segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Nietzsche e a cultura filisteia.

 Como você definiria "cultura"? Qual sua importância? Arte e cultura são a mesma coisa?

Cultura e sociedade nascem e se sustentam mutuamente de um ponto de vista sociológico. As artes fazem parte da cultura, mas mesmo os costumes, a língua, a política, as religiões, os hábitos, a formação educacional, as normas e regras de convivência, enfim, o modo de ser de uma sociedade, suas características, seu envolvimento com certas políticas. Exemplo: cultura de tolerância e acolhimento em contraste com cultura de preconceitos e rejeição; cultura de respeito à convivência em contraste com o pouco caso e falta de consideração pelo outro.

Mas pode-se levar o conceito de cultura para outro âmbito, o estritamente filosófico. E Nietzsche foi um expoente em sua crítica à cultura filisteia, aquela cultura que se banalizou, se "mundanizou", se vulgarizou, é uma cultura vendável. Por detrás dessa crítica e desse estilo demolidor, sua visão de força, energia, rejeição de conceitos acabados, estreitos, taxativos. Nietzsche rejeita igualmente aquele espírito sombrio, os imperativos categóricos à la Kant com suas exigências e restrições em lugar do livre espírito. O cultivo da vida e sua resplandecência se anulam com as demandas da religião que anulam a vontade de viver.

Procura-se alguém com estilo direto, claro, que não engane, não floreie, não despiste. Alguém dionisíaco, criador, alguém que até mesmo sofra ao criar, que enfrente a tragédia, que viva a tragédia no sentido daquele que sorve a mudança, a mutação, a luta, a transposição, a recuperação dos primeiros filósofos em contraste com a herança socrática para a qual importam o raciocínio e o bom mocismo, a perda de força vital. A imagem da dança no alto da montanha ilustra o que pensava Nietzsche sobre essa força e como ela se derrete, se afrouxa, decai com o que ele chamou de socratismo, satisfazer-se com o dar razão, com a busca da serenidade. 

Difícil entender como essa procura pela serenidade possa ser desvalorizada, nossa cultura justamente valoriza essa espécie de apaziguamento, de ataraxia estoica. É que para Nietzsche vale o embate, a busca errante dos espíritos livres que se banham à luz do meio dia e conseguem ver e dar sentido ao que se pode determinar e não a um projeto geral e inespecífico.

Novamente, difícil de entender e muito mais de praticar. É que o livre pensador agrega sentido ao que faz, às coisas que vivencia. Daí seu ateísmo, não o sacrifício da cruz, e sim à vida, à alegria da dança, do lançar-se, sem precisar do porto seguro do mundo verdadeiro e ideal de filósofos como Platão.

E hoje?

Essa noção de cultura se opõe a tudo que vemos como cultura em nossos dias. A retaliação ao que não concorda com nossas ideias (que podem ser tão pobres e frouxas quanto às do adversário), pobreza da linguagem e das representações, a personificação dos famosos como exemplos, e seus seguidores em rebanho. Nações inteiras com seus guias geniais (Stalin, Mao, Fidel), o fanatismo que cega, os governos vigilantes e tutelares, os espíritos de porco (Trump e cia. ltda.), aqueles que deveriam resgatar honestidade e compromisso com a seriedade com o trato dos bens públicos e que se tornam ídolos. "Observai, pois esses adquirem riquezas e se tornam mais pobres. Almejam o poder, esses incapazes e antes de tudo o estrado do poder: muito dinheiro" proclamou Nietzsche (Lula, Bolsonaro e filhos de ambos).

Alguma chance para a luz do meio dia solar em plena escuridão da massa e seus valores decadentes?

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

O que é "liberdade de expressão"?

Em recente episódio que se tornou rapidamente espalhado pelas mídias, o presidente Jair Bolsonaro respondeu à pergunta de um jornalista sobre depósitos nas contas de sua esposa com: "Tenho vontade de encher a sua boca de porrada!".

Pronto, o alarde era previsto. Quero me deter na análise de uma correspondente da rede Globo na Suíça, de que fora bloqueado o direito à liberdade de expressão do jornalista. Claro que imediatamente vem à mente que também o presidente teria usado de sua liberdade de expressão, mesmo sendo grosso e muito imprudente, como é sabido. Evidentemente há o outro lado da moeda: o jornalista claramente provocou, o objetivo não era o propriamente jornalístico, ou seja, informar e comunicar ao público por meio de fontes as informações que, aliás, já estavam disponíveis e acessíveis ao público, sem censura.

Então, o que é liberdade de expressão? Aparentemente dizer o que vem na telha a qualquer um em qualquer circunstância? ou não?

Em uma sociedade plural, em situações as mais variadas, o que mais ocorre são as comunicações imediatas, impensadas, exploradas por quem as transmite, interpretadas pelo tipo de poder em jogo, geralmente o poder econômico, político e midiático. Quem fala mais alto? A partir de que canal de comunicação? Qual a reverberação da mensagem? Quem diz o que para quem?

A diferença crucial para entender que liberdade de expressão não é agredir, insultar e muito menos provocar para ver a reação e resultá-la contra ou a favor do interlocutor. Em outras palavras, há uma distinção entre afirmar, proferir juízos, declarar, informar e, na outra ponta, sugerir, provocar, falsear, interpretar pró ou contra certa ideologia, credo político ou religioso, defender o ponto de vista dos adeptos ou contrários a certa política, ou a tudo o que se abrigar sob o selo do que convém ou não defender em público. Camuflagens...

Procurar argumentos sólidos, deixar cair o véu ideológico, e, ao invés de distorcer fatos e circunstâncias, esclarecer, isso foi o que buscou Kant, o esclarecimento à luz da razão. Ora, parece que é justamente a luz da razão que vem se apagando em nossa sociedade. Responsabilizar-se pelo que se diz, essa seria propriamente "liberdade de expressão". Fundamentar os argumentos, buscar uma intersubjetividade intacta, como diria Habermas, fundamentos buscados em ciências reconstrutivas, aquelas ciências que mostram as vias de acesso à compreensão, à reformulação, às tomadas de decisão inteligente de cientistas que podem ser sociólogos, biólogos, estatísticos, enfim, aquelas ciências que iluminam "as situações nas quais nos encontramos", juntamente com a filosofia, para aprendermos "a interpretar as ambivalências que nos atingem como sendo outros tantos apelos a uma responsabilidade crescente em meio a espaços de ação em vias de se encolherem cada vez mais", escreveu Habermas em "A unidade da razão na multiplicidade de suas vozes".

O entendimento não é entendimento se for coagido, se for provocador, se instigar o ódio, o preconceito, se mentir ou enganar. Entendimento requer responsabilidade, busca de conteúdo, no caso do jornalismo, conteúdo relevante, fidedignidade das fontes, levantamento de fatos que iluminem e esclareçam. Entendimento é a capacidade de ouvir, compreender, e não de insuflar, deteriorar propositadamente a situação e as circunstâncias que envolvem pessoas e ações. 

Portanto, o conceito de liberdade de expressão precisa ser equacionado e reconstruído. De per si, ele é um conceito fugidio, ambíguo, pode ser usado contra ou a favor de certa pessoa, em geral com poder e/ou prestígio. Nas sociedades modernas é fácil influenciar e conduzir massas e multidões, convencer, usar de todos os meios em proveito de si, dos seus, de sua empresa, de seus meios de comunicação. A comunicação se torna pulverizada e imediata nas redes sociais, com sua habitual banalidade e ao mesmo tempo capacidade de ferir, de destruir, de manipular. 

Caminhos estreitos e cheios de percalços os da comunicação responsável e verídica, a qual, num mundo ideal, seria a autêntica liberdade de expressão.