terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Voltaire, sobre o filósofo ignorante e a liberdade

Para terminar o ano, reflexões de um pensador francês, que, sem cultivar a filosofia propriamente dita, produziu uma obra leve, satírica, crítica dos costumes de sua época, e que foi censurada. Suas Cartas Inglesas foram queimadas, e mais tarde publicadas novamente.
O livre pensar até hoje sofre com a intolerância, como muito bem mostram episódios recentes de violência absurda em plena Europa e mundo afora.
A seguir alguns trechos de Voltaire, um iluminista, amigo de Frederico II, outro iluminista, esclarecido, culto, com ideias e estilo de vida fora de padrões até mesmo os atuais. Em seu palácio vivia com um misto de arte, prazer e homoerotismo.

Voltaire em o Filósofo Ignorante:
"Como posso pensar?
Os livros escritos há mais de dois mil anos ensinaram-me alguma coisa? Tentei descobrir por meio da razão se as molas que me fazem digerir e andar são as mesmas que me fazem ter ideias. Nunca pude conceber como e por que as ideias fugiam quando a fome enlanguescia meu corpo, nem como e porque renasciam quando eu havia comido. Vi uma diferença tão grande entre os pensamentos e a alimentação (sendo que sem esta eu nunca pensaria) que acreditei haver em mim uma substância que raciocinava e outra que digeria. Entretanto, buscando sempre provar a mim mesmo que não sou dois, senti grosseiramente que sou um só. Essa contradição sempre me penalizou muito.
Com muita engenhosidade, perguntei a alguns de meus semelhantes, cultivadores da terra, nossa mãe comum, se sentiam ser dois, se graças à filosofia haviam descoberto possuir dentro de si uma substância imortal e, no entanto, formada de nada, existente sem extensão, agindo sobre os nervos sem tocar neles, enviada expressamente ao ventre de suas mães seis semanas após a concepção. Acreditaram que eu estava brincando e continuaram a cultivar seus campos sem responder-me.
Vendo pois que um número prodigioso de homens não tinha a menor ideia das dificuldades que me inquietavam (...) e muitos caçoavam do que eu queria saber, suspeitei que não era absolutamente necessário que o soubéssemos. (...) Acreditei que as coisas que não podemos alcançar não são nossa partilha. No entanto, malgrado esse desespero, não abandono o desejo de ser instruído, e minha curiosidade enganada é sempre insaciável".

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Essas reflexões miram tanto a certeza filosófica em noções como alma, o dualismo cartesiano, como inquietam aqueles que buscam pela origem das ideias: como é possível pensar e se pensar e sentir diferem, se são duas naturezas. Então o homem teria duas naturezas? O filósofo é um ignorante que mesmo assim não desiste de interrogar...

Ao que tudo indica, esse livre pensar, esses questionamentos, não atingem os fanáticos, os dogmáticos, os intolerantes, os que se creem de posse da verdade. Os que odeiam a liberdade, a arte, a música e o respeito às diferentes crenças e religiões.

O mais incrível é que, se considerando como únicos portadores da virtude, os únicos cuja morte e assassinato de inocentes, creem que isso conduzirá sua alma imortal a algum tipo de paraíso eterno.