sábado, 30 de novembro de 2013

O homem enquanto sujeito

Há algo em comum entre o "homem como medida de todas as coisas", famosa afirmação de Protágoras, o homem racional, cujo cogito (pensamento) é fonte de certeza e o além-do-homem de Nietzsche?
Todos os filósofos abordam o tema do homem, porém de diferentes modos e com diferentes propósitos.
Em meio aos entes, às coisas todas que nos cercam, há um ente cujo ser desvela todos os demais, condiciona o aparecer e as mudanças de tudo: é o homem medida das coisas que são e das que não são, das qualidades, das sensações.Tudo o que se conhece depende de o homem perceber e entender. Tudo é relativo às sensações, às percepções, enfim, ao modo de ser humano.

Mas, para Protágoras nem de longe há um sujeito de conhecimento, fonte de certeza, um sujeito que se sabe ser aquele por meio do qual há representação das coisas e que para isso se serve de algo que apensas ele possui: sua racionalidade, ou melhor, sua alma racional. Pensar, o cogito ergo sum, penso, logo existo de Descartes é em tudo diverso do homem medida de Protágoras. Distancia-os não apenas aproximadamente 20 séculos, mas uma nova visão de ser humano. Protágoras nem poderia entender a subjetividade do sujeito como pessoal, como doadora de certeza, inclusive a certeza da própria existência.

Com Descartes nasce o sujeito moderno, fonte de conhecimento e de liberdade, ele medita e conclui que se ele, Descartes, pensa necessariamente existe. E não simplesmente em meio às coisas do mundo. A metafísica cartesiana pressupõe inclusive que Deus depende do pensamento humano. Pensar em um ser supremo o mais perfeito de todos, sem que, ao mesmo tempo, este ser não exista, é destituí-lo da perfeição da existência. Conceber a perfeição inclui, pressupõe, exige a existência. De sua cadeira, em seu gabinete de trabalho, o filósofo reflete, medita, sabe que é ele o "dono" de si, de seus pensamentos, de sua existência. Não precisa saber do mundo, nem fazer experiências para concluir que a consciência de si basta. Essa autossuficiência é o ponto de partida para o reconhecimento da subjetividade, desse eu interior que tanta importância terá para a filosofia, para a psicologia, para a futura psicanálise, para fundamentar conceitos jurídicos como imputação de culpa ou dolo, para reconhecimento de autoria de obras de arte, etc.

Mal nasce o sujeito moderno, ele se vê, com Nietzsche transformado em vontade vital de superar, de sobreviver, de esforçar-se para obter mais e mais poder, a capacidade de satisfazer impulsos da vontade. Vontade de que? de poder, não no sentido de poder político ou econômico, nem de longe! Poder no sentido de potência vital, todos os entes são dotados desse poder, a vontade não é a de uma pessoa livre, um sujeito que pensa e de quem depende a verdade e a certeza. Esse sujeito cartesiano, metódico, que representa e que tem consciência de representar as coisas, cede lugar à vida, à sobrevivência por meio de luta, de força. Força vital caracteriza o homem, se ele se detiver nos valores de outro mundo, de Deus, do que transcende, é fraco, submete-se ao que ele próprio concebera como valor supremo, "ingenuidade hiperbólica", pois foram valores inventados pelo homem! Não percebe que ele criou o mundo de estilo platônico ao qual se submete. Atender à força vital implica negar os valores inventados para justificar sua fraqueza, e criar novos valores, dessa vez, terrenos. Ir além do homem, quer dizer, a busca de arte, criação, e não de verdade e nem de certeza, leva a potencializar o que é próprio à vontade de poder. Vontade e impulsos no lugar da consciência de si e da representação do sujeito.
Resposta à questão proposta no início, de se há algo em comum entre as três concepções de homem. Sim, há pelo menos nossa ignorância, nossa vontade de saber, os projetos e realizações ao longo da história, a defesa da liberdade de pensamento e da própria filosofia. A filosofia não está morta...

terça-feira, 12 de novembro de 2013

A morte da filosofia (cont.): dogmatismo e ideologização

Dogmatismo deriva de dogma, termo grego que significa o que aparenta, uma opinião ou crença. Para os gregos, em especial para a tradição filosófica que remonta a Platão, a aparência é enganadora. Somente o que está por detrás, o permanente, o essencial é que pode ser concebido como fonte de verdade, ou mesmo como o verdadeiro ser das coisas.
No sentido atual, dogma diz respeito às doutrinas e crenças de uma religião, de uma seita, de uma ideologia, e sempre vem relacionado com um conjunto explícito de regras e normas que devem ser respeitadas e seguidas estritamente, portanto, sem questionamento.
Ora, em que pesem a importância e a necessidade de doutrina e dogmas para as religiões, crenças e seitas, no território filosófico todo e qualquer tipo de dogma é inaceitável, impraticável e incompatível com a filosofia. O filósofo precisa de liberdade de pensamento para refletir, deduzir, expor conceitos, ideias, visões de mundo. 
Mas, a filosofia não busca a verdade?!
Ao considerar a própria questão da verdade surgem diferentes modos de pensar e de conceber a verdade. Isso indica que não há a verdade, justamente reivindicar para si ou para sua corrente filosófica a posse da verdade leva a outro questionamento: se uma escola filosófica ou um filósofo chegou à verdade com seu sistema, ou bem ele é o único verdadeiro (e como ficam os demais?) ou todos são legítimos filósofos e também têm cada qual a sua verdade. Logo, a  verdade é a de cada qual, o que implica negar o conceito mesmo de verdade!
Então, filosofia e verdade são incompatíveis?
Filosofia e verdade como posse, como dogma é que são incompatíveis. O dogmático se vê como o único a chegar ao sistema conceitual verdadeiro e isso é a morte da filosofia.
Realistas, idealistas, céticos, empiristas, analíticos, racionalistas, enfim, cada uma das várias correntes filosóficas investiga, pesquisa, analisa, conceitua e tem sim, concepções diferentes de como a verdade é possível de se atingir, ou mesmo de que não é possível verdade, como os céticos.
Assim, se verdade for considerada a ideia permanente, ou a experiência com dados dos sentidos, ou o que a linguagem estrutura, ou o que o pensamento capacita, isso não significa multiplicar a verdade (o que é absurdo). Isso significa que o trabalho do filósofo é comparável ao cultivo de plantas ou de um jardim, cada espécie vegetal requer um terreno, um tipo de cultivo, uma época de colheita, etc. Um jardim difere de outro, entrar num deles e usufruir de sua sombra ou beleza, não impede apreciar outro(s).
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A ideologia não tem nada a ver com verdade. Justamente, é um modo de julgar e de avaliar que passa por um conjunto de propostas de ordem social, política, jurídica, que influencia e é influenciado tanto pela sociedade na qual nascem e da qual fazem parte, como pela época histórica da qual são também parte integrante. Abolir ideologias, nas atuais sociedades de Estado, com organização política, partidária, com tipos de governos e poderes legítimos, levaria automaticamente à imposição de uma única ideologia. Exemplos recentes: URSS stalinista, China de Mao, "república" dos aiatolás e, infelizmente, outros mais, houve ou há a imposição da ideologia única.
Ideologizar ocorre quando uma ideologia é importada da sociedade política e penetra com disfarces na filosofia e no seu ensino, nas pseudo narrativas históricas, nas concepções pedagógicas, e sempre que certo modo de ver e de pensar se propõe como salvador, como promissor da redenção de todos os males, da desigualdade social ao fim do lucro e da exploração.
Esse tipo de ideologização penetrou fundo no sistema "educacional" brasileiro há algumas décadas e "fez a cabeça", como se diz, de um sem número de professores, autores de livros didáticos, pedagogos, e de propostas para a educação. 
Ideologização e dogmatismo se dão as mãos no projeto educacional brasileiro, gerações adotam o pensamento único e a verdade universal de que a visão marxista da história como luta de classes é a verdade.
Morre a filosofia e também a educação...