sexta-feira, 29 de outubro de 2010

O que a filosofia permite realizar?

Quando se fala em filosofia, logo vem à mente algo complexo, abstrato e inútil. Coisa da cabeça, dizem. Nada prática.
Na última postagem publiquei a estátua do Semeador para ilustrar a filosofia como ação, como atividade, semear ideias, conceitos, novas visões, modos de nos compreendermos, de avaliar situações e lidar com elas de forma mais investigadora e instigadora.
A filosofia se volta para ela mesma, para a sua história, e repensa seu papel, leva-nos a aprender com a realidade e a apreendê-la, isto é, pensar o real e transformar algo nas pessoas, a semente da pergunta, da indagação.
Ela proporciona conceitos para uma melhor compreensão de três áreas:
1. A ética e a política. O filósofo emblemático é Aristóteles para entender porque ética e política estão relacionadas. A sociedade política é um bem de e para todos, o homem como animal social, tem o senso do bem e do mal, do justo e do injusto. A sociedade política é uma reunião de pessoas para promover o bem viver; é preciso que o Estado proporcione uma vida feliz e virtuosa, que seja conduzido por um piloto que entenda de navegação. Diz Aristóteles em A Política:
Quando o monarca, a minoria ou a maioria, não buscam senão a felicidade geral, o governo é justo. Mas se visa ao interesse particular do príncipe ou dos outros chefes, há um desvio (p. 93). É impossível um Estado feliz se dele a honestidade for banida (p. 49).
2. A cultura. Vejamos o que diz Nietzsche: é preciso coragem para romper com valores gastos e estabelecidos. Reinventar valores cabe ao poeta solitário, capaz de dispensar a moeda gasta, de associar conceitos às necessidades e atribulações. A cultura sofre, foi banalizada, tudo está a serviço da barbárie, até mesmo a arte e a ciência (cf Considerações Contemporâneas, p. 74). Há que fugir do conformismo, do é assim mesmo, e penetrar nos difíceis caminhos do "eu assim o quis" (moral do forte).
3. As práticas humanas. Nasceram na história, e têm uma história, muita vezes cruel. Foucault mostra que o modo como o sujeito humano moderno se constitui, depende de práticas como as da prisão, hospitais, invenção da psiquiatria, das ciências humanas, que servem para conhecer o homem, e, ao mesmo tempo domesticá-lo. Em Vigiar e Punir Foucault analisa como o saber produz poder instalado em práticas como o castigo para o escolar, a prisão como forma generalizada para punir, o surgimento de instituições que dependem de vigilância. Esse é tema para próxima postagem.
Pensar não é pouca coisa...

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

A tarefa política e cultural da filosofia

O Semeador

O Pensador

A produção intelectual faz parte das atividades humanas culturais, não é uma tarefa exclusiva das classes superiores, esclarecidas, nem da alma platônica sujeita à contemplação pura das ideias. Dewey (1859-1952), filósofo do pragmatismo norte-americano (ver o que é pragmatismo neste blog), mostrou que a filosofia não deve ser restrita às puras Formas, ao Ser, às Ideias como entidades em si mesmas, sublimes, alcançáveis apenas por uns poucos iluminados. Se fosse assim, a filosofia seria missão de experts, com uma linguagem hermética, inacessível como bem cultural, não poderia sequer ser transmitida nas escolas, nos ambientes culturais abertos para um público mais amplo.
O uso do vocabulário especializado tem seu lugar, mas muitas vezes ele é o refúgio da pseudofilosofia. A erudição e a superespecialização são desculpas de intelectuais afetados e comprometidos com certa ideologia, que impede a reflexão, admite apenas a inculcação de noções prontas, que não passam pela discussão pública e livre de ideias e propostas para a sociedade.
Para a filosofia dogmática (ver domagtismo neste blog), os conceitos se fixam como se fossem universais, devendo ser aceitos sem pensar, automaticamente, como palavras de ordem.
Ora, para Dewey, nem há o absolutamente ideal, o Ser em si, a Realidade Última, a Verdade Absoluta, nem o real como algo inerte, acabado que pode ser conhecido e percebido sem erro, sem dúvidas.

"A filosofia, diz ele, não pode resolver o problema da relação do ideal e do real. Este é um problema mesmo da vida. Mas a filosofia pode ao menos aliviar a carga da humanidade em lidar com o problema, emancipando a humanidade dos erros que a própria filosofia fomentou. Ela pode facilitar os passos certos que a humanidade pode tomar na ação, tornado claro que uma inteligência solidária e integral trazida para dentro da observação e da compreensão de eventos e forças sociais concretas, pode formar ideais que seriam suas propostas, as quais não devem ser nem ilusões e nem meras compensações emocionais".


O momento político atual deveria ser usado para isso, semear ideais que podem ser realizados, melhorar as relações sociais, e não usar o poder que foi concedido legitimamente ao Presidente da República para impor um projeto pessoal de permanência no mando de toda uma nação, fazendo pouco das instituições.

O "Pensador" de Rodin é solitário e ensimesmado, como ilustrado acima.

Neste momento, não é a melhor representação da filosofia. Talvez "O Semeador", de Zaco Paraná seja uma imagem mais forte e mais ativa. (Praça Eufrásio Correia - Curitiba)

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A Filosofia e seu papel na cultura ocidental

Diógenes de Laércio relata a seguinte passagem: "Conta-se ter dito Heráclito a estranhos que o queriam visitar e espantam-se ao vê-lo aquecer-se junto ao fogão: podeis entrar, aqui também moram deuses". Já escrevi sobre esse trecho em outra postagem. Acho-o muito significativo, pois traz o filósofo e a filosofia para o cotidiano. Na modesta cozinha, junto ao fogo, preparando comida, também há deuses, há o ideal, o nobre, o que de mais sublime os homens podem almejar.
Essa união entre real e ideal tem alimentado a filosofia e nos conduz à reflexão sobre nossa essência humana, o que pensamos sobre nosso modo humano de ser.
Em tempos antigos, os filósofos projetavam como ideal a sabedoria da alma, do logos, do pensamento: "O logos, que pertence à alma, diz Heráclito, aumenta a si próprio". Quer dizer, o logos retira de si a capacidade de conhecer, de chegar à sabedoria. Sabedoria pode ser interpretada como o encontro consigo, como uma espécie de revelação, de iluminação.
Guerra e Paz é um formidável romance de Tolstói sobre a nobreza russa e a guerra contra Napoleão. O príncipe André, um dos personagens principais, defendera, antes de ir para a guerra, os ideias de força e expansão de Napoleão. Mas na batalha, ferido pelo exército francês, e em meio a cadáveres e à dor, contempla o céu. Como poderia este céu estar ali e ele tê-lo ignorado? É o logos que o leva essa revelação:

"Não há nada, nada decerto, senão o pouco de valor de tudo quanto posso compreender e a grandeza desse não sei quê que me é incompreensível, mas que nem por isso deixa de ser a única coisa importante".
Napoleão passa por ele, pede que o socorram. Mas para o príncipe André, Napoleão já perdera a grandeza...

O que mudou na filosofia? Da alma platônica imortal, sede da sabedoria, cuja prisão é o corpo, até o corpo vigiado e punido, cuja prisão é a alma, como analisa Foucault na atual sociedade disciplinar -, o foco da filosofia mudou, há outros objetos de análise (a linguagem, a sociedade, a história, entre outros).
O que não mudou foi o uso do logos para chegar aos limites do poder reflexionante. Sobre o que pensar, e o que analisar, é possível expandir com o passar do tempo histórico e com as dificuldades e problemas novos. Mas há limites intransponíveis, a lógica do pensar, o que é possível pensar, as fronteiras da significação e das formas de significar.
Mistério. O incompreensível, como diz Tolstói.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

O que é estrutura? O que é signo?

Toda construção precisa de estrutura. Estruturas são artificiais, são criadas por meio de signos, de símbolos, de traçados, de sinais. Todos eles comunicam algo, levam à constituição de algo, visualizam algo, estabelecem padrões para significar algo para alguém. Assim, uma árvore não é uma estrutura, seu desenvolvimento é natural. Já um prédio, uma obra de arte, um texto, uma mensagem de propaganda - em todos eles há símbolos, signos, materiais que carregam uma significação, precisam que alguém os decifre, leia, possa compreender e dê um destino, faça uso apropriado.

Um sinal de trânsito se estrutura com traços, desenhos gravados em um material que é físico (a placa de madeira, de plástico, de metal), recortado em tamanho padrão, com cor determinada e codificada, resultado de convenção internacional. Sinaliza proibido com traçado transversal, estacionar com letra, há uso de figuras, de símbolos.





A linguagem humana é mais complexa. Além de sons, produção vocal e sinais sonoros, imediatamente colados a esses sons, há o significado deles.

O primeiro estruturalista foi F. de Saussure (1857-1913). Ele definiu signo como dois lados da mesma moeda: de um lado os significantes audíveis, o que se ouve quando alguém fala; de outro lado os significados: aquilo que se compreende.

A fala é uma sequência de signos estruturados conforme regras. Não língua sem regras. A criança assimila a língua paterna como um todo, com regras para formular frases, associando a mensagem ouvida com a situação, o objeto, a história que ela ouve, enfim, todas as mensagens são lidas. E tudo quer dizer algo, tudo "fala": o tom da voz, a expressão da face, gestos, e a impressionante capacidade que a linguagem tem de criar, apenas pelos signos, desde a presença do que não está aí ("papai vai chegar amanhã!"), até um pedido, uma história, um alerta para se cuidar, uma palavra para consolar, a criação literária, narração, poesia, texto jornalístico, mensagem, e-mail.

Somos invadidos pela estrutura de signos, de símbolos (a face de um ícone do esporte, do rock, da política), de sinais. Ignore um sinal de trânsito e lá vem multa, acidente, e mesmo a morte.

Ofenda com uma palavra, e você pode ganhar um inimigo.

Elogie com uma palavra, e você pode ganhar um amigo.

As estruturas imitam as coisas ao reconstruí-las ou contruí-las seguindo um modelo, algo produzido pela cultura, pelo intelecto.
As palavras não estão no lugar das coisas, elas significam, estruturam a realidade. Os produtos humanos "falam", como você sabe diferir entre casebre, casa, mansão, palácio? Pela relação entre significar e criar artefatos. Como alguém pode dizer: "Você mora num palácio!" com ironia para significar que a casa é de fato precária? A compreensão depende do dito, da situação e do contexto, da intenção do falante.
O que se pensa, depende de signos, como se pensa, depende das regras para combinar signos.

Para dizer a ausência, o não, é preciso dizer "não". Para dizer que nada é para sempre, é preciso dizer "nada". "Sempre" não designa nada na realidade. Porém, sem advérvios, pronomes, preposições, ficaríamos sem tempo, sem cronologia, sem hoje, sem amanhã...