A menina pede para que ele não desista. A coragem do pai por vezes esmorece diante de ameaças de morte, de incendiar a casa. Como a família ficaria se ele morresse?!

 O pai, um homem de bem.


 Depois de meses e de alçar a várias instâncias, o conselheiro condenou os três jovens. A comunidade não aceita esse tipo de punição, a pena de 25 anos é considerada "injusta". Os hábitos e valores que prevalecem são os de que homens podem tudo, a mulher é subalterna, desprezível e culpada por ser mulher!

Disseram para o pai: "Você não pode matar um tigre sozinho", ao que ele respondeu: "Vou mostrar a todos que eu posso". 

Daí o título do documentário "To kill a tiger", produção canadense (2022), com vários prêmios e indicada ao Oscar (desculpem o spoiler).

***

Creio que muitos devem ter acompanhado o caso recente de um casal de brasileiros, que, também na Índia foi abordado, ele espancado, ela estuprada, não levaram valores e culparam o casal por não terem acampado em lugar seguro...

A reportagem completa está em https://www.gazetadopovo.com.br/ideias/estupro-violencia-mulheres-turista-india-perigoso/?comp=app-android

Vale também assistir ao documentário na Netflix "Você não está sozinha, a luta contra la Manada", do qual extraí a mensagem que inicia este texto.

 


quarta-feira, 13 de março de 2024

Ser simples

 Simplicidade implica despojamento, deixar de lado tudo o que é inessencial, secundário e dispensável. Isso é sabido.

Ir um pouco além requer critérios que não os apenas materiais, nem os exclusivamente espirituais.

Acolher os critérios do bem viver, as possibilidades de usufruir, de sorver, fáceis como respirar, parar para olhar, não apenas fixar e sim deixar a vista como que caminhar em torno de um objeto, de uma paisagem, encontrar o olhar de alguém, e entender esse olhar. Assim se é levado a poder transcender, aguçar os sentidos, como uma revelação, semelhante à de um negativo das antigas fotos depois de passarem pelos líquidos e se manifestarem, sempre uma surpresa. 

O simples é o admirável, o que veio a tona, como um resgate da memória, o despertar de um sonho. O simples não é ilusão nem quimera. 

O simples é a forma que resultou do trabalho de um artesão que depois de várias tentativas surge perfeita.

O simples é íntegro, nada falta e nada sobra. Um jardim geométrico é simples, assim como uma rosa, certa árvore e a floresta.

Não há excesso nem restrição, há um acabamento no sentido de ter atingido um objetivo e no sentido da completude.

Qual é o contrário ou o avesso do simples? O avesso do simples não é o complexo, o complicado, o sofisticado, o indecifrável. O avesso do simples é um vazio que não se preenche, pois que vem da constante insatisfação, da necessidade de possuir e reter, deglutir e acumular. 

O contrário do simples vem de uma ausência de si, de um pousar aqui e ali sem deter-se, numa busca insaciável, rodopios e mergulhos sem fim.  

Para uma vida simples não é preciso isolar-se numa cabana no meio da floresta, como fez Thoreau (1817-1862) o que seria quase que impraticável em nossos dias


E nem como monge. Todos nós, humanos, somos doadores de sentido, e para isso não precisamos de um guia, de um condutor, basta que sejamos nossos próprios mestres, que encontremos e trilhemos nossos próprios caminhos.