sábado, 23 de abril de 2011

O QUE É CORRETO? O QUE É JUSTO?

Na obra de Richard Rorty A Filosofia como Política Cultural (já traduzida, 2009), há um capítulo com reflexões sobre o conceito de justiça. Rorty acha que justiça é a lealdade alargada, e pergunta: a quem ser leal? Em geral somos leais aos mais próximos, ao que atinge nossa família, nossos amigos, vizinhos; a lealdade decresce com o alargamento desse círculo, se um massacre acontece em um país africano, ou no Afeganistão, não nos atinge de perto.
Mas a justiça não é para todos?
Quando se perde postos de trabalho na indústria automobilística norte-americana, ganham os países periféricos cuja mão de obra é mais barata? A liberdade política deve prevalecer, ou a justiça econômica igualitária? Se houver uma catástrofe e os alimentos escasseiam, o que se conseguir vai para os mais próximos (lealdade) ou devem ser distribuídos (justiça)?

Esses casos servem para Rorty refletir sobre se a justiça e a lealdade, afinal, não viriam juntas, e ampliar a lealdade seria, então, prover a sociedade com uma justiça mais efetiva. Ele não segue a tradição kantiana de conflito entre razão e sentimento, em que prevalece a primeira que é universal e obrigatória, igual para todos. Rorty acha que a moralidade nasce da lealdade ao grupo, e que dilemas morais não resultam de conflito entre razão e sentimento, mas de construções de si alternativas, descrições de si, diferentes modos de dar sentido à vida em diferentes grupos sociais. Não há um centro permanente do eu ou da história, mas pluralidade de modos de dar conta de problemas e dilemas. Isso é mais leve e fácil quando se trata dos que nos são próximos, e mais difícil e pesado quando os grupos são maiores, outras culturas e povos.
Aos poucos, costumes cederam lugar ao julgamento por leis, questões de justiça deveriam ser resolvidas, pensa Rorty, não por regras transcendentais e universais, mas pelas circunstâncias envolvidas em cada caso.
 A obrigação moral não é indiscutível e nem há uma resolução que sirva para todos os casos, compulsória. Justiça requer razoabilidade. Atender aos interesses de todos, resumidos nos direitos fundamentais que vigoram em sociedades modernas ocidentais, essa base histórica pode servir de parâmetro? Isso é justo? 
Tratar casos similares de modo similar esbarra em crenças e culturas que tratam semelhantes de modo desigual (mulheres, negros, homossexuais, os “infiéis” nas culturas islâmicas, por exemplo). O consenso que ultrapassa fronteiras é próprio da cultura liberal ocidental dos últimos duzentos anos.
 Na França proibiu-se a vestimenta muçulmana para mulheres, sem consenso até mesmo na Europa. É perigoso considerar que uma cultura é superior a outra (colonialismo, nazismo, etc.), mesmo porque não se trata de casos nos quais há uma verdade a ser aceita, não há um consenso acima da história para julgar quais são os procedimentos corretos. 
Para Rawls, e Rorty concorda com ele, os princípios brotam de práticas que comunidades criaram e sobre as quais há acordo. É sempre preferível buscar o acordo e o consenso, pois eles podem evitar a ameaça e imposição pela força. Deve ser possível justificar demandas de acordo com princípios razoavelmente aceitos por uma comunidade, com os quais outras comunidades podem concordar.
E Rorty vai além, é possível construir novas identidades morais, alargar a lealdade com um grupo formado por grupos menores. Lealdade e justiça se combinam, argumentos racionais e o compartilharmento de valores e ideais dos outros, próximos ou distantes, isso pode levar a concluir que o outro tem suas razões e almeja objetivos parecidos, que ele é confiável. Razão e sentimento são complementares e não dicotômicos. Supor que os outros são razoáveis, significa que podemos compartilhar também de seus desejos e crenças. Se não há meios de entender ou compartilhar tais desejos e crenças, então é provável que a força e a violência entrem em cena.
Mas exigir que o outro seja razoável em questões em que nós somos razoáveis, é apelar excessivamente para um critério em que a autoridade é a Razão, leia-se razão ocidental. Tolerância, respeito aos direitos da mulher, dos homossexuais, seria tanto mais valioso quanto ficasse claro que são da cultura ocidental moderna. Ótimo se outras culturas forem abertas, mas melhor ainda é ser etnocêntrico, isto é, levar em conta a diversidade cultural e adotar práticas liberais, as únicas que melhoram as relações entre povos e culturas.
Rorty abomina a noção de normas morais obrigatórias. 
Um exemplo: é possível e razoável tolerar mulheres quase nuas e/ou inteiramente cobertas? Em uma mesma cultura, em diferentes culturas?

 

sexta-feira, 15 de abril de 2011

sobre a noção de sujeito

Todos nós, seres humanos, temos consciência de nós mesmos, sabemos que podemos escolher, imaginar, falar, lembrar, raciocinar, exceto no sono, ou em alguns estados excepcionais (sob efeito de uma droga, por exemplo).
Essas atividades conscientes de uma pessoa, foram eleitas por muitos filósofos desde os gregos até os modernos, como pertencentes ao sujeito. "Conhece-te a ti mesmo", foi, talvez, a primeira tentativa de pôr o sujeito no centro do conhecimento, da ética, e do valor da pessoa humana. Nesse preceito do oráculo, Sócrates via a missão por excelência do filósofo, o autoconhecimento como salvo conduto para desempenhar as funções de cidadão na polis.
Mas ainda não era do "eu", da interioridade, da biografia pessoal que se tratava. Santo Agostinho (354-430), diferentemente da filosofia antiga, escreve e medita sobre sua vida, o que fazer, como fazer, e para tal examina-se e se arrepende de seus erros. A existência de si como sujeito é evidente, pois, mesmo se ele pudesse se enganar, há alguém que se engana, cuja existência é incontestável.
O ponto de partida de Descartes foi o sujeito: "eu penso", pensando, existo, essa certeza fundamenta todo tipo de conhecimento.
Partir do eu, do sujeito que existe e existe como ser pensante, foi a alavanca das filosofias da consciência
O problema dessas filosofias é o beco sem saída, chamado em filosofia de aporia (verdade calcada naquilo que pretende provar, um círculo vicioso) em que elas se enredam: para ter certeza de sua própria subjetividade, é preciso pressupor que o sujeito se conheça, e para isso, o sujeito se põe como objeto para ele mesmo. Ora, como objeto, deixa de ser sujeito.
Foucault em As Palavras e as Coisas (1966), analisa a virada da soberania do sujeito das filosofias da consciência, para a nova formação de saber (século 18), que leva em conta as circunstâncias que constituem o sujeito, como a linguagem, os produtos do trabalho e a vida; além desses fatores que não podemos modificar pela magia da consciência, há o inconsciente e as diversas culturas que nos moldam. Em  A história da sexualidade - A vontade de saber (1976) Foucault vê no dito socrático o primeiro passo para repartir entre o autoconhecimento e o oposto, simplesmente viver com prazer, cuidar de si. A lição socrática aos poucos se transformou em necessidade de examinar sua consciência, seus desejos, o mais fundo do eu, e aprisioná-lo pela vontade de saber. Por que esta vontade não é libertadora? Porque ela pressupõe um centro, um comando ao qual de bom grado nos submetemos. Analisa-se tudo: desejos, amor, sexo, a decifração de si. Entrega-se ao especialista, a algum tipo de ciência a tarefa de revirar nosso interior, cria-se um "eu sou um sujeito que deseja".
Dotar o sujeito da capacidade que ele exclusivamente tem de conhecer, de representar o real como fazem as filosofias da consciência, foi um passo para a "invenção da mente" como pura capacidade de um sujeito, privadamente, conhecer o real. A consciência seria o facho de luz sem o qual não há acesso aos objetos. 
Se fosse assim, não precisaríamos da linguagem, da percepção, das distinções entre forma e conteúdo (figura pato/lebre da postagem anterior), da compreensão de significados, das interpretações, do aprendizado, da inteligência, da sensibilidade.
Como se vê, é possível dispensar o "eu penso", o sujeito soberano, a mente como substrato das ideias. E ficamos com pessoas, sua liberdade, sua dignidade, suas capacidades.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Mente e pensamento

Se há algo que intriga e é objeto das mais diversas interpretações é poder pensar e considerar que há uma espécie de substrato para haver pensamento a que geralmente chamamos de mente (e não cérebro) ou uma capacidade que chamamos de "o mental", diferente do material, do físico, do palpável.

Para Platão, temos corpo mortal e almas, uma delas, a responsável pela inteligência, pela iluminação, pela sabedoria, é imortal. As demais são ligadas aos desejos, aos apetites, aos impulsos, diríamos atualmente.


Aristóteles também opõe a alma intelectiva ao corpo, o mesmo na filosofia medieval, o homem é corpo mortal, carnal, e alma imortal. Idem Descartes, o homem é um duplo, corpo extenso e material, alma pensante, imaterial.
O que leva esses pensadores à dividir mental/corpóreo?
Provavelmente a impressionante capacidade de pensar em algo, privadamente; imaginar algo, livremente; deduzir, raciocinar, mas também esperar, atentar, desejar, querer, e várias outras possibilidades que são rotuladas como mentais em oposição a algo físico, como andar, mastigar, atirar, empurrar, ou fazer algo em que alguma habilidade ou treinamento do corpo sejam exigidos.
Porém, quando se tem a intenção de atravessar uma rua, ou de dar um soco em alguém, ou preparar um alimento, isso é físico, material, nada tem de mental?
Pense no modo como se cozinha: comprar, armazenar, selecionar, decidir, temperar; também há o  tempo de cozimento, quantidade, qualidade dos ingredientes, e mais, muito mais. É preciso usar habilidades que foram aprendidas, pertencem a uma cultura, com resultados: satisfação ou não, obter o cargo de chefe em restaurante, movimentar feiras, agricultura, comércio, etc. etc.
Interessante que em nenhum desses casos foi preciso se deter no "mistério do pensamento"!
É por que não há mistério. Pensar em algo é uma ação aprendida, que muda conforme se trate de tomar uma decisão, projetar um móvel, pesquisar na internet, orar e agradecer a Deus, telefonar ao amigo(a), amar, planejar seu dia a dia -, em cada uma dessas atividades há um tipo de recurso ao que chamamos mente, ela é multitarefa, mas não é uma substância ou um substrato especial. 
Nem precisa ser reduzida ao cérebro, a neurônios. Sem cérebro, é claro que não há emoção, linguagem, abstração, aprendizado. Mas nosso cérebro não decide qual filme você irá assistir, nem qual nome você dará ao seu cachorro, exemplos corriqueiros, nos quais estão envolvidos gosto, predileções, valores.
 Admirar uma paisagem depende da mente, é mental? Fugir do perigo depende da mente, a fuga é mental? Escrever e ler dependem da mente, produzir um texto é mental?
O que há nisso tudo são nossas experiências ativas, a troca e o aprendizado do que significa tal coisa, tal ato, tal mensagem, em tal situação, para tal pessoa. Capacidades aprendidas, que fazem sentido em nosso humano modo de ser.
É preciso compreender o jogo de linguagem em que pensar, pensamento, mente, mental, físico, material são usados. Experimente usar a expressão "segredos da mente", por exemplo, em contextos de fala e saberá a que a expressão se refere, o que se quer dizer com ela. Para Wittgenstein, esse exercício bastante trivial dissolve renitentes problemas filosóficos, como esse que pressupõe que a mente existe.


Ver a ilustração acima como pato ou lebre, é um exemplo de como vemos aspectos e fixamos ora um ora outro.
Existem recursos como lembrar de algo, prestar atenção no trânsito, ler, ler em voz baixa, ler para si mesmo, e mais um sem número de ações.
O que também causa admiração é termos uma subjetividade, um eu. Esse tema fica para a próxima postagem.