sábado, 31 de dezembro de 2011

Liberdade


Que em 2012 vocês que acessam este blog e amam a filosofia aproveitem e criem oportunidades para aprender mais e melhor, para participar em diálogos de compreensão e para agir conforme as virtudes de justiça, solidariedade e moderação!

Muito mais importante do que ser livre é saber que se é livre e o que fazer com essa liberdade!

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Metafísica e ontologia

A filosofia comporta três áreas de estudo, a do ser (metafísica, ontologia e teodiceia), a do conhecer (teoria do conhecimento, epistemologia, filosofia da linguagem e lógica) e a do agir (ética, estética, filosofia social, filosofia política e antropologia).
O propósito dessa divisão é didático, prático. Em tese essas áreas podem ou não se distinguir e a filosofia pode estender ou encolher seu campo teórico e prático.
Na postagem anterior abordei a metafísica, ou melhor, a crítica de Kant à  metafísica tradicional.
Mas, o que é metafísica?
Na definição clássica de Aristóteles, é a ciência (no sentido de saber especulativo) do ser enquanto ser. E o que é o ser enquanto ser?
É preciso antes entender que pelo raciocínio e pela reflexão filosófica é possível abstrair qualidades e características mutáveis das coisas, como seu aspecto, sua duração, seu gênero, sua localização, etc., para ficar apenas com a característica ou categoria essencial, imprescindível, aquela sem a qual nada seria o que é. Trata-se justamente do ser.
Um cão, por exemplo, pertence a um reino, a uma espécie, a uma raça, e antes de tudo, ele é cão.
Determinar por meio de categorias todos os seres, leva à abstração do particular para ficar com o mais geral, com o universal.

Imediatamente surge a pergunta seguinte:
O ser é e existe como? Por que e de onde surgiu essa existência como tal ou tal ser?

A pergunta metafísica recebe resposta filosófica bastante intrigante: do nada é impossível, e se veio de outro ser, este deve ter sido original, primeiro, causa de tudo, como: a Ideia do Bem (Platão), o motor primeiro imóvel que produziu o movimento inicial do cosmo (Aristóteles), Deus criador do mundo a partir do nada (filosofia cristã), o Uno (Plotino), o Ser Perfeito (Descartes).


A pergunta feita pela ontologia (ontos=ser), em contraste, não requer eleger uma causa inicial e dar uma resposta definitiva. É a pergunta pelo que move a razão, a inteligência humana, a curiosidade, a capacidade de nomear, de inquirir, de investigar uma região do saber, a do ser e do existir. O instrumento é também a reflexão, porém sem a exigência de sistematizar por meio de conceitos como causa, uno, universal, origem e fim último.
É uma indagação que precisa da linguagem que nomeia tal categoria, a do ser. Promove aquele que faz a pergunta pelo ser, como responsável por ela; nós todos, seres humanos que usamos o verbo ser, e também culturas em que tal verbo tenha outras traduções, carregamos a pergunta cuja resposta depende de nossa liberdade, criatividade e de nossos limites.




O alvorecer dessa questão, desde que passamos a nos perceber em meio a um cosmo, a uma natureza e o anoitecer dessa pergunta em meio a nossas dúvidas, fraquezas e tudo o que viemos a construir e a destruir - cabe apenas a nós, nos pertence. Pode se apresentar sob a forma da arte, do teatro, da poesia. Pode se dar na meditação, no recolhimento pessoal. Pode ocorrer em uma cena épica da literatura ou do cinema.

Quem já experimentou essa voragem, essa revelação e essa transcendência, a sensação de que tudo se encaixa, os raros e sublimes episódios de epifania, tranquiliza-se. O ser das coisas tal como está, está bem.

Há quem sofra com o oposto: nada se encaixa, a vida, o ser das coisas é absurdo, nada faz sentido. Não será também uma revelação, uma epifania? O necessário avesso, talvez.

David Foster Wallace é cético e pessimista. Diz ele:

In reality, genuine epiphanies are extremely rare. In contemporary adult life maturation & acquiescence to reality are gradual processes. Modern usage usually deploys epiphany as a metaphor. It is usually only in dramatic representations, religious iconography, and the 'magical thinking' of children that insight is compressed to a sudden blinding flash.
(Na verdade, epifanias genuínas são extremamente raras. Hoje em dia, na vida adulta a maturação e a concordância com a realidade são processos graduais. O uso moderno em geral entende epifania como uma metáfora. É em geral apenas em representações dramáticas, na iconografia religiosa, e no 'pensamento mágico' infantil que essa súbita visão é comprimida em um rápido brilho que cega).

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Kant e a metafísica

Kant concorda com Hume na crítica que este fez à indução. A observação de numerosos casos no passado não permite a conclusão de que no futuro eles se darão do mesmo modo. Por exemplo: até o momento, todas as experiências com pão, são de que ele alimenta, mas isso não garante que no futuro todo pão alimente. A intenção de Hume era mostrar que não há um princípio de causalidade, não há a priori uma regra geral confiável absolutamente.
Para Kant, entretanto, não se deve concluir ceticamente que não haja leis por detrás dos objetos da experiência. Essas leis podem ser conhecidas, não dogmaticamente, mas criticamente.
A razão é instruída pela natureza, mas não de modo passivo,
não na qualidade de um aluno que se deixa ditar tudo o que o professor quer, mas sim na de um juiz que obriga as testemunhas a responder às perguntas que lhes propõe.


Monumento a Kant (1724-1804) em Königsberg, sua cidade natal

É preciso dotar a Metafísica de um método seguro, método esse que revolucionou a concepção de conhecimento: ao invés de os objetos penetrarem passivamente na mente, o inverso: os objetos são regulados pelo entendimento do sujeito de conhecimento, que estabeleceria algo a priori sobre os objetos. E isso se dá por meio de uma faculdade capaz de apreender o que é dado à experiência e que, portanto, se encontra no tempo e no espaço. Assim, para Kant o conhecimento é ativo e não pura apreensão passiva da mente, como se esta fosse uma página em branco na qual são impressas as qualidades sensíveis dos objetos, como proposto por Locke.
A metafísica pré-kantiana sustentava que a realidade em si mesma pode ser conhecida, inclusive suas causas, como o primeiro motor de Aristóteles.
Para Kant, ao contrário, não se tem acesso à realidade tal como ela é em si mesma, pois são necessários recursos, as chamadas categorias que são propriedades de nosso entendimento sempre que ele representa a realidade. O ser em si mesmo é incondicionado, ora, quando a realidade é acessada pelo sujeito, passa a ser condicionada. Quer dizer, os fenômenos se regulam pelo nosso modo de representá-los.
A consequência mais interessante dessa revolucionária concepção de metafísica é dar todo poder à razão humana, é ela que dá a si mesma os limites e as possibilidades de conhecer não só o real, mas também os próprios recursos da razão. Ou seja, a razão se autoconhece.
Os limites da razão pura são os limites da experiência, ir além da sensibilidade é algo impossível para ela. Apenas pela moralidade, pela eticidade se justifica existir Deus e uma alma imortal.
A razão especulativa não tem como chegar a Deus, liberdade e imortalidade da alma, pois para chegar a essas “visões transcendentes” precisa empregar princípios, e os princípios dependem da experiência. Com isso Kant elimina o dogmatismo metafísico, e se atém ao que a razão alcança e ao que a experiência fornece. Questões de fé pertencem ao terreno prático, da moral.
Muito poucos até hoje aprenderam essa lição de sabedoria!

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Natureza, sentimento e razão

Nós, seres humanos, somos frutos da natureza e pertencemos todos a um fundo natural. E isso pode ser interpretado de diversas maneiras, seja biologicamente, seja por meio de teorias filosóficas. Hobbes lançou a hipótese de que o homem em estado de natureza precisava lutar e defender seu território; Rousseau, também partiu de uma hipótese, mas ela era baseada no que já se sabia sobre povos selvagens no século 18. Ele dizia que em estado natural os homens dispunham apenas de seu instinto de conservação, não havia necessidade alguma de guerrear, não havia posse de bem algum, a abundante natureza tudo fornecia. Apenas sensações imediatas e nada de racional e muito menos moralidade.

A passagem para a sociedade se deu devido à escassez provocada por desastres naturais, e foi isso que suscitou o uso da razão, da deliberação, das escolhas morais. Foram necessárias trocas, e sem linguagem, para Rousseau, não há razão, não há lei, não há acordo. A perda da liberdade natural e da igualdade natural é compensada pela adesão de todos a uma vontade geral que firma acordos e acaba por igualar todos os homens perante o social, o legal, os governos.
Mas essa evolução do homem natural, puro sentimento, para o homem social, que faz uso da razão, não segue como pretendiam Hobbes e Rousseau, uma linha reta e ascendente.
Isso porque sociedades se encontram em estágios diferentes, em algumas ainda predomina a guerra de todos contra todos, não alçaram ao patamar social que implica cidadãos representados legitimamente por governantes; não se legisla, não há reciprocidade de direitos e deveres.
Mesmo em sociedades mais avançadas, o perigo de regressão é permanente. Pode se dar com um governo autoritário (como o de Bush, o de Putin, o de ditadores mundo afora) grupos armados (movimentos de guerrilha, desde as Farc e IRA até o Hamas); país algum é imune à violência causada pelo tráfico de armas e drogas.
Assim, somos parte da natureza, até gostaríamos de viver mais próximos dela, de termos uma vida na qual os sentimentos mais puros prevalecessem. Mas, naturalmente somos também movidos por um inconsciente que represa sentimentos e os faz vir à tona com a mais banal discussão de trânsito, por exemplo. Viramos bichos, como se diz.

Ao mesmo tempo contamos muito com a razão, ela não é apenas o que nos distingue dos animais como queria Aristóteles, a razão precisa da capacidade de usar a linguagem para diversos atos de comunicação (afirmações, pedidos, promessas) pelos quais nos relacionamos; precisa de práticas sociais, de códigos e signos. Esse é o lado "brilhante" da razão, formas e categorias puras investidas no uso comunicativo, a tese kantiana de Habermas sobre a racionalidade.
E há o lado cinza, obscuro da razão quando ela se manifesta por meio de discursos que marcam, que oprimem, que castigam, que dividem. Em geral esses discursos se dirigem aos mais fracos, às minorias, aos rejeitados. Pior: eles são disfarçados, pretendem ser científicos, assim escapam da dúvida. Verdade que oprime.
Como se vê, é quase impossível distinguir natureza, sentimento e razão...

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

O absurdo da violência gratuita

Atos gratuitos não são livres como pensava Albert Camus. Eles podem ser terríveis. Há tipos de violência que decorrem de comandos políticos absurdos, incompreensíveis, parece que vão além de nossa humanidade.
Há na história do comunismo stalinista um desses episódios de violência que revoltam e chocam, infelizmente pouco divulgado.
Em reportagem recente, a TV5 Monde abordou a história narrada na obra l'Île aux cannibales (A Ilha dos Canibais), de Nicolas Werth. O subtítulo é: uma deportação-abandono.
Em 1933, em plena época stalinista na ex-URSS, perseguia-se e deportava-se para a Sibéria todos os suspeitos de não colaborarem com o Partido Comunista.
Bastava que a pessoa circulasse sem o passaporte ou que tivesse alguma atitude suspeita para ser declarado inimigo do Estado.
No documentário em que se entrevistaram pessoas que viveram ou souberam desses castigos, e com filmes da época em que encarregados da deportação se dizem incapacitados de atender na ilha tantos deportados (6000 pessoas em poucos meses), a crueldade do regime stalinista se expõe, ela é estarrecedora.A ilha em questão fica em um rio perdido na imensidão da Sibéria.
Um caso exemplar:
Uma mãe chega em Moscou, na estação de trem, pede à filha de 12 anos que vá comprar pão. A menina é chamada de vagabunda, agarrada e deportada para a ilha.
Não havia como abrigar e nem alimentar tantos deportados. Os guardas matavam os que ousavam fugir a nado, alguns se agarravam a troncos e eram também caçados e mortos.
A brutalidade dos guardas e comandantes era inominável. Alguns comandantes questionavam se havia necessidade de tanta brutalidade, mas nunca questionavam a necessidade de deportar.
O que fazer com os prisioneiros se não havia comida? Um comandante diz:
"Deixem-nos sair, eles que pastem!"
E outro: "Para vocês eu sou Stálin!"

A fome e a degradação, a impossibilidade de fuga, o desespero, tudo isso induziu ao canibalismo entre os prisioneiros. Os alvos mais fáceis eram as mulheres e crianças. Eram amarradas ao tronco de árvores, e partes do corpo arrancadas, as mais fáceis de comer...

É fundamental recuperar em livros e documentários o descalabro de regimes ditatoriais. É importante lembrar e informar que pessoas inocentes, vítimas de um ditador cruel, foram levadas a um ato a que apenas situações extremas constrangem.

Levou muito tempo para que os crimes de Stálin ficassem conhecidos. É incrível que mesmo quando já haviam sido divulgados (sem condenação alguma!) ainda houvesse intelectuais "esclarecidos" que apoiavam e justificavam o regime e o partido que o sustentava.