sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

As virtudes na ética da antiguidade, cristã e contemporânea

Virtudes são disposições para agir bem, requerem o cultivo de hábitos que levam a uma boa e bela vida, não só a do indivíduo, mas práticas que promovem o bem comum.
Na ética antiga as virtudes cultivadas eram as da sabedoria, prudência, fortaleza, coragem, autodomínio, liberdade para exercer sobre si mesmo um controle prudente dos desejos e das paixões, em nome do equilíbrio, da moderação. Nada é ditado ou imposto do exterior por alguma autoridade moral ou política. Por exemplo, ser magnânimo, isto é, aberto, condescendente, capaz de superar dificuldades, ter um espírito livre, é melhor do que ser raivoso, cruel, mesquinho.
Não havia a noção de repressão, de castigo, de punição, prevalecia o cuidado consigo o que requer conhecimento de si. O "Conhece-te a ti mesmo", antigo preceito que Sócrates adotou, significa que sem o logos, sem o conhecimento de si, sem a verdade, nenhuma das virtudes pode ser praticada.
A ética cristã é modelada por outros princípios, daí outras virtudes. Vida regrada em nome da pureza, da castidade, da humildade; o desejo deve ser reprimido, o corpo é carne e esta pode levar à impureza, ao pecado. Os prazeres precisam ser controlados, é melhor sofrer o desprazer, ser rígido e reconhecer-se como pecador, para assim purificar sua alma, do que ser escravo das paixões. Há que seguir os preceitos de uma moral rígida e que vale para todos, da mesma forma.
E hoje? Penso que vale a pena recuperar alguns valores da ética antiga, pois estão ligados à verdade e à liberdade.
As virtudes mais prezadas no mundo atual estão ligadas à manutenção da vida, à luta pela sobrevivência, à defesa da privacidade, à busca do bem-estar, em especial o do corpo saudável.
Quando se menciona a prudência, é a com relação a algum tipo de risco, violência (assaltos, acidentes de trânsito, perigos e riscos físicos). Quando se aconselha o autoconhecimento, não se visa engrandecimento pessoal, mas pôr sua existência sob o crivo de um especialista, esperando que ele ou ela dê conta de seus problemas, o libere da angústia e dê algum sentido à sua vida. Quando se fala da prática da sabedoria, confunde-se com inteligência (sabedoria medida por um teste de QI...) ou com aquilo que gurus têm, mas que é inalcançável para o comum dos mortais.
Quando se fala em equilíbrio, moderação, pensa-se logo na boa forma ou no novo mal do século 21, o peso do corpo, há que ficar atento ao índice de massa corporal, seu excesso ou sua falta.
Quais seriam, então, as nossas atuais virtudes, se é que essa preocupação com uma ética das virtudes ainda faz sentido?
Infelizmente predomina a ética do empreendedor. Realização pessoal passou a ser realização profissional; ser ético, é no trabalho, para realçar a imagem da empresa e evitar processos; espírito livre e magnânimo, são atitudes que sequer fazem sentido...
O processo de formação, de construção, de educação, deveria incluir algum tipo de reflexão sobre ética, valores e virtudes. Se as crianças tiverem essa formação, algumas são manipuladoras, ditadores mirins, exigentes e autocentrados, haverá menos adultos frustrados e por vezes violentos.

sábado, 25 de dezembro de 2010

Tempo e temporalidade


A maioria dos filósofos se debruçou sobre esse intrigante e essencial problema: o que é o tempo?

Passagem, movimento, eterno, infinito, retorno, progresso, mudança são conceitos que acompanham o de tempo e ajudam a entender melhor o que é, como é o tempo.

Aristóteles o define como "medida do movimento segundo o antes e o depois", quer dizer, um movimento qualquer de um corpo no espaço se inicia, pode ser observado e calculado, e depois cessa. Essa possibilidade de medir o movimento, é o tempo. Prático, sem dúvida, mas não responde a alguns nossos anseios, digamos, metafísicos.

Para Sto Agostinho há apenas o presente, o passado já não conta (pois passou) e o futuro ainda não chegou. Mas como o presente se esvai, os momentos são todos passageiros, o que resta?

Ciclos de evolução de todas as coisas e a mudança levam a discussão para a história. História do universo, sem começo e sem fim, infinito, em expansão constante (será?); história do planeta Terra, que antropólogos e biólogos pesquisam e que se inscreve nas evidências arqueológicas; história dos feitos da humanidade, escrita em documentos, trasmitida nas diversas culturas, linguagens, hábitos e mitos; e tempo existencial, o do nascimento, vida e morte.

A vivência no tempo, é também a vivência do tempo.

Explico: "Estou sem tempo", "Se apresse", "Ainda há tempo", "É cedo", "Tarde demais", "Tempo esgotado","Chegou a hora", estamos imersos e dependentes do tempo, tempo como sucessão cronológica, medida pelo relógio e pelo calendário. Mal nasce e a criança é mergulhada em escalas, e de adapta aos ciclos de fome e sede, dia e noite, cedo, tarde, agora, nunca. Além disso, nossas vidas se estendem na temporalidade, no tempo existencial, aquele que não é medido. Fugir do tempo em uma suposta eternidade, é impossível.

Daí a conclusão de Heidegger, filósofo alemão cuja obra mais conhecida é "Ser e Tempo" (1927): o ser humano é ser no tempo, isso define nossa essência. Os filósofos antigos pensavam o tempo como exterior ao homem, Heidegger pensa o tempo como integrante da existência. O dom dos homens é o de se dar como presença. Traduzindo: podemos "agarrar" nosso ser exatamente no momento em nos percebemos como dádiva da temporalidade.

Não há férias do tempo, ele só pode parar, em certo sentido, pela repetição, pela memória, e mesmo quando se preserva o passado, ele se desgasta. REviver o passado, só se o fizermos no presente. Transitamos pelo caminho deixado pela memória e dependemos de nossos pro-jetos para o futuro. Talvez por isso a perda da memória seja o mesmo que a perda de nosso ser humano, ser no tempo. Talvez por isso DESesperar seja perder a capacidade de esperar, de confiar.

Sujeitados ao tempo, ele revela nossa fragilidade.

sábado, 18 de dezembro de 2010

O desejo por imortalidade

Desde tempos imemoriais, quando os homens se descobriram mortais, negar a morte, prolongar a vida, preservar corpos, cultuar os mortos por meio de túmulos, pirâmides, monumentos, oferecer sacrifícios, enfim, tentar de alguma forma ser imortal - esse tem sido o desejo maior das pobres e mortais criaturas...
A literatura e a filosofia, entretanto, com seu poder de abstração, de reflexão e de imaginação, ensaiam como seria a realização desse desejo em personagens e obras.
Simone de Beauvoir Em Todos os Homens são Mortais (1946), descreve o drama de um personagem imortal, que, pasmem, é infeliz com essa condição. O efeito mais drástico, é o da solidão.
Jorge Luis Borges no conto O Imortal, relata a vida de um soldado da época de Diocleciano, que ouvira falar do Rio da Imortalidade e sai em busca desse rio. Para essa empreitada recruta soldados e mercenários, que, uns após os outros, morrem. Após dias de busca solitária, e de uma noite de pesadelo, acorda com sede e bebe de um arroio. Ele chegara a um país estranho, de trogloditas que moravam em cavernas. Ao fundo há uma cidade abandonada. Penetra em um palácio cuja "arquitetura carecia de fim", escadas que levam a lugar algum, sem simetria, sem serventia.
Acontece que os trogloditas eram imortais, e aquela cidade foi sua última obra, depois a vida deles se tansformou numa espécie de letargia, de volta sem fim, de ensimesmamento. Nada faz sentido, nada tem valor. Sofrer sede e fome, e nem assim precisar de alívio. A imortalidade os condenou à indiferença, não há mérito, não há vício nem virtude. O que não significa estarem eles para além de bem e mal, nem poderiam ser confundidos com ascetas do deserto, pois viver absorvidos em seu pensamento, era seu único consolo.
O soldado vai embora da cidade, sai em busca de um rio que lhe devolva a mortalidade, a humanidade, o desejo, o prazer, a dor. Séculos depois, sabe que os encontrou quando se percebe ferido, sangra, sente dor.
Morrerá...
E hoje? Cirurgia plástica para rejuvenecer, botox, academia, vitaminas, bailes de terceira idade, namorar, pílulas azuis -, são recursos alardeados por governos e pela indústria da saúde. É preciso a todo custo buscar a juventude, negar a morte, sob o pretexto de ser saudável. Amar se transformou em vitalidade sexual. O prazer de uma caminhada se transformou em passos medidos e avaliados pela eficácia. O que faz mal, o que faz bem: a vida transposta para essas duas colunas do que fazer (para não morrer!?).
Cultivar o sossego, a paz de espírito, o despreendimento, a sabedoria dos que se sabem mortais, aceitam essa condição, e dela usufruem, agora é visto como esquisitice.
Interessante essa "evolução" que passou da preservação de cadáveres, múmias com direito à vida eterna, às quase múmias plastificadas nos centros de estética. Incrível que estética tenha também sofrido uma mutação, passou de busca do belo, à busca de beleza à custa de bisturi, agulhas e picadas.
Quase ia esquecendo: a moda dos vampiros, glamorização e tragédia se juntam em mais um espetáculo sobre a vida eterna, que, aliás, vende muito bem!

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Sobre Ets e bactérias gulosas

Semana passada foi noticiado amplamente e com certo estardalhaço, que cientistas da Nasa fizeram uma descoberta extraordinária. Um tipo de bactéria retirada de um lago supersalgado, o lago Mono, situado na California, quando "alimentada", digamos assim, por arsênico, elemento próximo do fósforo e letal, ao invés de morrer, sobreviveu.
Talvez não fosse uma bactéria com tendências suicidas!
Ironia à parte, esse experimento levou a uma conclusão no mínimo curiosa. A de que a vida pode sobreviver em condições que nunca antes foram observadas. Apenas certos elementos químicos são responsáveis pela vida, tal como a conhecemos: oxigênio, hidrogênio, carbono, fósforo, enxofre, nitrogênio. O arsênico, substituindo o fósforo na composição química daquela bactéria, fez pensar que há vida tal como não a conhecemos.
Há duas premissas no raciocínio, que são corretas:
- Vida se compõe de 6 elementos químicos, invariavelmente.
- Ora, uma bactéria sobreviveu com um elemento químico diverso, arsênico.
Mas a conclusão não se depreende dessas premissas:
- Logo, há outras formas de vida no universo.
E essa conclusão foi proclamada como prova de que há vida, de que há sim ETs!
Mas atenção, vida como nós a conhecemos não significa que vida como não a conhecemos seja a prova da existência de seres extraterrestres.
Apenas amplia as possibilidades de formas elementares de seres vivos deste planeta, a Terra.
Condições para haver vida em outros planetas, na infinidade e na misteriosa expansão do universo, pode-se tanto apostar que sim, como que não!
Em geral quem defende a hipótese de vida fora da Terra, entende que se trata da vida inteligente, o que é, no mínimo uma extrapolação, uma projeção, a meu ver absurda, de nossas formas de vida.
A diferença estaria na cor, esverdeada; nas orelhas, pontudas; nos dedos, finos e compridos; nas cabeças, cônicas, etc. Mas pensam e falam!
É sempre uma projeção esquisita de nossas espécies, em particular a humana, mas também de alguns animais, como leões, formigas, cães e gatos... Não me lembro de nenhum filme de ficção que em que a criatura de outro planeta seja semelhante a hipopótamo, acho que eles são já estranhos demais para nós mesmos.
Enfim, o que a ciência pode demonstrar depende de pesquisa, de teorias, de hipóteses. Nossa atual teoria é a darwiniana, da evolução. Para haver evolução várias condições concorreram, muitas aleatórias, gerações surgiram, outras desapareceram, o ambiente foi ora hostil, ora propício.
De modo que dificilmente essas mesmas condições se dariam fora de nosso planeta a ponto de surgir vida, mesmo a da bactéria "gulosa", como a do lago salgado.
Além disso, há nosso modo único, humano, de criar, de se comunicar, de usar um vocabulário e conceitos, de haver um tipo de cultura investigadora, como é a cultura ocidental, desde há alguns séculos. Exemplo, a própria Química, com suas descobertas, leis, teorias, experimentos.
É tudo humano. É humana também essa noção de expandir a curiosidade para outros mundos, de imaginar que há seres inteligentes, mas inteligência é mais um desses modos pelos quais caracterizamos e atribuimos, a nós mesmos, certas capacidades.
Essa é uma posição cética, dirão alguns. Melhor assim... Mas se alguém quiser apostar em crenças ingênuas, até mesmo muito divertidas, o melhor mesmo é o Et de Varginha...

domingo, 28 de novembro de 2010

Do banal ao extraordinário

Revi na TV um filme de Woody Allen Igual a tudo na vida (2003), que os críticos classificaram como repetitivo e fraco. Os comentários na internet são em sua maioria também desfavoráveis, filme sem graça, não diverte, não acrescenta nada à filmografia do cineasta.
David Dobel é professor (personagem de Allen) que aconselha Jerry Falk (personagem de Jason Biggs). Acho que o filme reconduz a perplexidade diante da questão maior ou da dúvida maior, à perplexidade diante do menor de nossos atos e das situações que enfrentamos.
Como entender as questões mais cruciais que incomodam e deixam perplexos aqueles que filosofam, que refletem um pouquinho que seja sobre o sentido das coisas, da vida, de ser, de tudo ser? O mistério que nos assombra, como tudo veio a ser, há uma causa mais geral para tudo, pergunta o professor Dobel.
Ao mesmo tempo a vida segue, é preciso ter uma profissão, amar alguém, ser bem-sucedido, enfrentar o dia a dia de uma grande cidade, trânsito, onde estacionar (em uma cena muito engraçada o professor disputa uma vaga para seu carro conversível e perde a vaga), em outras cenas critica o aconselhamento psicanalítico (o psicanalista só ouve e cobra, caro, certamente...), pessoas fracassam, pessoas não sabem o que fazer com seus destinos, bebem, se drogam.
É um motorista de taxi que usa a expressão, "like anything else" para se referir a que tudo na vida é assim mesmo, banal e, ao mesmo tempo complicado.
Perguntar pela origem ou causa de tudo, a pergunta filosófica mais intrigante, mais antiga, mais extraordinária, pode e deve ser levada ao ordinário, ao dia a dia, o que faz sentido fazer, qual lance de nossa vida marca, decide?
E o inverso, se você parar para pensar, verá que o cotidiano é incrível, é extraordinário. Embutida, imersa e escondida em cada detalhe e em cada ato, "a insustentável leveza do ser", como se expressa Kundera.
As respostas na história da humanidade tomaram rumos e consequências: religiões e credos defendidos a ferro e fogo, ideologias que cegaram povos e culturas, líderes que mataram e matam em nome do poder (deles, é claro...).
Mas também a vida pessoal e as circunstâncias banais podem servir para pensar: é complicado, sim, mas tudo é mesmo assim, banal por um ângulo, extraordinário por outro ângulo.
O mistério das cousas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?
E eu, que não sou mais do que eles, que sei eu disso?
Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
Por que o único sentido oculto das cousas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que todos os sonhos de todos os poetas
E o pensamento de todos os filósofos
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E que não haja nada que compreender
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos:
As cousas não têm significação: têm existência.
As cousas são o único sentido oculto das cousas.
(Fernando Pessoa - 1888- 1935)

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

A realidade "existe"?

A pergunta acima pode parecer descabida. É claro que o real existe, as pessoas dirão.
Mas em filosofia, na área da teoria do conhecimento, a questão é pertinente. Para conhecer algo, é preciso um sujeito com certo grau de aprendizado e desenvolvimento de suas capacidades psíquicas, com um mínimo de recursos para se comunicar e para enfrentar situações às quais precisa responder. Será que conhecemos o real tal como ele é, ou tal como essas capacidades nos fazem pensar que ele é?
Se todos os homens subitamente morressem, o real permaneceria o mesmo? Aquela árvore naquela ilha do Pacífico permaneceria tal e qual?
Os filósofos assumem posições diferentes quando tentam compreender o conhecimento. A realidade é permanente, identificável e é possível se certificar disso afirmam os realistas. Pedra é pedra, árvore é árvore. Basta abrir os olhos e ver, constatar. Para eles, o mundo seria o mesmo sem a presença do homem.
Para os empiristas, são nossos sentidos e a nossa percepção que fazem a experiência e verificam os objetos e suas características.
Mas não é assim tão simples, argumentam os idealistas, se o sujeito não dispuser de um aparato para ir da imagem que ele vê, para a identificação do que há fora dele, não há conhecimento. Para os idealistas, o real depende do sujeito, mortos os homens, morre também nosso modo de conhecer o mundo. Se há ou não tal ilha com tal árvore, é uma pergunta que cai no vazio.
Para os céticos, ainda que batam sua cabeça na árvore e sintam dor, isso não elimina duvidar de tudo, nossas impressões são fugidias, tudo muda, nós inclusive, o tempo todo.

Como se vê, a pergunta filosófica feita no título acima não é tão estapafúrdia.

Cabe ainda refletir sobre o conceito de "existir", de "existência". Você diria que uma pedra é tal e tal, ou que uma pedra existe? Pedras não existem, apenas seres vivos, como cães e homens, têm uma existência. Logo, a realidade não existe!?
A argúcia filosófica nos conduziu a um beco sem saída?

Não para Wittgenstein (cf. Investigações Filosóficas - 1953).

Para ele há diferentes usos de expressões e de jogos de linguagem em situações de fala. Alguém quer dizer algo para outro e este, em geral, o compreende. Exemplos:
"Essa realidade, à qual você se apega, não existe". Esse jogo de linguagem pode ser dito para persuadir alguém a mudar seu ponto de vista.
Outro jogo de linguagem bem comum: "na realidade, acho que fulano não presta". Aqui o termo recebe outro significado, o de uma convicção.
Em outras palavras, a linguagem cotidiana, as circunstâncias vividas em nossa existência diária é que decidem quanto ao significado que se dá a "real", "realidade", "existência".

Wittgenstein deflaciona os conceitos filosóficos, faz terapia filosófica.
Duas pessoas discutem:
"Isso é uma árvore" diz um. "Não sei, diz o outro, tenho apenas impressões de algo duro, rugoso, marrom, etc.". Wittgenstein replicaria: "São dois filósofos discutindo"...

sábado, 6 de novembro de 2010

Educação infantil e literatura

O Conselho Nacional de Educação tentou, felizmente sem sucesso, recomendar a retirada da obra Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato (publicada em 1933) do rol de livros recomendados pelo MEC. Motivo: duas frases que ofendem a igualdade de raças. Na primeira, a comparação de Tia Nastácia com uma "macaca de carvão" e na segunda a pergunta da Emília (engraçada e espevitada boneca de pano, confeccionada pela própria Tia Nastácia, e que virou gente, pois é...) sobre se Tia Nastácia tinha sangue preto.
Relendo a história, que me encantou quando criança e que reli para minhas filhas, se compreende que se Tia Nastácia não subisse imediatamente no mastro de São Pedro, seria devorada pelas onças. A história é sobre uma caçada em que, encarapitados em uma árvore para fugir de uma onça, Pedrinho, Narizinho e cia. limitada, conseguem matá-la. Pedrinho joga pólvora nos olhos da dita cuja. Resultado: revolta da bicharada. Para se salvarem, os habitantes do sítio devem ficar no alto, em pernas de pau. Mas nem Dona Benta e nem Tia Nastácia conseguem. Na hora do ataque da "onçarada", Tia Nastácia sobe apavorada no mastro super liso, com a agilidade de uma macaca de carvão.
Monteiro Lobato se refere à Tia Nastácia, em inúmeras passagens e em todas suas obras como "negra", "preta", "beiçuda". Ela é a cozinheira (seus bolinhos são inigualáveis), conta histórias, protege as crianças, é amiga e companheira de Dona Benta.
Pois bem, uma coisa é resgatar para os negros oportunidade, proteger com legislação direitos iguais, punir o insulto racial. Isso é indispensável! Mostrar a violência do tráfico de escravos e como seus descendentes até hoje estão entre os mais pobres e com maior dificuldade de ascenção social, é, repito, indispensável.
Considerar que adotar um vocabulário politicamente correto, vetar literatura que na época estava a milhas de distância do policiamento exigido pelo "politicamente correto", é absurdo.
Um caso sui generis para que se reflita a esse respeito: a poesia de Cruz e Souza (1861-1998). Poeta negro, nascido de pais escravos alforriados, cuja obra faz parte do currículo escolar, é um dos expoentes da escola simbolista. Seu vocabulário poético faz referência a anjos, louro trigo, claras estrelas, puro, clarão sidério, luz, estrela, etc.
Hoje seria um poeta discriminado, pois não proclama sua negritude, sua origem, sua cor?!
Que tal pensar que igualdade talvez não seja o mais desejável e sim permitir em nossa sociedade a manifestação das várias vozes, das diferentes e diversas cores, produção artística, contribuições para a cultura que enriqueçam nosso vocabulário ao invés de policiá-lo?
Que tal proclamar a diversidade, lugares próprios de grupos e crenças, noções e valores que ressaltam essas diferenças?

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Foucault revoluciona a noção de sujeito, de história e de governo


A noção de sujeito para Descartes é a de pessoa com uma mente autoconsciente e a de um corpo como uma máquina; a de Kant é a de pessoa dotada de liberdade de decidar, absoluta, incondicional, e também de capacidade racional para pensar o real por meio de formas invariáveis, que possibilitam conhecer tudo o que está no tempo e no espaço, que tem uma causa e pode ser determinado.
Pois bem, Foucault tem outra noção de sujeito. Ele pensa um pouco como Nietzsche, nada além de atos e práticas que pertencem à história pode nos constituir, seja para pensar, seja para agir, seja para valorar. Sujeito e história se constituem um ao outro. Como?
Foucault, sem negar que é possível entender a história humana pelas guerras, nações que nascem e morrem, grandes líderes, grandes descobertas -, inaugura outro modo de olhar a história. Ele analisa acontecimentos que passam batido, como a história da loucura, história do surgimento da clínica médica, do nascimento das ciências humanas, da sexualidade, dos modos de constituição do sujeito, da violência nas prisões, do hospital psiquiátrico, das modificações no governo de si mesmo e no governo dos outros.
O modo de abordar tudo isso também é inédito:
- Pelas práticas discursivas, por exemplo: a produção de verdade de tipo classificatória, que põe os seres em um quadro geral como a história natural de Lineu, século 17; isso sofreu uma mutação com Darwin: não mais um quadro estático, mas evolução natural. No século 18, novas práticas discursivas fazem surgir novos objetos de saber: a vida que evolui, as gramáticas e suas regras para que haja línguas, e os modos de produção pelo trabalho.
- Pelas práticas não discursivas, exemplos: o hospital psiquiátrico que encerra o louco e permite um saber sobre a loucura que se torna objeto médico; a forma prisão de punir, que reúne saber sobre o delinquente e um tipo ágil e rápido de poder, que requer o exame, a vigilância, o isolamente celular. Não mais o corpo orgânico, mas dobrar, corrigir, modificar o comportamento individual (fins do século 18);
- Pelas práticas de governo dos outros: o antigo soberano governa súditos e tem o poder sobre território; o Estado moderno surgiu de práticas de governo sobre populações, é necessário atuar sobre a saúde, o meio, a produção, o mercado. Deixar o mercado agir livremente numa ponta e na outra manter a população governável, cuidando de cada um e de todos como o pastor cuida de suas ovelhas. Poder governar na modernidade exige mecanismos de segurança da vida (biopoder).
-Pelas práticas de governo de si: desde o conhece-te a ti mesmo de Sócrates, até o divã freudiano, passando pela confissão dos pecados cristã. Essas práticas nos levam ao domínio de si, ao prazer de escarafunchar o inconsciente, à invenção de uma alma a ser salva.
Enfim, somos pensados, punidos, governados, objeto de saberes, alvo de poderes. Ainda assim, mais livres do que sonhamos, pois somos capazes de enfrentar, denunciar e às vezes até de modificar aquelas práticas!

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

O que a filosofia permite realizar?

Quando se fala em filosofia, logo vem à mente algo complexo, abstrato e inútil. Coisa da cabeça, dizem. Nada prática.
Na última postagem publiquei a estátua do Semeador para ilustrar a filosofia como ação, como atividade, semear ideias, conceitos, novas visões, modos de nos compreendermos, de avaliar situações e lidar com elas de forma mais investigadora e instigadora.
A filosofia se volta para ela mesma, para a sua história, e repensa seu papel, leva-nos a aprender com a realidade e a apreendê-la, isto é, pensar o real e transformar algo nas pessoas, a semente da pergunta, da indagação.
Ela proporciona conceitos para uma melhor compreensão de três áreas:
1. A ética e a política. O filósofo emblemático é Aristóteles para entender porque ética e política estão relacionadas. A sociedade política é um bem de e para todos, o homem como animal social, tem o senso do bem e do mal, do justo e do injusto. A sociedade política é uma reunião de pessoas para promover o bem viver; é preciso que o Estado proporcione uma vida feliz e virtuosa, que seja conduzido por um piloto que entenda de navegação. Diz Aristóteles em A Política:
Quando o monarca, a minoria ou a maioria, não buscam senão a felicidade geral, o governo é justo. Mas se visa ao interesse particular do príncipe ou dos outros chefes, há um desvio (p. 93). É impossível um Estado feliz se dele a honestidade for banida (p. 49).
2. A cultura. Vejamos o que diz Nietzsche: é preciso coragem para romper com valores gastos e estabelecidos. Reinventar valores cabe ao poeta solitário, capaz de dispensar a moeda gasta, de associar conceitos às necessidades e atribulações. A cultura sofre, foi banalizada, tudo está a serviço da barbárie, até mesmo a arte e a ciência (cf Considerações Contemporâneas, p. 74). Há que fugir do conformismo, do é assim mesmo, e penetrar nos difíceis caminhos do "eu assim o quis" (moral do forte).
3. As práticas humanas. Nasceram na história, e têm uma história, muita vezes cruel. Foucault mostra que o modo como o sujeito humano moderno se constitui, depende de práticas como as da prisão, hospitais, invenção da psiquiatria, das ciências humanas, que servem para conhecer o homem, e, ao mesmo tempo domesticá-lo. Em Vigiar e Punir Foucault analisa como o saber produz poder instalado em práticas como o castigo para o escolar, a prisão como forma generalizada para punir, o surgimento de instituições que dependem de vigilância. Esse é tema para próxima postagem.
Pensar não é pouca coisa...

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

A tarefa política e cultural da filosofia

O Semeador

O Pensador

A produção intelectual faz parte das atividades humanas culturais, não é uma tarefa exclusiva das classes superiores, esclarecidas, nem da alma platônica sujeita à contemplação pura das ideias. Dewey (1859-1952), filósofo do pragmatismo norte-americano (ver o que é pragmatismo neste blog), mostrou que a filosofia não deve ser restrita às puras Formas, ao Ser, às Ideias como entidades em si mesmas, sublimes, alcançáveis apenas por uns poucos iluminados. Se fosse assim, a filosofia seria missão de experts, com uma linguagem hermética, inacessível como bem cultural, não poderia sequer ser transmitida nas escolas, nos ambientes culturais abertos para um público mais amplo.
O uso do vocabulário especializado tem seu lugar, mas muitas vezes ele é o refúgio da pseudofilosofia. A erudição e a superespecialização são desculpas de intelectuais afetados e comprometidos com certa ideologia, que impede a reflexão, admite apenas a inculcação de noções prontas, que não passam pela discussão pública e livre de ideias e propostas para a sociedade.
Para a filosofia dogmática (ver domagtismo neste blog), os conceitos se fixam como se fossem universais, devendo ser aceitos sem pensar, automaticamente, como palavras de ordem.
Ora, para Dewey, nem há o absolutamente ideal, o Ser em si, a Realidade Última, a Verdade Absoluta, nem o real como algo inerte, acabado que pode ser conhecido e percebido sem erro, sem dúvidas.

"A filosofia, diz ele, não pode resolver o problema da relação do ideal e do real. Este é um problema mesmo da vida. Mas a filosofia pode ao menos aliviar a carga da humanidade em lidar com o problema, emancipando a humanidade dos erros que a própria filosofia fomentou. Ela pode facilitar os passos certos que a humanidade pode tomar na ação, tornado claro que uma inteligência solidária e integral trazida para dentro da observação e da compreensão de eventos e forças sociais concretas, pode formar ideais que seriam suas propostas, as quais não devem ser nem ilusões e nem meras compensações emocionais".


O momento político atual deveria ser usado para isso, semear ideais que podem ser realizados, melhorar as relações sociais, e não usar o poder que foi concedido legitimamente ao Presidente da República para impor um projeto pessoal de permanência no mando de toda uma nação, fazendo pouco das instituições.

O "Pensador" de Rodin é solitário e ensimesmado, como ilustrado acima.

Neste momento, não é a melhor representação da filosofia. Talvez "O Semeador", de Zaco Paraná seja uma imagem mais forte e mais ativa. (Praça Eufrásio Correia - Curitiba)

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A Filosofia e seu papel na cultura ocidental

Diógenes de Laércio relata a seguinte passagem: "Conta-se ter dito Heráclito a estranhos que o queriam visitar e espantam-se ao vê-lo aquecer-se junto ao fogão: podeis entrar, aqui também moram deuses". Já escrevi sobre esse trecho em outra postagem. Acho-o muito significativo, pois traz o filósofo e a filosofia para o cotidiano. Na modesta cozinha, junto ao fogo, preparando comida, também há deuses, há o ideal, o nobre, o que de mais sublime os homens podem almejar.
Essa união entre real e ideal tem alimentado a filosofia e nos conduz à reflexão sobre nossa essência humana, o que pensamos sobre nosso modo humano de ser.
Em tempos antigos, os filósofos projetavam como ideal a sabedoria da alma, do logos, do pensamento: "O logos, que pertence à alma, diz Heráclito, aumenta a si próprio". Quer dizer, o logos retira de si a capacidade de conhecer, de chegar à sabedoria. Sabedoria pode ser interpretada como o encontro consigo, como uma espécie de revelação, de iluminação.
Guerra e Paz é um formidável romance de Tolstói sobre a nobreza russa e a guerra contra Napoleão. O príncipe André, um dos personagens principais, defendera, antes de ir para a guerra, os ideias de força e expansão de Napoleão. Mas na batalha, ferido pelo exército francês, e em meio a cadáveres e à dor, contempla o céu. Como poderia este céu estar ali e ele tê-lo ignorado? É o logos que o leva essa revelação:

"Não há nada, nada decerto, senão o pouco de valor de tudo quanto posso compreender e a grandeza desse não sei quê que me é incompreensível, mas que nem por isso deixa de ser a única coisa importante".
Napoleão passa por ele, pede que o socorram. Mas para o príncipe André, Napoleão já perdera a grandeza...

O que mudou na filosofia? Da alma platônica imortal, sede da sabedoria, cuja prisão é o corpo, até o corpo vigiado e punido, cuja prisão é a alma, como analisa Foucault na atual sociedade disciplinar -, o foco da filosofia mudou, há outros objetos de análise (a linguagem, a sociedade, a história, entre outros).
O que não mudou foi o uso do logos para chegar aos limites do poder reflexionante. Sobre o que pensar, e o que analisar, é possível expandir com o passar do tempo histórico e com as dificuldades e problemas novos. Mas há limites intransponíveis, a lógica do pensar, o que é possível pensar, as fronteiras da significação e das formas de significar.
Mistério. O incompreensível, como diz Tolstói.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

O que é estrutura? O que é signo?

Toda construção precisa de estrutura. Estruturas são artificiais, são criadas por meio de signos, de símbolos, de traçados, de sinais. Todos eles comunicam algo, levam à constituição de algo, visualizam algo, estabelecem padrões para significar algo para alguém. Assim, uma árvore não é uma estrutura, seu desenvolvimento é natural. Já um prédio, uma obra de arte, um texto, uma mensagem de propaganda - em todos eles há símbolos, signos, materiais que carregam uma significação, precisam que alguém os decifre, leia, possa compreender e dê um destino, faça uso apropriado.

Um sinal de trânsito se estrutura com traços, desenhos gravados em um material que é físico (a placa de madeira, de plástico, de metal), recortado em tamanho padrão, com cor determinada e codificada, resultado de convenção internacional. Sinaliza proibido com traçado transversal, estacionar com letra, há uso de figuras, de símbolos.





A linguagem humana é mais complexa. Além de sons, produção vocal e sinais sonoros, imediatamente colados a esses sons, há o significado deles.

O primeiro estruturalista foi F. de Saussure (1857-1913). Ele definiu signo como dois lados da mesma moeda: de um lado os significantes audíveis, o que se ouve quando alguém fala; de outro lado os significados: aquilo que se compreende.

A fala é uma sequência de signos estruturados conforme regras. Não língua sem regras. A criança assimila a língua paterna como um todo, com regras para formular frases, associando a mensagem ouvida com a situação, o objeto, a história que ela ouve, enfim, todas as mensagens são lidas. E tudo quer dizer algo, tudo "fala": o tom da voz, a expressão da face, gestos, e a impressionante capacidade que a linguagem tem de criar, apenas pelos signos, desde a presença do que não está aí ("papai vai chegar amanhã!"), até um pedido, uma história, um alerta para se cuidar, uma palavra para consolar, a criação literária, narração, poesia, texto jornalístico, mensagem, e-mail.

Somos invadidos pela estrutura de signos, de símbolos (a face de um ícone do esporte, do rock, da política), de sinais. Ignore um sinal de trânsito e lá vem multa, acidente, e mesmo a morte.

Ofenda com uma palavra, e você pode ganhar um inimigo.

Elogie com uma palavra, e você pode ganhar um amigo.

As estruturas imitam as coisas ao reconstruí-las ou contruí-las seguindo um modelo, algo produzido pela cultura, pelo intelecto.
As palavras não estão no lugar das coisas, elas significam, estruturam a realidade. Os produtos humanos "falam", como você sabe diferir entre casebre, casa, mansão, palácio? Pela relação entre significar e criar artefatos. Como alguém pode dizer: "Você mora num palácio!" com ironia para significar que a casa é de fato precária? A compreensão depende do dito, da situação e do contexto, da intenção do falante.
O que se pensa, depende de signos, como se pensa, depende das regras para combinar signos.

Para dizer a ausência, o não, é preciso dizer "não". Para dizer que nada é para sempre, é preciso dizer "nada". "Sempre" não designa nada na realidade. Porém, sem advérvios, pronomes, preposições, ficaríamos sem tempo, sem cronologia, sem hoje, sem amanhã...

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

liberdade de imprensa, liberdade de expressão

Uma das conquistas da democracia é a liberdade. Filosoficamente e politicamente, liberdade é um conceito muito amplo, fácil de definir, difícil de praticar. Esse conceito se torna um requisito de constituições europeias e dos EUA, desde o século 17.
O direito e o dever de promover a liberdade dos cidadãos de decidir, de opinar, de participar, de intervir, tem enfrentado vários obstáculos, entre eles, a dificuldade para obter informação precisa, responsável, ampla, direta, clara, acessível.
Em primeiro lugar, jornais são pagos; o acesso pela internet, também, a não ser em certos locais (empresas, escolas). E isso restringe a informação. A TV com os noticiários, atinge uma minoria que está informada, por exemplo, sobre o conflito no Oriente Médio, onde fica o Afganistão, qual é o IDH do Maranhão, etc. Como a maioria não compreende a mensagem, troca de canal, prefere o entretenimento.
O público informado é composto de profissionais liberais, estudantes universitários, comerciantes, industriais, enfim, se você pedir ao entregador de pizza informações sobre o que ocorre na Câmara dos Deputados, ou quem é Serra, o que fez Dilma, ele não sabe. Ele precisa viver, é um sobrevivente. Sem tempo, sem condições de acesso à informação, sem capacidade de ler um parágrafo de um jornal e compreender a mensagem, pode-se dizer que essa pessoa não é livre!
Na população brasileira, há 55% de analfabetos funcionais. A informação que atinge esse público vem filtrada por palavras de ordem, pelas imagens da mídia, pelo ouvir dizer, pela propaganda.
Nos últimos anos a informação sobre o governo vem da propaganda oficial, por isso mesmo é lamentável que Lula se queixe da imprensa, da TV. Além dos veículos oficiais de propaganda do governo federal, há o uso massivo dos meios de comunicação de massa para alardear feitos e maquiar o que não é realizado. E os jornais publicam tudo o que Lula diz e faz! Mas também publicam o que o governo fez de errado, jornalistas opinam, é seu dever. Se isso irrita o governante, ele que trate de ouvir, de ler, de atentar para essas opiniões e não desqualificá-las e pôr sindicatos para protestar contra a imprensa. Aliás, a própria imprensa noticiou isso...
Fazer a massa de desinformados acreditar que não há e nem haverá presidente melhor, discursar em favor de uma canditada imposta, que eu chamo de "aprendiz de feiticeiro", só teve resultado pelo avanço na economia, por seguir a antes aviltada "cartilha do FMI", governar de acordo com princípios econômicos comprovadamente eficazes, que nada têm de ideológicos.
Voltando à liberdade como princípio das constituições democráticas e do estado de direito, seu exercício depende de espaços públicos nos quais a troca comunicativa obedece à possibilidade universal de acesso, ao empenho em buscar mais e melhores informações, que possam ser trocadas, respondidas, pensadas, em resumo, o que Habermas chamou de ação comunicativa, baseada nos pressupostos de validez criticáveis: verdade, atendimento a normas de convivência social, e empenho pessoal, veracidade.
Esse público, entretanto, para chegar a esse nível de responsabilidade e liberdade, precisa de educação, de muita educação e de qualidade, calcada nos mesmos princípios políticos e éticos prezados pela sociedade. Por isso não há democracia sem educação, não há democracia sem liberdade, e não há liberdade sem educação. Trata-se de um círculo virtuoso.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Pensamento e linguagem

É possível haver pensamento sem linguagem? Filósofos como Platão, Descartes, Kant, Bergson, acham que a linguagem é manisfestação de algo "superior", o intelecto, as ideias, a mente, a subjetividade, a razão.
Outros, como Peirce, Dewey, Witgenstein, Habermas, Davidson, Rorty, em geral os linguistas e os estruturalistas, consideram que as capacidades de raciocínio, pensamento, recordação, memória, associação, enfim, o que se rotula como "mental", depende do aprendizado de signos, de sinais, de apreensão de imagens, leitura dessas imagens. Enfim, é necessário algum tipo de comunicação articulada, estruturada, para haver processo mental. E, como condição necessária, a fisiologia do cérebro. Mas essa não é condição suficiente, sem aprendizado, não há linguagem, portanto, não há pensamento.
Assim, animais superiores (cachorros, por exemplo) podem aprender que "Cuidado", pelo tom pronunciado e associado a certa situação, exige uma pronta resposta. Mas não podem compreender o aviso "Tome cuidado ao atravessar a rua".
Crianças, sim. Elas aprendem primeiro a se manifestar com balbucios, gestos, visualizam e memorizam pessoas, associam sons e signos a situações, começam a falar e simultuaneamente raciocinam, memorizam, são capazes de afeto, e aos, poucos de julgar, de avaliar, de corresponder com atitudes, reagir, etc.
Sinais são criados, são convencionais, como os de trânsito. Signos linguísticos são articulados, podem ser ditos, compreendidos, transmitidos por escrito, oralmente, por gestos. Atos de fala como uma afirmação, uma ordem, um pedido, são imediatamente interpretados pelo contexto em que são ditos, pelo tom da voz, pelo gesto que eventualmente os acompanha.
A palavra "cão" não morde, quer dizer, o signo não é o objeto que ele indica, expressar pela linguagem algo para alguém, isso é da cultura humana, é aprendido, varia conforme as línguas.
As infinitas variações da linguagem dependem de uma estrutura básica, de um vocabulário, de regras assimiladas pela criança quando exposta à linguagem. Sem essa exposição, ela não pensaria, isto é, não poderia reter significações, portanto, não memorizaria, não faria associações, não entenderia uma mensagem.
Wittgenstein disse que se um leão pudesse falar, não o compreenderíamos. Isso porque falar é usar diferentes jogos de linguagem como contar uma história, rir de uma piada, usar expressões para significar uma infinidade de situações, empregar instrumentos de medida, saber o que significa dizer "meu computador foi comprado a prestação"; "a próxima parada é Praça Tiradentes"; "venha cá!"; "sua doença foi finalmente diagnosticada". Além disso, há textos diversos, como os comerciais, literários, jornalísticos, etc.
Um leão mandaria que o outro se cuidasse ou que se arriscasse? Ou a própria questão é absurda? Ao que tudo indica, cuidar é um comportamento humano, correr risco é algo com significado para culturas humanas, implica, por exemplo, sofrer acidente, morrer. O leão não "sabe" que vai morrer... Ele reage, agride, se defende, mas isso somos nós que dizemos, não ele.
Talvez por isso filmes de ficção científica sejam em sua maior parte tão ridículos! Seres que falam e pensam como nós, isso é simplesmente absurdo! Observe que usei o termo "pensam" no sentido de entender algo, poder agir e reagir em certas situações. E tudo isso pode ser dito em várias línguas, com variações de uso e de significado em cada uma delas!
Obs.: para esta postagem, foi preciso usar a linguagem... Não é incrível?

sábado, 4 de setembro de 2010

Ética na política

O exercício da política ou bem tem compromisso com princípios éticos ou é um toma lá dá cá no balcão do poder. Para chegar ao poder ou para permanecer no poder, vale tudo. Desde os métodos mais sórdidos até aqueles que burlam a confiança dos cidadãos nas instituições.
Os políticos que contam com recursos como os da máquina administrativa, distribuição de cargos, programas populistas, propaganda massiva dos feitos e sistemática ocultação dos problemas do país -, agem sem nenhum escrúpulo.
Para Aristóteles, o homem é por natureza um animal político, por natureza ele deseja se associar em comunidades, desde a família, até o estado. Ele concebia a política como uma prática que visa a felicidade de toda a comunidade. Esse é o fim da associação política, promover a virtude, o bem coletivo. Se visar interesses particulares, de um grupo, de determinado partido e assim prejudicar o bem comum, não é política.
O homem dotado de prudência e de virtude atinge o máximo de suas realizações, é o melhor dos animais, mas quando afastado da lei e da justiça, se torna o pior dos animais. Quando abusa, quando pratica a injustiça, se torna uma fera, diz Aristóteles.
A virtude da justiça é um valor político, pois a comunidade política tem como regra máxima, a prática da justiça.
Ora, o que se vê nessas eleições, de parte de seu dirigente máximo, é gozar das instituições, soltar palavras ao vento, nadar na popularidade.
Os discursos fascistas se baseavam no conceito de pai, de todo poderoso, de árbitro final de todas as questões. Justamente para coibir o pensamento livre, manietam o rebanho. "Siga o chefe, e você terá o melhor dos mundos!"
Incrível que todas as realizações econômicas ou vieram da iniciativa privada, ou de "laissez-faire", o governo não só deixa estar, como incentiva a liberdade de mercado. Na outra ponta, extorque com impostos. Exatamente o que a esquerda do discurso pronto contra o neoliberalismo pregava, foi ignorado. É evidente, pois no sistema de capitalismo avançado, é impossível pôr a economia a ferros pelo Estado. Mas isso não é dito.
Como se vê, um partido que pregou o discurso da ética, foi o que mais a feriu quando no poder.
Um partido que pregou o discurso contra o neoliberalismo, calou, aceitou e praticou a política liberal, de mercado!
Quando a aprendiz de feiticeiro, no poder, mostrar suas garras de terrorista, será tarde...

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

O que é pragmatismo?

O jornalista Luís Fernando Veríssimo escreveu em sua coluna há algumas semanas, que "pragmático" virou sinônimo de algo sujo. De fato, o termo vem sendo usado para designar pessoas, em geral políticos, que agem sem nenhum escrúpulo, em seu próprio benefício, sem prestar contas, passando por cima de procedimentos legítimos e legais.

Levar vantagem em tudo, esse foi o mote de uma campanha de cigarro na TV, na época em que fazer propaganda de cigarro ainda não era proibido. O jogador Gérson bate com um maço de Vila Rica na cabeça e diz:"É preciso levar vantagem em tudo", o que ficou conhecido como "lei de Gérson". O próprio ex-jogador abomina essa propaganda, não se conforma com o juízo de valor que ficou colado a sua imagem.


Em filosofia pragmatismo é uma corrente filosófica que nasceu no final do século 19, com uma intenção muito diferente!

Pragma no grego significa ação, trata-se de uma filosofia voltada para a prática, é a ação e os resultados produzidos que importam, muito mais do que conceitos abtratos como mente, ideia, abstração. Se temos uma mente, não é porque somos seres espirituais presos a um corpo, mas é porque temos uma inteligência que evolui junto com necessidades práticas de se haver no mundo, lidar com situações problemáticas, que exigem solução.

O conceito de verdade de W. James é uma crítica à concepção de verdade como cópia da realidade. Se há na parede um relógio cujos ponteiros estão parados, a pergunta é por que razão? Alguém esqueceu de trocar as pilhas, vale a pena consertar? E não, vejo um relógio e tenho a imagem dele na minha mente e isso é verdade.

Para J. Dewey, as coisas têm uma natureza interconectada, elas se relacionam de um modo que requer resposta, reação, que visam resultados, importam as consequências da ação. O que vale nesse processo é o uso inteligente da experiência, o que foi aprendido ao longo de gerações. A ação eficiente, que experimenta as diversas situações e lida com elas, vale mais do que a contemplação das ideias. Ao invés de construir castelos no ar, diz Dewey, é melhor construir casas adequadas à vida de seres humanos com suas necessidades concretas.

A ação é transformação constante, melhoria de nossas condições, em educação, em moral e em política. Não há democracia sem educação, nem educação sem democracia, afirma Dewey.

Portanto, pragmatismo filosófico é o oposto do político maquiavélico, aquele que usa dos bens públicos para atingir seus objetivos, seus fins de sucesso pessoal a qualquer preço. Assim, passam por cima da democracia, um regime aberto em que se deve dar satisfação ao público de todos os seus atos.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Foucault e o conceito de loucura


Em sua tese de doutorado A História da Loucura na Idade Clássica ( 1961), Foucault trata de um tema estranho à academia e que inova no modo de abordar a loucura. Ele a situa na história a partir do século 15, até o tratamento asilar que surge em fins do século 18 e que se transforma no hospital psiquiátrico moderno.


O rosto, os gestos e atitudes da loucura sempre foram reconhecidos, mas o modo de "tratar" e de lidar com a loucura sofreram transformações que seguem ou são criadas por diferentes necessidades sociais e econômicas. Nem sempre o louco foi percebido como doente mental, alvo de intervenção médica. A "Nau dos Loucos" no fim da Idade Média (quadro acima de Bosh), percorria os portos e ora deixava essas estranhas figuras para serem encarceradas, ora seguia com elas de porto em porto, sem que representassem uma ameaça à razão ou à ordem social. Isso só aconteceu mais tarde, com a criação do Hospital Geral, que como o nome indica, encarcerava doentes, vagabundos, loucos. Os mais violentos eram presos a correntes, o chão era feito de tábuas vazadas para que as fezes caíssem na palha.


Prender ou não e quem prender, dependia da falta ou excesso de mão de obra. Olhar e intervir no Hospital Geral se deveu, em parte, aos protestos de presos políticos da Revolução Francesa, que exigiam tratamento diferenciado daquele dado aos pobres e delirantes. Finalmente os loucos foram separados dos demais. Na França, Pinel inaugura o asilo, o mesmo fez Tuke na Inglaterra. A obediência, o rigor disciplinar, o poder do médico de acalmar o doente, fazer com que ele reconhecesse seu "erro", olhar a si mesmo e acabar por admitir que delirava, voltar à realidade, tudo isso põe a loucura num novo patamar, o do olhar objetivador, médico, científico. O louco é libertado das correntes e preso a um novo ordenamento de saber: a loucura se torna doença mental.


O passo seguinte para as instituições psiquiátricas que combinam a hierarquia do asilo com choque, química e intervenções cirúrgicas foi o que o próprio Foucault verificou, logo após se formar em filosofia pela Sorbonne, quando foi voluntário no Hospital Sainte-Anne.


O sofrimento do doente, o internamento, como tratar, se há tratamento, o que é doença mental, como diagnosticar, todas essas questões são hoje levantadas. Não há resposta clara. Há um lado trágico da loucura presente nas obras literárias, na pintura, no cinema. Há outro lado em que se pretende enquadrar como doença sujeita a algum tipo de intervenção.


Em suma, pouco sabemos, somos confrontados com pessoas e seu sofrimento. A situação é melhor quando se recusa o conceito de loucura e se prefere o de doença mental? O que é o físico e o mental? O que é comportamental e o que é experiência pessoal? Com tantas dúvidas, que se tenha, pelo menos, cautela. Para Foucault são acontecimentos na ordem do saber que têm efeitos de poder.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Educar e/ou punir

Kant (1724-1804), filósofo alemão, marcou a diferença entre público e privado em um dos escritos mais brilhantes da história da filosofia (O que é a ilustração). Pensar por si mesmo é sair da dependência, da tutela, seja ela qual for. Um público esclarecido, se for dada a ele liberdade, é capaz de fazer uso público da razão, de questionar e decidir.
Falar em nome de sua própria pessoa difere de se manifestar enquanto assume um cargo ou uma posição notória, pois isso exige o cumprimento de leis e de regras. Exemplo: um sacerdote pode dar sua opinião pessoal a respeito da proibição da Igreja Católica de usar preventivo nas relações sexuais. No púlpito, para o público, deve respeitar a doutrina católica.
Essa distinção entre público e privado importa e muito na atual discussão sobre legislar ou não em matéria da vida privada. O estatuto da criança e do adolescente deve oferecer proteção legal. Abuso, violência, devem ser denunciados e punidos? Sim!
Mas, até que ponto dar palmadas nos filhos (as) é ação privada que deve ser regrada e punida por instrumentos públicos? Como e quando intervir e punir? E por que?
Na década de 50 a repreensão era com palmadas, cintadas (!) e uma vara de marmeleiro poderia ser usada em caso de desobediência.
O que mudou? A percepção da família pelo Estado, o papel da família como núcleo exemplar, como sustentáculo do bom funcionamento do governo, como exigência social e moral de um lugar asseado, de correção, de proteção, de educação, de prevenção de todo e qualquer desvio.
O que os pais e mães devem fazer é policiado para evitar violência social. E evita?
A punição deve ser não violenta (castigue, limite, mas não bata): essa é a mais nova injunção do setor público sobre o privado. Mas e quando a criança sofre ameaça verbal? Fica com medo, insegura. A legislação deveria também proibir ameaças!?
A distinção de Kant está borrada. O Estado, a economia, a sociedade e os governos regram a conduta das famílias. A própria família aceita de bom grado a vigilância.
O ideal seria que pais assumissem a responsabilidade pela melhor educação possível, que soubessem discernir com equilíbrio e amor o modo como educam e, eventualmente, como punem. Uma questão crucial: se há necessidade de punir, isso já não é sintoma de que algo vai mal ?
A sabedoria dos pais deveria valer mais do que regras e códigos ...

domingo, 11 de julho de 2010

A boa vontade não custa nada

Algo que chamou a atenção no caso do goleiro Bruno, foi a imprensa de modo geral voltar-se para o efeito sobre os pequenos torcedores do Flamengo. Para os fãs o jogador é bom, mais do que bom de bola, um herói.
Ora, suspeito de assassinato, ele se transformou em vilão. Como entender o mal? Como explicar que um ídolo faça o mal?
Para Hobbes o homem quer devorar o próprio homem, em uma eterna luta. Para Rousseau, ao contrário, o homem nasceu bom, a sociedade é que o corrompeu. Freud também culpou a civilização por bloquear os impulsos.
Uma visão diferente acerca do mal, é a de Santo Agostinho. O mal não é uma coisa, portanto não depende de Deus, não é algo criado. O mal vem da vontade que é livre. Há o livre arbítrio, a livre escolha, ou então não é mais vontade. Mas como pode a vontade escolher matar alguém que tem nos braços um filho seu?!
Quando falta força, quando a decisão abandona a fortaleza, a coragem, as virtudes pelas quais se consegue vida plena, vida feliz, é a própria vontade que assim agiu. Mas não a boa vontade.
Cultivar a boa vontade é difícil, requer sacrifício, luta, empenho, boa educação, hábitos cultivados desde cedo, pela pessoa, única responsável pelos seus atos. De nada adianta encontrar culpados, ou desculpas. Ele foi fraco porque, coitadinho, não teve chance, a sociedade é que é má, os pais o abandonaram, etc. etc.
A disposição para agir bem depende da vontade que extrai dela mesma a força para se encaminhar, ou seja, encontrar seu caminho.
Pode-se perder a fortuna, amigos, a saúde, mas a boa vontade depende apenas de nós, ela nos pertence, é gratuita, basta que a reconheçamos e que tenhamos a força moral necessária para cultivá-la.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Sobre cigarras, formigas e leões

Na fábula a cigarra aproveita ao máximo o calor, o dolce far niente, canta até não poder mais, enquanto a formiga não para sua faina. Quando chega o frio, formigas sobrevivem e cigarras padecem.
Em nossa vida fazemos um pouco como uma e como a outra, gozamos e acumulamos. A luta diária pela sobrevivência tem sido acompanhada ao longo de nossa evolução por rituais de comemoração, festas, celebrações.
O que o leão tem a ver com isso? Ele devora e segue sua natureza absolutamente selvagem. É indomável. Ser bom, ser o bonzinho não cria, não produz, não enobrece. "Criar novos valores - disso nem mesmo o leão ainda é capaz: mas criar liberdade para nova criação - disso é capaz a potência do leão", diz Nietzsche em Assim Falou Zaratustra.
Quer dizer, além de diversão e produção, é preciso arte, criação, novos valores, novos modos de ver, de viver. Mexer ainda que um pouco no já feito, nos hábitos, no automatismo a que muitas vezes reduzimos a condição humana.
Heidegger, filósofo alemão que muitas vezes é lembrado como colaborador do regime nazista, felizmente produziu filosofia da melhor qualidade. Admirava Nietzsche, de quem reteve a crítica à filosofia de tipo platônica por esta preconizar a contemplação das formas ideais e essenciais como o único modo de ascender à verdade. Verdade para Nietzsche e Heidegger pertence a este mundo, é produção nossa, algo com que se lida. E o que Heidegger diria sobre cigarras, formigas e leões?
Há existências limitadas a ir de flor em flor, borboleteiam (borboletas, mais um animal para compor a metáfora) que não se detêm em nada, que só se abastecem, e, portanto, nunca estão plenas. Vivem na insatisfação, reclamam, atingem no máximo a profundidade de um espelho d'água. Outros, pelo contrário, são autênticos, corajosos, seguem um rumo, mesmo sabendo ser ele difícil. E, principalmente, ao contrário da cigarra com seu canto vazio, ao contrário da formiga trabalhadora e submissa, sabem enfrentar sua condição de finitude. Sabem que vão morrer. Ser para a morte não significa desistir da vida, e sim penetrar em nossa existência levando em conta a temporalidade. Para isso é preciso mais do que coragem leonina, é preciso ser.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Felicidade por decreto

Há um movimento na Câmara dos Deputados em Brasília para aprovar legislação sobre o direito à felicidade como dever do estado.
Ora, nem os filósofos têm uma noção aproximada ou unânime sobre o que seja felicidade, nem se a cada pessoa do mundo for perguntado sobre o que entendem por felicidade daria uma resposta satisfatória para si e para os demais.
Pode-se chegar a algumas definições, nas quais certamente entram os conceitos de bem-estar, de saúde, de realização profissional, seguir uma vocação, gostar daquilo que faz, paz de consciência, estabilidade emocional, sólidos laços de família e de amizade. É provável que incluam a noção de que as alegrias são passageiras e de que a felicidade é duradoura.
Nada disso, a meu ver, pode ser garantido por legislação!
O estado provedor vem se transformando em estado arrecadador. Os brasileiros trabalham mais de três meses ao ano apenas para pagar impostos e recebem muito pouco em retorno, como todos sabem.
Imagine a burocracia para fazer funcionar o decreto da felicidade. Quem cuidará disso? Uma secretaria especial da presidência da república? As assembléias estaduais teriam um auditor para medir o grau de felicidade de seus diletos eleitores? Ou quem sabe a felicidade seria monitorada a partir das câmaras de vereadores ou pelas prefeituras, e haveria em cada município um responsável pela felicidade de seus cidadãos.
Cartazes seriam espalhados pela cidade, dentro dos ônibus, nos espaços públicos: "Todos têm direito à felicidade"; "A felicidade ao seu alcance"; "Programa 'Cidadão feliz'", e outras sandices do gênero.
Vejamos o que os filósofos dizem. A boa vida, a vida conforme a virtude, o equilíbrio traz felicidade, segundo Aristóteles. Para isso é preciso esforço, hábitos que vêm da educação.
Para Sêneca, basta a tranquilidade da alma, "caminhar numa conduta sempre igual e firme, sem se afastar da calma, sem se exaltar, sem se deprimir".
Sobre a busca da felicidade, diz Sto Agostinho: "Como procurar a vida feliz? Não a alcançarei enquanto não exclamar: 'Basta, ei-la'. Mas onde poderei dizer estas palavras? Como procurar essa felicidade?... Feliz é aquela vida que todos desejam, não há absolutamente ninguém que não a queira? Onde a conheceram para assim a desejarem? Que possuímos tal desejo, é certo. Agora, o modo é que eu não sei. Há uma maneira de ser feliz, quando cada um possui a felicidade em concreto. Mesmo aqueles que não têm a felicidade e nem sua esperança, devem experimentá-la, pois, do contrário não desejariam ser felizes".

segunda-feira, 7 de junho de 2010

A sexualidade como dispositivo histórico para Foucault


A subjetividade na modernidade ocidental se constitui em larga escala pelo saber de si, pela vontade de saber. Essa vontade de saber é conduzida pelo dispositivo histórico de sexualidade. Esta não é uma pulsão, uma realidade profunda, subterrânea, mas uma rede de estímulo a prazeres, de incitação dos corpos, de intervenções médicas, de discursos, de práticas de normalização que se apoiam uns nos outros e são conduzidos por estratégias de saber e poder. No lugar da sexualidade/pulsão, o biopoder cria uma sexualidade na qual se pode e deve intervir, que é induzida por discursos produzidos em geral na área médica (psiquiatria) e na área da psicanálise. O poder, tal como Foucault o analisa, produz discursos de verdade pelos quais "somos julgados, condenados, classificados, obrigados a tarefas, destinados a certa maneira de viver ou a uma certa maneira de morrer". As ciências da vida, as ciências humanas, as ciências "cartográficas", a estatística, permitem dominar e controlar a vida, a saúde, a sexualidade. O biopoder se constituiu no século 19 em função da necessidade política de moldar e conservar a vida através de tecnologias que criam algo novo para gerenciar, a população; esta é governável, pode ser transformada e regulada. Ao biopoder importam taxa de natalidade, taxa de mortalidade, modos e níveis de reprodução, a fecundidade. O que exige a formação de saberes rigorosos e um controle político cerrado. É preciso examinar, analisar, cuidar e estabelecer os custos das doenças que incidem sobre a população. É nesse campo que o dispositivo de sexualidade tem a função de regular o sexo, restrito ao leito conjugal, vigiado pela família, que, por sua vez é controlada pelos mecanismos do biopoder. Vem daí a novidade na história ocidental, considerar que nossa verdade está escondida num ponto de difícil acesso, a sexualidade, que pode e/ou precisa ser dita, confessada. Por isso a sexualidade é aquilo de que mais se fala, para o ouvido "certo", na hora "certa". A tese de Foucault é a de que há muito mais uma "explosão discursiva" do que repressão. O próprio fato de esconder, de velar, implica revelá-la, tanto faz se é um especialista ou o amigo(a), namorado (a). Sequer percebemos que isso nos prende, nos controla ao invés de libertar. Seríamos muito mais livres fora desse esquema da vontade de saber, novos prazeres, novos estilos de vida nos tornariam mais criativos, menos sujeitos ao controle pelo exame do desejo, mais abertos para o prazer.

domingo, 23 de maio de 2010

Freud explica!?

Não, acho que Freud não explica, na medida em que não há o que explicar sobre o comportamento, os desejos, angústias, temores, valores nossos, dos seres humanos. Toda teoria científica com pretensão de explicar, converter, elucidar e pôr um ponto final em nossas interrogações e conflitos, é falha.
Freud contribui com algumas análises interessantes, como a de que o inconsciente move nossas intenções, que ele é inacessível, que não podemos apreendê-lo. Se conseguíssemos atingir os mecanismos psíquicos do inconsciente, é claro que tais mecanismos passariam a ser conscientes. Então temos apenas pistas do que acontece no mais fundo do nosso psiquismo.
Porém, não foi apenas Freud que supôs que algo desconhecido nos move. Hobbes, no século 17 já falava em forças impossíveis de controlar, como o instinto de conservação. Naturalmente egoísta, o homem luta por mais e mais poder, os fracos sucumbem e os fortes sobrevivem.
O que Freud apresentou como novidade foi a teoria da sexualidade. Somos movidos pela pulsão sexual, a repressão da sexualidade explica, inclusive, haver civilização. O inconsciente é movido pela pulsão sexual , esse impulso é inelutável, está presente em todos nós, da mesma forma e desde sempre, tanto na espécie humana, como em cada indivíduo. Mas o tempo todo ele é reprimido pelo nosso eu e pela sociedade.
Há quem conteste. Wittgenstein não aceitou essas ideias. Freud afirma que sonhos são realizações de nossos desejos. Sonhos, diz Wittgenstein, tanto podem proteger nosso sono, como perturbar, podem tanto preencher um desejo, quanto impedir um desejo. Quantos sonhos são terríveis ou prazerosos! Não há uma teoria dinâmica dos sonhos, a psicanálise não é uma ciência: uma teoria científica precisa ser verdadeira ou falsa. As explicações de Freud para as doenças mentais, para a loucura, em nada ajudaram. Pelo contrário. A busca da causa do sofrimento psíquico na vida sexual da criança, além de não se justificar (todas as crianças teriam um mesmo complexo, todas odiariam ou amariam seu pai ou sua mãe - mas isso é estranho, não?), nada explica sobre doença mental, o sofrimento psicológico. Além disso, diz Wittgenstein, qualquer idiota apela para essas pseudo-explicações, e eu acrescentaria, com o ar de quem entende, decifra e aposta que anos no divã podem reconciliar a pessoa com seus problemas!
Foucault também critica Freud, não por afirmar que desejos nunca são supridos, nem pela teoria do inconsciente, mas pela teoria da repressão sexual. Para Foucault a sexualidade é um dispositivo histórico, cultural e não biológico, instintivo. Foi inventado! Experimente dizer a um budista ou a um muçulmano ou a um cristão que sua vida se reduz à pulsão sexual. Não faz sentido para nenhum deles, e todos vivem muito bem, obrigado. Ou não, mas isso não tem nada a ver com a sexualidade.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

O conceito atual de filosofia

Desde os primeiros filósofos até o século 19, portanto, até o início da modernidade, a filosofia tinha uma missão de ordenar e de fundamentar todos os conhecimentos. Aristóteles a considerava como a “rainha das ciências”. Para Descartes a metafísica era a raiz do saber. Para Kant a razão era suprema. Desse modo a filosofia poderia ser a base para ciência, a moral, o direito.
Atualmente, a maioria dos filósofos considera que ela colabora com todos os saberes. Não há mais uma concepção dogmática e impositiva: se os conceitos nascem de uma cultura e de uma história, a tarefa filosófica é a de pensar a diversidade das culturas em colaboração com a arte, a moral, o direito, as ciências.
Nossa época, a época da modernidade possui estruturas de racionalidade próprias, como a informação e a ciência; possui uma ética descentrada (não mais ditada pelas religiões), pluralismo de credos e ideias, um saber científico renovável, autonomia na arte e no direito.
A filosofia pode e deve fazer a mediação entre esses saberes, ensejar o diálogo entre eles sem pretender totalizá-los em uma única grande teoria que pudesse explicar o real de modo certo e indubitável.
Essa nova perspectiva leva a filosofia a fazer uma leitura de nossa época e propor caminhos alternativos para que se possa pensar com autonomia, liberdade, ampliando e renovando as experiências com o mundo. É um importante instrumento para pensar nossos problemas e dificuldades. Quando se questiona como e por que tal ou tal saber foi produzido, tal ou tal conceito é usado, o pensamento como que se ilumina, surgem novas ideias, mais criativas.
Ainda assim, há culturas e sociedades até hoje fechadas, impermeáveis, sectárias. Pense no Irã, no fundamentalismo islâmico, ou nos ditadores de alguns países africanos e de alguns vizinhos nossos, risíveis e farsescos, nem por isso menos perigosos.
Enfim, a filosofia pode mudar o modo de ser e de pensar de uma pessoa, e, às vezes, de toda uma cultura.
"Eu discordo de que haja um conceito ideal de exatidão dado a priori, como tal. Em épocas diferentes nós temos diferentes ideais de exatidão; e nenhum deles é supremo". (Wittgenstein)

segunda-feira, 26 de abril de 2010

O conceito de filosofia

É comum pensar que a filosofia é inútil ou que há tantos conceitos de filosofia quantos são os filósofos.
Ok, digamos que isso esteja correto. Mas o que se deve entender por utilidade? A do martelo? A da receita culinária? A de um sinal de trânsito?
Neste sentido, a filosofia é inútil, contemplativa, pura reflexão, ideias que apenas servem para se ter novas e mais ideias. Eu costumava dizer aos meus alunos: tudo contitunuará tal como está, com ou sem a filosofia...
Então, para que filosofar? A filosofia é ensinadora, tem um uso na formação pessoal, alarga horizontes, sem ela não saberíamos como pensar as situações a partir de um ponto de vista menos comprometido com casos particulares, mais geral e mais aprofundado.
Quando se para (do verbo parar) para (preposição) pensar, surgem questões fundamentais, que a maioria dos filósofos fez e ainda faz: para que, por que, por que não, desde quando?
Algumas respostas são dadas pela ciência, outras pelas diversas religiões, e outras ficam sem resposta.
Ora, isso que acabei de escrever, é reflexão filosófica. A partir do momento histórico, na Antiga Grécia, em que pela razão são expostas dúvidas e perguntas, a narração mítica aos poucos cede lugar à reflexão dos primeiros filósofos.
Por exemplo, nos mitos se atribui aos deuses com suas iras, conflitos e lutas, a existência do cosmo. Os filósofos, pelo contrário, perguntam com sua própria cabeça, como tudo veio a ser?
E, ainda apenas pensando, refletindo, atribuem a origem a uma causa primeira, a um princípio geral, como o fogo, o ar, as partículas elementares.
Aos poucos a pergunta se deslocou para outras questões, como o que são as coisas que percebemos? São como as percebemos ou o que não percebemos é o que elas realmente são, isto é, sua essência?
A pergunta pela essência de todas as coisas dominou o cenário da história da filosofia até bem recentemente. Hoje as questões mudaram. Esse é um tema para a próxima postagem.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Democracia e educação

O filósofo norte-americano J. Dewey (1859-1952), inspirou o movimento da Escola Nova no Brasil, através de Anísio Teixeira.
Educar é uma tarefa de reconstrução contínua da experiência, a educação é para a vida social (e não para passar no vestibular...). O que isso significa?
Que a educação tem laços com o trabalho, com a família, com as relações econômicas, com a política.
A experiência para Dewey é um conceito bem geral, não se trata da experiência científica e sim das relações do nosso corpo, de todo nosso ser com a natureza, em que ambos se modificam. Esse foi e é um processo de evolução e de aprendizado humanos.
Na formação do caráter e da personalidade da criança e ao longo de todo o processo em que nos instruimos na escola formal, há por detrás algo mais amplo, mais sólido, a educação. O processo educacional está presente em toda a estrutura social, na formação da personalidade, no preparo para o mundo do trabalho, no desenvolvimento das capacidades intelectuais, na socialização da criança, na linguagem, na escrita, no raciocínio lógico.
A inteligência não é uma capacidade intelectual isolada, ela caminha junto com as experiências, com o raciocínio, se desenvolve com o cuidado e atenção oferecidos pela família e pela escola. Esse treino do pensamento é a base da liberdade genuína, a melhor das liberdades - a liberdade intelectual de agir e pensar com sua própria cabeça.
Para Dewey não há educação sem democracia e nem democracia sem educação.
Alguém bem preparado pelo estudo, terá também espírito crítico e transformador, e isso depende tanto da educação como de haver plena democracia. Em sociedades totalitárias a escola é puramente ideológica, partidária, serve para moldar pequenos "soldados" obedientes, dóceis, massa de manobra.
Nas democracias deve haver direitos iguais, liberdade de pensamento, garantia de que todos podem ter acesso à educação e saúde.
Por sua vez, o próprio modo de educar leva em conta a diferença, o respeito, a formação de valores, a liberdade de pensamento, a ação responsável - condições que só vicejam em regimes democráticos.
Pensem nisso antes de votar!

segunda-feira, 29 de março de 2010

Conceito de justiça

A cada crime, a cada ato de violência, ouve-se "Queremos justiça!". Trata-se da justiça obtida pelo direito, que é muitas vezes precária, lenta, cheia de percalços. Condenar o culpado é tudo o que se requer para que a justiça se estabeleça. Isso basta?
Justiça pode ser entendida como um valor, aliás, para Platão, ela é a virtude mais preciosa para a realização política na polis. A cidade ideal é aquela em que as pessoas têm um papel, uma função, cada um ocupa seu lugar no todo segundo sua capacidade. Artesãos, guerreiros, governantes têm suas funções específicas e realizam um tipo de valor: os primeiros realizam a virtude da temperança, da moderação, sua alma é sensitiva; os guerreiros defendem a cidade, sua virtude é a da coragem; os governantes devem ser sábios, sua virtude é a da sabedoria. Justiça é uma decorrência dessa distribuição.
O conceito de justiça que mais usamos na modernidade não é o distributivo e sim o equitativo. Ela é para todos, e todos ganham o mesmo quinhão.
Evidentemente isso não funciona, há diversidade enorme de gostos, de educação, de projetos pessoais. Governo algum consegue distribuir tudo a todos da mesma forma. E se por acaso o fizesse, teria que ser impositivo, totalitário, ter mão de ferro para que uns não quisessem também o que caberia ao outro.
Um conceito mais interessante e viável é o de um filósofo norte-americano, Richard Rorty (1931-2007), de justiça como lealdade ou solidariedade alargada. Para ele não há uma moral universal, não há regras morais que devam ser seguidas por todas as culturas. Ele sugere que em algum lugar, de alguma forma, entre as crenças e desejos compartilhados deveria haver recursos que permitissem a convivência, a convivência sem violência.
Como aplicar isso a palestinos e israelenses, por exemplo? A aproximação deveria permitir que cada um desempenhasse seu papel, seu destino político sem que nenhuma das partes pretendesse impor-se ou arvorar-se em ter razão, ser superior ou alegar direito inconteste.
Alargar a lealdade que se tem com seu amigo, seu familiar, ao outro, ao outro lado da fronteira, ao diferente de nós. Isso seria praticar justiça.

sábado, 20 de março de 2010

Sobre acaso, destino, sorte e azar

É frequente ouvirmos "estava escrito", "era o destino". Ou "hoje é meu dia de sorte" e também o inverso "hoje tive azar".
Como entender o tempo? O futuro? Se algo está escrito nas estrelas, então pode ser que tudo esteja escrito e pré-determinado.
Mas não é bem assim, temos liberdade para agir, para decidir, podemos planejar. Quando o planejado não dá certo costumamos atribuir a "culpa" ao misterioso, ao desconhecido, ao azar, ao acaso. Quando o planejado dá certo, consideramos que nós somos os responsáveis!
Não é estranho pensar dessa maneira?
Há diversas séries de acontecimentos, e elas se entrelaçam e deságuam no acontecimento x ou y. Se isso nos favorece, achamos que foi sorte. Se não favorece chamamos de azar.
Acontecimentos que se entrelaçam por causas diversas, em momentos diversos e que culminam em certo momento, podem ser o que chamamos de acidentes, uns felizes outros não...
Se houvesse destino, algo marcado para acontecer, não poderíamos mudar nossos percursos, e mudamos, ainda bem. O que não podemos mudar, aquilo em que não podemos interferir são as séries de acontecimentos aleatórios, ocasionais, fortuitos. Um terremoto, um galho que cai, a existência do universo, a evolução da vida na Terra. Podemos nos defender com prédios mais seguros, ficando abrigados numa tempestade, fazendo modificações genéticas.
Mas isso não elimina a incerteza, mesmo com todos os dispositivos de prevenção e de segurança, o futuro nos inquieta e amedronta. Vêm daí os mitos, os deuses, as promessas, as tentativas do dominar o acaso. Esses recursos podem até nos consolar, nos distrair por um momento, criar a ilusão de que somos eternos e incólumes.
Em vão.
Enfim, há três tipos de fenômenos: os que estão fora de nosso alcance, insondáveis; os fenômenos causados direta ou indiretamente pela nossa ação; e aqueles em que podemos influir, um enorme espaço de criação e liberdade, que só encontra limite na nossa humana forma de ser e de agir.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Sobre as coisas simples da vida

Heráclito de Éfeso, filósofo pré-socrático (cerca de 540-470 a. C.), ficou famoso pela afirmação de que tudo muda, a cada vez que alguém se banha em um rio, as águas não são mais as mesmas, a pessoa já não é mais a mesma. O elemento primordial, aquele de que tudo é feito, a causa de tudo é o movimento, tal como o do fogo, incessante. Ele era famoso como pensador, admirado pela sua sabedoria. Era até mesmo arrogante, preferindo viver isolado. Morreu com hidropisia, como os médicos não conseguiam retirar a água de seu ventre, ele mesmo se fechou em um estábulo, cobriu-se com esterco imaginado que pudesse secar a água (!), mas acabou morrendo ...
Perguntado por que muitas vezes ele se calava, respondia "Para que vocês possam tagarelar". Dizia que a felicidade não residia nos prazeres do corpo, se residisse, "diríamos felizes os bois, quando encontram ervilha para comer". O equilíbrio de todas as coisas se acha na luta dos contrários, no ser e não ser de todas as coisas.
Conta-se que certa vez foi procurado por estrangeiros, que foram visitá-lo em busca de respostas para as questões mais nobres da filosofia. Encontraram-no junto ao fogão, se aquecendo, e se espantaram por ver um sábio em uma situação comum. Ao que ele respondeu: "Junto à lareira também habitam deuses".
Nas mais simples e cotidianas tarefas, "se manifesta algo de natural e de belo", completa Heráclito.
É possível encontrar harmonia, satisfação e plenitude nos atos mais banais. Muitas vezes a filosofia serve para isso, para ver o que está diante de nossos olhos e não buscar o inalcançável quando o sentido e a completude estão à nossa mão.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Sobre a dor, o sofrimento e a humilhação

Existem no Haiti milhares de crianças entre 4 anos até a adolescência que são escravizadas. São chamadas de "Restaveks", termo que vem do francês e significa "ficar com". Elas fazem trabalhos domésticos pesados, sua marce é estarem sempre descalças; recebem castigo físico, muitas vezes são abusadas sexualmente. São escravos em plena era moderna, no país mais pobre do hemisfério ocidental.
Jean Robert Cadet passou por isso há quarenta anos atrás e tem agora uma Fundação (Restavek Foundation) para denunciar esses abusos, essa dor, essa humilhação, esse sofrimento.
Como entender a dor e o sofrimento?
Há a dor física, cada vez menos tolerável e tolerada nos países de média condição econômica e menos ainda nos países mais ricos. Ela é anestesiada por medicamento. Esse tipo de dor sequer é aceitável.
Há a dor emocional, a maior delas a da perda, a da morte de alguém próximo, querido. Abre-se uma brecha, um vácuo, o de não estar mais aqui, o de não ser mais, aquilo que os filósofos chamam de "nada" e que para o poeta é o "nunca mais". O tempo cessa com a morte. Essa dor não tem cura, ela se atenua aos poucos.
O sofrimento é também algo que as pessoas não aceitam apesar de ele fazer parte do ser humano. Hoje se quer prazer, é praticamente obrigatório ser feliz, curtir a vida. Ora, sofrer é inevitável e aceitar isso depende de reflexão sobre nossa condição. E nossa condição é sermos movidos pela vontade que exige sempre mais. Como é difícil satisfazer-se com pouco, com o que realmente é vital e necessário, o desejo é estimulado de todos os lados, mas nunca totalmente preenchido.
É que, como mostraram os filósofos estóicos, tanto a falta como o excesso causam dor. Comer demais ou de menos, por exemplo. Moderação, tranquilidade de espírito, altruísmo são a receita dos estóicos para viver bem. Diz Marco Aurélio (121 d. C.- 180 d. C.), o imperador/filósofo: "Não diga: 'infeliz de mim porque tal coisa me aconteceu', e sim, 'feliz de mim, porque tendo-me isso acontecido, continuo a salvo do sofrimento, sem que me fira o presente nem que me atemorize o futuro' ".
E Schopenhauer (1788-1860) explica que, tendo o homem vontade, ele sofre. "Se todos os desejos, apenas originados, já estivessem resolvidos, diz ele, o que preencheria a vida humana? Que se transfira o homem para um país utópico, em que tudo crescesse sem ser plantado, as pombas voassem já assadas, e cada um encontrasse logo e sem difuculdade sua bem-amada. Ali em parte os homens morrerão de tédio ou se enforcarão, em parte promoverão guerras, massacres e assassinatos, para assim se proporcionar mais sofrimento do que o posto pela natureza."

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Sobre o sentido da existência segundo Nietzsche

Trágico, esse é o conceito que melhor explica o modo como Nietzsche (1844-1900) entende o sentido da existência. Os seres humanos ao longo de sua história inventaram valores que oscilam entre a aceitação, a abnegação, a renúncia, o conformismo e a fraqueza de um lado, e de outro lado a não aceitação, deplorar e renunciar a todos os valores de obediência, a todas as regras herdadas e não avaliadas, à humildade hipócrita, ao "eu sou bonzinho". E por que?
É que a primeira atitude, a do conformismo, é a daquele que encontra desculpa para tudo, ele se justifica apelando para sua "natureza" boa, ele é o cordeiro que o lobo irá engolir.
O animal que representa a outra atitude, a de reavaliação permanente dos valores, sem precisar de nada superior, ou natural, ou inconsciente para justificar sua existência, é a da águia. Ela contempla do alto, não rasteja. Em seu ciclo vital a águia se refugia para se renovar, arranca as penas, as garras e, por último cai o bico. Ela espera que penas, garras e bico renasçam para alçar voo novamente.
O trágico está nessa reavalição dos valores pela "Vontade de Poder". Se eles foram inventados por circunstâncias simplesmente humanas, então devem e podem ser rediscutidos. Se é tudo obra humana, então tudo pode ser reinventado. Trata-se da "genealogia" (um tipo de historicidade) de todos os valores, eles se constituem enraízados nas mais diversas práticas, como, por exemplo, nas trocas, nos mitos, nos hábitos. Não são eternos e nem universais.
O homem novo, o super homem, é forte, ele ama a vida, comemora-a, vive e se alegra com isso. O crepúsculo dos deuses significa a vida do novo homem. Assim, há que comemorar o estar aí, com a vontade como fortaleza, sem curvar sua espinha, altivo.
"Um novo orgulho ensinou-me o meu Eu e eu o ensino aos homens: não deveis mais esconder a cabeça na areia das coisas celestes, mas mantê-la livremente: cabeça terrena, que cria ela mesma o sentido da terra" (Assim falou Zaratustra)

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Sobre o sentido da vida

É paradoxal que o sentido da vida dependa de seu reverso, a morte. A partir do modo como pessoas e culturas encaram, valorizam, compreendem, aceitam ou rejeitam a morte é que a vida passa a fazer sentido. Assim, para os que acreditam na vida pós-morte, a perspectiva com que veem a existência é a de seu prolongamento, o que fazem nesta vida leva ao prêmio ou castigo na outra.
Para aqueles a quem importa a atual existência, o sentido precisa ser construído, a responsabilidade é apenas pessoal, as escolhas são feitas em função de seu projeto de vida. Segundo Sartre (existencialismo francês) estamos condenados a ser livres, a carga das escolhas é algo de que apenas podemos fugir pela má-fé, quer dizer, negando para si mesmo a total e livre responsabilidade de escolher. Todos aqueles que não assumem seu projeto vital, ou que sequer pensaram na possibilidade de ter um projeto para dar sentido a sua vida, camuflam, escondem, protelam, exigem que os outros tomem decisões no lugar deles; ou então consideram que bens possam satisfazer completamente seus desejos.
O poço dos desejos não tem fundo, compreender e aceitar que a morte é o limite inexorável transforma a perspectiva com que se lida com os desejos.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Rousseau e a educação das crianças

Rousseau (1712-1778), filósofo nascido em Genebra e famoso pela sua obra, "O contrato social", em que analisa os fundamentos da democracia moderna, foi também romancista, músico e escreveu sobre educação em "Emílio". Teve uma tumultuada vida amorosa e dificuldades para criar seus filhos, o que o obrigou a deixá-los na roda da fortuna (crianças eram depositadas em uma abertura existente em conventos para serem acolhidas pelas freiras), o que não impediu Rousseau de refletir sobre a educação das crianças. Acreditava que a natureza ensinava tudo o que há para saber, que a liberdade e o cultivo dos sentimentos são a mola mestra para que, mais tarde, o indivíduo possa participar da vida social.
Sentir e experimentar sua interioridade, retornar à natureza, sentir-se como parte dela, aprender com o contato direto com os outros seres, contemplar o Universo, poder amar, admirar e usufruir das sensações imediatas sem o artificialismo da civilização, são algumas das formas pelas quais a criança pode levar uma vida plena e feliz.
É importante essa volta à "naturalidade", pelo menos dar uma chance a esse poder de observação que as crianças têm, essa alegria espontânea, numa época em que somos marcados como produtos, como série, testados, carimbados, conduzidos, ensilhados.
Sobre o homem em estado de natureza (o "bom selvagem") diz Rousseau: "Vejo-o fartando-se sob um carvalho, refrigerando-se no primeiro riacho, encontrando seu leito ao pé da mesma árvore que lhe forneceu o repasto e, assim, satisfazendo todas as suas necessidades".
Uma visão romântica e ingênua?

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

O que é relativismo?

O primeiro filósofo relativista foi Protágoras, para quem o homem é a medida de todas as coisas, quer dizer, o que cada um pensa, sente, conhece pertence a cada um, é próprio daquela determinada pessoa.
Ao longo da história da filosofia houve vários filósofos relativistas, o que há de comum a eles é a doutrina de que tudo muda com a história, com as culturas, com a diversidade de atividades de grupos, indivíduos, sociedades.
A pergunta é, como então as pessoas e as culturas se entendem, se comunicam?
Através de signos e línguas que podem ser traduzidos e interpretados, através de tipos diversos de comunicação que nos permitem compreender e aceitar ou não valores e comportamentos de outros.
Em comum a todas as culturas há aquilo que Wittgenstein chamou de solo comum, que não precisa ser posto em dúvida sem pôr em risco as formas de vida humanas. Por exemplo, duvidar de que temos um corpo, de que a Terra existe há milhões de anos, de 2+2=4, não faz nenhum sentido!
Mas pensar que há verdades absolutas e que elas ficariam livres de questionamento, é também uma exigência absurda.
Vemos o mundo de nosso ponto de vista, o que implica que o vemos, que o interpretamos, que vivemos situações que nos mudam e que mudam o que nos cerca.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Quando a religião ajuda e quando a religião atrapalha

A crença em qualquer credo religioso é benéfica para aquele que crê e para os outros quando possibilita tolerância, aceitação de outras crenças e credos, e quando contribui para o engrandecimento de própria pessoa.
Qualquer crença é prejudicial quando ocorre o inverso, quando o crente considera que a sua fé é a única verdadeira e todos os outros são considerados como sendo os "infiéis" e muitas vezes são perseguidos e mesmo mortos. A história tem mostrado que sempre que uma religião quer se impor, há morticinio, ou seja, algo que nenhuma religião deveria permitir.
Com a modernidade veio também a possibilidade de optar por ter ou não sua fé, seu credo, seu modo de viver e de assumir para sua vida os princípios de uma crença.
E assim deveria ser, se você pratica uma fé ou participa de algum grupo ou seita, que isso seja feito para seu próprio encontro com algo que você procura e que pode ampliar sua visão de mundo.