sábado, 25 de setembro de 2021

Liberdade de expressão para Habermas

  Um dos assuntos mais atuais e controvertidos em nosso país hoje é o tema "liberdade de expressão". Do ponto de vista político o debate é um verdadeiro choque entre poderes, o do judiciário com suas tramas e recursos, e o lado dos que se consideram liberais no atual governo de Bolsonaro. No entendimento dos defensores da liberdade de expressão, qualquer tipo de recusa de parte das redes socais de publicar o que ofende, o que é falso, o que discrimina significa censura à opinião. O presidente Bolsonaro tem tentado proibir que as empresas de tecnologia exerçam essa "censura". Vale tudo, então?

O que está em jogo? O poder de comunicação. Vejamos o tema sob o aspecto filosófico para tentar deslindar o impasse provocado nas e por meio das redes sociais de comunicação versus presidente da república, seus filhos e apoiadores.

Na linguagem que usamos para a comunicação além de nos expressarmos, precisamos nos fazer entender. Há uma diferença entre significar algo em frases da nossa língua e a capacidade de, ao mesmo tempo, comunicarmos algo a alguém, então essas frases são um tipo de ação. Que ação? Ação comunicativa com efeitos nas nossas formas de vida, em nosso trabalho, em nosso dia a dia, nas mensagens na internet, nas reportagens. Enfim, espera-se que pessoas e/ou grupos se entendam a respeito de algo e que possam agir de acordo com esse entendimento.

As trocas linguísticas comunicativas implicam que, para serem efetivas, para terem efeito ilocucionário (explico adiante) é preciso haver compromisso com a sinceridade, que sejam calcadas em fatos e situações acessíveis e comprováveis, e que sejam atos de comunicação adequados e  vinculados às normas de certa cultura. Essas três condições, sinceridade de propósitos, possibilidade de constatação e adequação às normas culturais são responsáveis pelo efeito ilocucionário, quer dizer, uma comunicação bem-sucedida.                                               

                                                                   

                                                     Habermas nasceu em 1929, vivo e atuante.

Em discussões, quando um ponto de vista é arbitrariamente defendido, as ameaças, as mentiras, a exposição de fatos de forma distorcida, nessas discussões o aspecto comunicativo falhou, para Habermas não há simplesmente comunicação pois visam "apenas" influenciar. Seria o caso hoje em dia das fake news  nesse debate sobre a liberdade de expressão. Mas, há liberdade no ato de mentir? Quem inventa, distorce ou ofende, exerce a liberdade? Creio que não. Sequer seria um ato de negociação, um ato de comunicação estratégica como no caso de um negociador de ações na bolsa de valores. Ele não se comunica com um público, ele vende, a situação é a de um mercado. Não há que ser sincero, veraz, basear-se em normas. A comunicação neste caso é estratégica. Visa sim interesses.

Ao passo que nas ações comunicativas os efeitos são os de compreensão, e estes iluminam a ação. Como fica a questão da liberdade de expressão ao ver de Habermas?

Não há liberdade de expressão na mentira, na distorção, na imposição, no jogo de interesses. O apelo à liberdade de expressão para vender gato por lebre, para iludir, influenciar, é um apelo falso e hipócrita. 

A comunicação veraz, sincera, calcada em razões conduz ao debate produtivo, à troca de ideias, e isso educa, responsabiliza, e essas são algumas das bases de uma sociedade democrática.


domingo, 12 de setembro de 2021

A tranquilidade da alma para Sêneca

 Sêneca foi um dos principais filósofos do estoicismo. Morreu no ano 65 d. C. quando foi condenado ao suicídio por Nero. Ora admirado pelos imperadores romanos, ora perseguido, foi inclusive exilado na Córsega. 

Seu pensamento gira em torno da ação humana, da moral, dos conselhos para a  vida, como indica o título de um de seus escritos, Da Tranquilidade da Alma. Ele exalta a simplicidade, dispensar as riquezas e o luxo. A melhor refeição não é aquele lauto banquete preparado por escravos, mas alimentos que "não pesam nem à bolsa nem ao estômago", busca em tudo o equilíbrio, a serenidade, evitar tanto os desejos exaltados bem como os mais tímidos. E ainda, lamenta os que vivem a se queixar, a inconstância do humor, o amor àquilo que abandonaram, os que só sabem suspirar e bocejar. Lamenta os que não sabem viver em sua própria companhia, que é a única  que temos de fato, lamenta a quem tudo parece uma carga pesada.

                                        

                                                     Sêneca

O remédio? O estudo que evita você tornar-se uma carga pesada para si e para os outros, mas sem a concentração e o isolamento em si, pois estas constroem de um lado e destroem de outro. A virtude está em combinar repouso com ação, nunca veremos todas as portas se fecharem, sempre resta uma que nos leva a praticar uma ação virtuosa. "Aprendamos a andar com nossas próprias pernas ..., aprendamos a cultivar em nós a sobriedade ... a reprimir nossa vaidade ...a não ter nas mãos ... as ambições desenfreadas, a esperar a riqueza menos da sorte do que de nós mesmos".

Foucault no curso de 1982 A Hermenêutica do sujeito aborda a cultura helênica dos séculos 1o. e 2, e ressalta essa cultura de si como um período entre o platonismo de modo geral e o cristianismo. Com elementos gregos, essa cultura de si inova com os céticos, epicuristas e estoicos. Na aula do dia 17 de fevereiro, no Collège de France, Foucault realça a importância, entre outros estoicos, de Sêneca, justamente em suas reflexões sobre a velhice, a liberdade que se conquista na velhice calcada na natureza e voltada para si, como o si mesmo, como o eu nos garante contra perigos e nos proporciona alegria e tranquilidade, desde que a pessoa não seja escrava de si mesma, não exija demais de si, que evite o circuito de obrigações e recompensas. Um dos caminhos para a velhice serena é o da contemplação da própria natureza das coisas, a busca do caminho da luz, a libertação dos vícios, das mentiras e da ambição. Ao valorizar o estado de paz consigo mesmo, a alma vai em direção à luz divina que é aquela conatural à alma. 

Conhecer e contemplar a natureza do alto permite enxergar nossas fraquezas e nossa pequenez. A alma não contemplará o mundo das ideias como para Platão. A alma, contempla esse mesmo mundo nosso, com todas as suas peculiaridades e dificuldades, as condições são as nossas, as de nosso mundo, e, ao nos vermos do alto compreendemos que somos mortais, que fazemos parte do mundo no qual pode ser assegurada a nossa liberdade.

Para Foucault isso "parece definir uma das mais fundamentais formas de experiência espiritual encontrada na cultura ocidental". Nem um mundo ideal e perfeito das essências platônico, nem o mundo das recompensas celestes à alma imortal e pura, à ascese do espírito do cristianismo.