sexta-feira, 27 de abril de 2012

Somos autônomos ou autômatos? Um confronto entre Kant e Freud

Todos temos noções de dever e de leis morais, diz Kant na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785). Uma lei moral só tem sentido se valer igualmente para todos, se for universal. As qualidades de caráter, dons naturais, saúde, poder, inclusive a busca da felicidade, tudo isso depende da vontade, da boa vontade. Nossa existência tem um objetivo mais nobre do que a busca da felicidade. Esse objetivo se encontra na razão que conduz a vontade para agir conforme ao dever, desinteressadamente.
Tudo o que fazemos por nossos impulsos e inclinações, amores, desejos não possui valor moral. Agir somente pelo dever é próprio de seres racionais para os quais vale a máxima: a ação deve poder servir como lei universal. Se alguém faz uma falsa promessa, e isso se tornasse válido para todos, a mentira seria regra e as promessas perderiam o sentido. E se ninguém for sincero? Não importa, isso não retira o valor da sinceridade, por exemplo, como necessária para a amizade.
Se alguém joga papel na rua com a justificativa de que nem todos jogam, imagine se esse ato fosse generalizado! A maioria de nossas ações, segundo Kant são movidas pelo egoísmo e pelo amor próprio e não pelo comando do dever, que pode exigir renúncia. É difícil praticar ações morais por puro dever da vontade.
A característica fundamental da vontade é a autonomia, a livre capacidade de escolher sob o comando da razão e não dos impulsos e instintos. O imperativo da ação moral é categórico, i. é, independe de desejos, pois a lei moral trata todos como se fossem fim em si, ou seja, são pessoas. O requisito absoluto é o respeito à dignidade da pessoa humana, sempre. Tratar os outros como um fim e não como um  meio. A base da dignidade da pessoa é sua autonomia, as pessoas dão leis a si mesmas e seguem livremente o que estiver de acordo com a autonomia da vontade. Sem liberdade não há moralidade.

Em contraste, Freud mostra que autonomia, autodeterminação e liberdade têm uma quota limitada em nossas ações. O ego, a consciência de si mesmo é uma camada superficial. Por debaixo estão os impulsos, as pulsões e toda uma carga de afetos e emoções guardadas no inconsciente. É como se a luz do dia fechasse essa carga, resistimos em abri-la mesmo porque sentimentos, afetos, mágoas, traumas sofreram um processo de repressão. Isso tudo aflora nos sonhos, no que por vezes dizemos "sem querer", em nossos lapsos de linguagem, em certos gestos automáticos.
O psicanalista puxa o fio da meada, eventualmente chega aos episódios ou ao episódio traumático, que via de regra está ligado à vida sexual infantil. E não há como fugir disso.
Freud teve o mérito de descartar a noção de que transtornos psicológicos seriam inatos. Eles não são inatos, nem hereditários e nem fruto da "degeneração da personalidade", conceitos esses que levavam os problemas mentais e psicológicos para uma área próxima à da condenação moral. No lugar de "você é um degenerado", compreender que há um conflito no indivíduo entre seus desejos e as "aspirações morais e estéticas da própria personalidade". Pois "as aspirações individuais, éticas e outras, eram as forças repressivas" diz Freud. O impulso desejoso seria incompatível com a vida civilizada, com os códigos morais, por isso o ego reprime tais forças, e assim protege sua personalidade de um desprazer. Neuroses vêm daí. A possibilidade de alívio da ansiedade que elas produzem, pode vir da livre associação de ideias que o psicanalista induz. "... o psicanalista se distingue pela rigorosa fé no determinismo da vida mental. Para ele não existe nada insignificativo, arbitrário ou casual nas manifestações psíquicas" (Freud, Cinco lições de psicanálise).

Para Kant somos autônomos, a liberdade da vontade de decidir levando em conta o que vale para todos eleva o homem ao máximo de sua dignidade. Para Freud, valores morais têm o poder de sublimar impulsos, aquele que age por dever seria um obsecado, ou pelo menos, seduzido pelo dever como se esse fosse um prazer.

Qual dessas análises traduz melhor a condição humana? Excluir um ou outro desses pensadores seria uma perda cultural irreparável.




sábado, 14 de abril de 2012

Sobre os cientistas ateus

Cientistas famosos e conceituados como o biólogo Richard Dawkins, o físico Stephen Hawking e Lawrence Krauss (ver entrevista em Época) se declaram ateus em nome de descobertas e teorias da ciência, e em razão do método científico fornecer provas.
Os argumentos utilizados se baseiam nas evidências acerca da origem da vida em nosso planeta (biologia) e no que até agora a astrofísica tem pesquisado sobre como o universo surgiu. A mais famosa teoria, como todos sabem, é a de uma explosão inicial de energia. E isso do nada.

Ora, na área cultural que as religiões ocupam há milênios, seres superiores ou, no caso do monoteísmo, Deus é a absoluta origem de todas as coisas. Para os gregos não poderia haver criação a partir do nada. Impossível o não ser gerar o ser. Para os cristãos, a geração divina de todas as coisas veio, sim, do nada. A pergunta não é como Deus poderia ter criado tudo do nada, como fazem os cientistas, pois assim usam uma questão científica para "provar" seu ateísmo. Os cristãos não precisam sequer pôr esse tipo de questão, Deus é onipotente e isso basta para aqueles que creem.

Não se pedem provas ou teorias para amparar crenças, a base delas é a fé transmitida pela tradição oral ou textos sagrados.

Quando um cientista faz profissão de fé em uma teoria científica, comete alguns equívocos:
- a ciência exige revisão permanente, todas suas teorias, ainda que sustentadas por cálculos e comprovação por meio de testes e/ou instrumentos, devem permanecer abertas para revisão. A ciência não pode se arvorar em palavra final. Se as teorias forem consideradas verdade final, a primeira teoria considerada científica bastaria e até hoje professores ensinariam a teoria de que tudo se compõe de terra, água, ar, fogo e éter (física aristotélica);
- se a ciência é convincente e seus resultados fantásticos, nem por isso ela ilumina corações e mentes com o conforto espiritual proporcionado pela fé religiosa ou pela crença em Deus;
- estados e nações em que a ciência e as religiões ocupam lugares específicos com funções próprias a cada uma delas, há maior tolerância e ambas são livremente praticadas e respeitadas.

Nada disso justifica, porém, a imposição de certas religiões ou chefes religiosos para que nas escolas em lugar do ensino de ciência (física, biologia em especial) sejam adotadas uma doutrina ou uma crença (criacionismo em lugar do darwinismo, por exemplo).

A separação entre Estado, religião e educação é imprescindível para assegurar a todos os cidadãos, justamente, que eles possam seguir uma crença, se assim desejarem, e aprender, informar-se e formar-se nas diversas e necessárias disciplinas escolares.

Essas reflexões que a abordagem filosófica enseja não são uma condenação do ateísmo. O problema do ateísmo é usá-lo como bandeira político-ideológica de defesa da ciência como saber absoluto. Dessa forma ela, ciência, extrapola suas funções e se assemelha a uma religião. Algo estranho e paradoxal: a fé no ateísmo...

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Segurança, prisão e liberdade

O modelo prisional norte-americano vem de longa data. Mais precisamente 1790, estado da Filadélfia. Esse modo exclusivo e cada vez mais aperfeiçoado de punir, desde as menores infrações como beber na rua, ultrapassar limite de velocidade, portar e usar drogas ilícitas, mesmo a denúncia de que bate nos filhos, até o latrocínio e assassinato. Nada fica impune.
Prisão em Nova York: nos EUA há 304 milhões de habitantes e uma população carcerária de 2.3 milhões

A população carcerária nos EUA é a maior do planeta. O orçamento com segurança, fora gastos militares, é gigantesto. Uma briga entre prisioneiros, por exemplo, é captada por câmeras, os envolvidos são  julgados, o culpado é punido pelas regras internas com um ano de solitária.

Aeroportos são vigiados, todos os passageiros são "filtrados". Nos locais onde transitam muitas pessoas, o lixo é recolhido para ser examinado.
O preço a pagar para haver segurança, é, portanto, bem alto.
Ao mesmo tempo a democracia se enraizou nas instituições e os cidadãos se consideram livres e responsáveis.

Por que em uma sociedade democrática e liberal a prisão é o tipo quase exclusivo de punição até hoje?

As sociedades de segurança que emergiram com o aumento da produção e da população, instituíram não só um sistema carcerário rígido, como outros meios para assegurar que indivíduos pudessem ser moldados por instrumentos aparentemente não violentos, como analisa Foucault em Vigiar e Punir. O espaço ocupado pelo corpo em escolas, no exército, em hospitais, nas fábricas, desde meados do século 18, permite examinar, vigiar e punir indivíduos, facilmente detectar gestos e comportamentos desviantes da norma, e aplicar corretivos. Assim, todos são induzidos a responder às instruções, às ordens, aos medicamentos, ao aprendizado e rápida e eficazmente operar máquinas.

Enquanto escolas se tornaram também espaço de criação pessoal, os exércitos se sofisticaram por meio da tecnologia, hospitais refinaram métodos de detecção e cura de doenças, fábricas passaram a empregar maquinário que automatiza a produção - as prisões, em contraste, pouco mudaram.
Além da vigilância central, câmeras. Mas o regime prisional como um todo ainda visa observar, regular, recuperar, controlar, corrigir e restringir a ação e o comportamento para obter obediência estrita.

No Brasil, com exceção de prisões de segurança máxima, a situação em que se encontra a maioria dos cárceres é bárbara. Corrupção, violência e o resultado: nem punição, nem correção e nenhuma confiança da sociedade nesse sistema punitivo.

Prisão Central de Porto Alegre

Assim, haver uma relativamente alta segurança, depende de um sistema carcerário bastante sofisticado apoiado por instituições judiciárias e policiais que fazem parte do cotidiano e do imaginário social.
E a inexistência ou a precariedade disso, como no Brasil, resulta em insegurança como permanente ameaça. As pessoas se defendem como podem: cerca elétrica, vigilância privada, vidros escuros e toda uma parfernália para evitar furto, roubo e morte.

Não há saída, não há a possibilidade de segurança com mais liberdade?  Como evitar a impunidade e, ao mesmo tempo, cultivar a sociabilidade?

Alguns países encontraram essa saída em mais igualdade de oportunidades e educação, sempre que elas caminham juntas e uma reforça a outra.