terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Voltaire, sobre o filósofo ignorante e a liberdade

Para terminar o ano, reflexões de um pensador francês, que, sem cultivar a filosofia propriamente dita, produziu uma obra leve, satírica, crítica dos costumes de sua época, e que foi censurada. Suas Cartas Inglesas foram queimadas, e mais tarde publicadas novamente.
O livre pensar até hoje sofre com a intolerância, como muito bem mostram episódios recentes de violência absurda em plena Europa e mundo afora.
A seguir alguns trechos de Voltaire, um iluminista, amigo de Frederico II, outro iluminista, esclarecido, culto, com ideias e estilo de vida fora de padrões até mesmo os atuais. Em seu palácio vivia com um misto de arte, prazer e homoerotismo.

Voltaire em o Filósofo Ignorante:
"Como posso pensar?
Os livros escritos há mais de dois mil anos ensinaram-me alguma coisa? Tentei descobrir por meio da razão se as molas que me fazem digerir e andar são as mesmas que me fazem ter ideias. Nunca pude conceber como e por que as ideias fugiam quando a fome enlanguescia meu corpo, nem como e porque renasciam quando eu havia comido. Vi uma diferença tão grande entre os pensamentos e a alimentação (sendo que sem esta eu nunca pensaria) que acreditei haver em mim uma substância que raciocinava e outra que digeria. Entretanto, buscando sempre provar a mim mesmo que não sou dois, senti grosseiramente que sou um só. Essa contradição sempre me penalizou muito.
Com muita engenhosidade, perguntei a alguns de meus semelhantes, cultivadores da terra, nossa mãe comum, se sentiam ser dois, se graças à filosofia haviam descoberto possuir dentro de si uma substância imortal e, no entanto, formada de nada, existente sem extensão, agindo sobre os nervos sem tocar neles, enviada expressamente ao ventre de suas mães seis semanas após a concepção. Acreditaram que eu estava brincando e continuaram a cultivar seus campos sem responder-me.
Vendo pois que um número prodigioso de homens não tinha a menor ideia das dificuldades que me inquietavam (...) e muitos caçoavam do que eu queria saber, suspeitei que não era absolutamente necessário que o soubéssemos. (...) Acreditei que as coisas que não podemos alcançar não são nossa partilha. No entanto, malgrado esse desespero, não abandono o desejo de ser instruído, e minha curiosidade enganada é sempre insaciável".

***
Essas reflexões miram tanto a certeza filosófica em noções como alma, o dualismo cartesiano, como inquietam aqueles que buscam pela origem das ideias: como é possível pensar e se pensar e sentir diferem, se são duas naturezas. Então o homem teria duas naturezas? O filósofo é um ignorante que mesmo assim não desiste de interrogar...

Ao que tudo indica, esse livre pensar, esses questionamentos, não atingem os fanáticos, os dogmáticos, os intolerantes, os que se creem de posse da verdade. Os que odeiam a liberdade, a arte, a música e o respeito às diferentes crenças e religiões.

O mais incrível é que, se considerando como únicos portadores da virtude, os únicos cuja morte e assassinato de inocentes, creem que isso conduzirá sua alma imortal a algum tipo de paraíso eterno. 

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Nem escola com partido nem escola sem partido

Desde os anos 60 professores têm sido instados e doutrinados nos cursos de ciências humanas, principalmente Pedagogia, História, Sociologia e Filosofia que é necessário engajamento político. Chamam a esse engajamento de "consciência crítica" e o conteúdo, a doutrina marxista. Condenam a suposta neutralidade tanto da parte dos professores, quanto ao teor dos livros didáticos.
E o que pretendem com isso? De início, a luta contra a ditadura, contra a censura, o que era um pleito mais do que justo, necessário resistir à ditadura militar, que impôs medo, impôs a doutrina da pátria e de sua segurança, manietou a imprensa, enfim, um regime de força.
A ditadura caiu, mas a mentalidade de grande parte dos professores ainda acha que precisa doutrinar, fazer a apologia do socialismo, derrotar a sociedade dividida em classes sociais; proletariado, estudantes, sem terra devem lutar para acabar com o capitalismo, fonte de todos os males econômicos e sociais.
Em grande parte dos livros didáticos de História Antiga (e agora a proposta é de acabar com a própria história, que é coisa das elites...), nas décadas de 70 e 80 a orientação pedagógica era e até hoje persiste, substituir o descritivismo (datas, batalhas, feitos) pela leitura que chamo de "marxizante". Esta, sob o pretexto de ser participativa, engajada, anti-positivista, pratica o pior dos reducionismos, travestido em "práxis revolucionária". Generaliza e empobrece a riqueza enorme da história universal e nacional, que não cabe na estreiteza das lutas de classe. Definitivamente, nações, países, culturas não se modificam por meio da única visão, empobrecedora da realidade, enfaixada no rótulo "luta de classes".
A reação veio recentemente, nas propostas de "escola sem partido", em que o professor ofereceria uma visão mais ampla, menos política, mais neutra. Haveria uma lista de obrigações, entre elas, evitar a tomada de partido, justamente o da esquerda, acima resumido.

Quem tem razão?!
Nenhum dos dois. Escolas há que têm fundamento em religião, outras são laicas, algumas adotam métodos pedagógicos na linha de Paulo Freire, outras de Piaget, algumas são montessorianas, e assim por diante.
E isso tem a ver com a missão da escola, com sua visão do que é educar. Nenhum problema!
O problema começa quando se imiscuem nos projetos pedagógicos, nas disciplinas escolares, nos livros didáticos, uma orientação sobre como o professor deve ou não deve abordar certos temas.

A alegada impossibilidade de ser neutro por parte dos defensores da escola politicamente engajada (esquerda anticapitalista), e a de que se deve ser neutro (escola sem partido), ambas se equivocam.
E isso porque expor, apresentar, argumentar, criticar, fundamentar, analisar, explicar, todas essas ações didáticas implicam que ensinar e aprender requerem dos professores, diretores, pedagogos acima de tudo, responsabilidade.

Crianças e jovens não estão na escola para serem doutrinados, nem para fazerem o papel de marionetes. Educar é uma atividade, um compromisso com asserções fundamentadas, que podem ser expostas ao crivo da crítica, do aprofundamento e seriedade com que são abordados temas e conteúdos, seja nas aulas de redação, de História, Geografia, ciências naturais.
É muito mais difícil dialogar, argumentar, pesquisar para que suas aulas sejam abertas, sérias, sem manipulação, sem agredir o saber e o conhecimento. Saber e conhecimento são as raízes do ensinar e do aprender.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

A primeira aula de Filosofia

Como em geral se inicia um curso de Filosofia, seja para alunos do Ensino Médio, seja para universitários?
Com a definição do termo, "amigo da sabedoria" (philos = amigo; sophos = sabedoria), os primeiros filósofos (desde Tales até Sócrates, Platão e Aristóteles); em seguida entram os temas ou a divisão da filosofia em suas sub-especialidades:
- o Ser = Metafísica, Ontologia, Teodiceia
- o Conhecer = Teoria do Conhecimento, Epistemologia (ou Filosofia da Ciência), Lógica, Filosofia da Linguagem, Filosofia Social, Filosofia da História
- o Valor (ou o Agir) = Ética, Estética, Teoria dos Valores

Alguns professores iniciam com a História da Filosofia antiga, mas como levar os alunos a compreender noções básicas como a de "ideia" para Platão? E que dizer, mais adiante, de filósofos complexos como Kant? ou Hegel? 
A tentação é ir logo para a chamada filosofia prática, engajada, para plantar na cabeça dos alunos uma linha, a da dialética, a da luta social, a do poder à classe oprimida, aos camponeses, aos pobres em geral. Insufla-se a ideia de que a injustiça social é um problema básico do capitalismo, que este é basicamente o mal social maior. Visa o lucro. 
Ora, é fácil e perigoso instilar esse tipo de ideologia, evidentemente não se trata de Filosofia... Trata-se de desonestidade intelectual, pura e simples.

Por outro lado, o ensino tradicional requer o uso de muitos conceitos abstratos, aos quais os alunos não estão habituados. E, nessa altura, com tanta nomenclatura, o interesse dos alunos se esvazia...
Como contornar o problema didático (ensinar temas e conteúdos, e também História da Filosofia) e despertar o interesse, levar os alunos à compreensão do que seja Filosofia e filosofar?!

Sugestão: sem deixar de lado o compromisso didático com os temas e conteúdos, a cada vez que se introduzir um tema (por exemplo, em Metafísica, o tema do ser, da existência, das causas), entraria um filósofo para ilustrar o conceito em questão, e, importantíssimo,o professor começa a levantar dúvidas, a fazer perguntas. O meio para atingir o interesse é estimular a curiosidade,  levar a reflexão à experiência pessoal, à vida, aos interesses, ao modo de agir e de pensar dos adolescentes e dos jovens.

Tomando o exemplo da questão do ser (que é das mais abstratas), o professor pode indagar sobre tudo o que existe, como existe, e que todos os seres vivos fatalmente acabarão, morrerão. Se alguém teve a dolorosa experiência da morte de alguém próximo, que é "fim", "não ser mais", pedir que o aluno tente expor como é não ser mais, a ausência, a sensação de nada, de vazio. Na medida do possível, o professor deve usar vocabulário do dia a dia para facilitar a reflexão. 
***
Moore, um filósofo contemporâneo, intrigado com a experiência de que seria pai, perguntou a sua esposa:
"Como é carregar em você um ser que não é o seu ser?" E indagações como essa podem levar a insights filosóficos. O professor pode pedir para que seus alunos escrevam respostas a esses questionamentos do cotidiano. 
Quando o mestre menos esperar, seus alunos estarão se iniciando no caminho filosófico.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Essência e Existência II

Volto a abordar o tema acima, um dos pontos principais de toda a história da filosofia. 
A busca do fundamental e do que funda todas as coisas existentes em geral os filósofos resumem pelo conceito de "essência". Tal como no vocabulário do dia a dia, essência é o sumo, o suprassumo, isto é, o que permanece depois de sofrer mudanças, depois, digamos assim, de ser "espremido".
 A essência, é, portanto, invulnerável, imprescindível, sem ela a existência se dispersaria, seria nada. 
No pensamento medieval, representado principalmente por Santo Tomás de Aquino (1225-1274), a essência se concretiza de três modos nas substâncias (substância caracteriza a permanência, algo não derivado nem secundário): 
- o modo de ser de Deus, que ao mesmo tempo existe e é sua própria essência, tudo dele depende e ele não depende de nada; 
- os seres criados, as criaturas, recebem sua existência e sua essência de Deus, elas diferem entre si em gênero e espécies, por exemplo, plantas, animais, homens; 
- há ainda essência em tudo que se compõe de matéria (perecível) e forma (responsável pelas características individuais).

A busca pela essência prossegue nessa mesma direção nas filosofias de tipo clássico, Deus como causa eficiente e final de tudo o que existe. Essas filosofias consideram que existe mesmo o mundo religioso e sobrenatural, um tipo de metafísica da realidade última e superior para a maioria das religiões, que se impõe como um guia superior e inquestionável para a conduta humana; ao lado desse mundo de essências, que só pode ser apreendido pela filosofia, há a existência do mundo que pode ser estudado pela ciência, o mundo empírico dos fenômenos. Assim  Dewey, filósofo pragmatista norte-americano, resume a filosofia tradicional em Reconstruction in Philosophy (1948).
Note-se que Dewey historiciza, quer dizer, sua reflexão se baseia na história social e cultural da humanidade. 

E esse já é um pressuposto da filosofia moderna e contemporânea.
Heidegger, também se volta para a história, em particular a história da filosofia a fim de elucidar as diversas abordagens da relação essência/existência. Para ele filosofar é dialogar com os filósofos, debater com eles, abrir nossos olhos e ouvidos para o que disseram, e todos se preocuparam com o "ser do ente". 
O que isso significa?
Ater-se à linguagem de cada tradição filosófica, procurar compreender como cada uma respondeu àquela questão: o que fundamenta, qual é a essência, como se "produz" o ser que determina toda e qualquer entidade (criatura, átomo, espírito, corpos, objetos, mundo, cosmo, etc., etc.).
Um exemplo: Heidegger escreveu sobre a filosofia grega, sobre Leibniz, sobre Kant, tem um elaborado e denso estudo sobre Nietzsche. Em todos procura enxergar como cada um entende o ser, e para Heidegger a linguagem é a "casa do ser". Seu diálogo com Kant mostra o poder do entendimento humano, o ser só pode ser apreendido pelo modo de conhecer transcendental, fundado em conceitos e categorias.

Interessante observar que a filosofia tradicional toma a essência e a existência como dependentes uma da outra e consideradas em si, de um modo absoluto.
Ao passo que a filosofia pós-metafísica, que Kant inaugura, toma a essência e a existência como inerentes à razão e ao nosso entendimento. Elas se enraízam em nosso pensar, em nosso filosofar, e, por isso mesmo, na construção de nossa própria humanidade, em como existimos e nos manisfestamos. Isso fundamenta tanto a essência como a existência. 
***
Reflita sobre esses percalços e barbaridades: indígenas não possuem alma; opositores de certos regimes devem ser eliminados; judeus dizimados; xiitas convertidos em sunitas; sunitas em xiitas; ateus condenados ao inferno. A lista da estupidez é enorme e inesgotável. Como entender isso à luz de nossa existência? E de nossa essência?

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Importância da Filosofia na vida pessoal

Em geral a Filosofia, tanto como disciplina acadêmica e como parte essencial da cultura e da história da humanidade, fica distante da vida pessoal. Mesmo quem tem um grau apurado de informação e educação formal, não consegue atinar com os conceitos, os termos, o tipo de pensamento abstrato próprios da Filosofia. 
Entretanto, a reflexão filosófica cumpre uma função educacional, pedagógica e criativa na vida humana. 
Como conciliar a dificuldade inerente ao pensamento filosófico com sua necessidade e importância?

A narrativa filosófica se aproxima da arte e da ciência, mas delas se distingue por não ser fantasiosa, não apelar para a pura imaginação ficcional dos artistas que representam um mundo de cores, sons, performances, e mesmo entretenimento. Distingue-se da ciência por prescindir de testes, experimentos, leis, generalizações e obtenção de resultados práticos como os da tecnologia. 
Ao mesmo tempo a Filosofia depende de uma mente aberta e criativa de um lado, e da busca da verdade o que também pauta a ciência, de outro lado.

Se você é professor de Filosofia, ou se é alguém com vontade de aprender com os mestres do pensamento, pode começar com perguntas a seus alunos no primeiro caso, ou com reflexões pessoais no segundo caso: indagações que partem de situações banais do cotidiano, das vivências pessoais para em seguida generalizar com questões mais abrangentes e fundamentais. 
Quem sou eu? O que faço de relevante em minha vida? Quais são os valores nos quais me baseio para decidir e julgar minhas ações e o mundo ao meu redor?
Aproveite o conceito de "mundo", por exemplo, para raciocinar, para abstrair. Como os primeiros filósofos, pergunte sobre esse "mundo". O cosmo, o universo? E vá além: como veio a ser tudo o que há? O homem em sua caminhada na face da Terra, o que isso representa para a humanidade? E o sofrimento, a dor, a humilhação, são absurdas, fazem sentido, como interpretar a morte, a morte de inocentes especialmente?
Ao atingir esse grau de abstração, eis aí o filosofar despontando. É preciso despertar a curiosidade, com filósofos que atinjam a mente e o coração.
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Pessoas há que andam em círculos, o caminhar contínuo desgasta o percurso, não saem do próprio ninho construído, aliás, por elas mesmas. São prisioneiras de seus preconceitos e ignorância.
Outras há que ziguezagueiam, parecem chegar a um resultado gratificante, mas voltam atrás, sua perplexidade as impede de seguir em frente.
E outras há que cumprem metas, se transformam, modificam seu modo de pensar em busca de melhoria, de novos valores, de indagações que alargam e iluminam seu reto caminhar.

O papel da Filosofia seria trazer para este último caminhar um número maior de pessoas cada vez mais livres, mais reflexivas, que ponderam e abrem seu pensamento. Isso impede que ideologias, credos, partidos ceguem e fechem cabeças e corações. Que elas não precisem de um comando, de um chefe, de alguém que diga o que devem fazer, o que pensar, como viver.


terça-feira, 25 de agosto de 2015

Autotransformação

Todos fazem planos para o futuro, imediato e mais distante. Desde a administração do cotidiano, como a administração da vida futura (planejamento, seguros, o que fazer na aposentadoria, viagens, compras de bens móveis e imóveis, e muito mais...). 
O que dizer do passado? Em geral o passado é considerado morto. Ele não morre, somos nosso passado mais do que somos nosso futuro. A vida se enriquece quando as pessoas se debruçam sobre o passado, não só como recordação, e sim ao perguntar sobre o sentido de acontecimentos vitais, o valor das perdas, os mortos que habitam seus dias e noites, os episódios traumáticos, o que se deixou para trás desfeito, ou nunca realizado, as inúmeras frustrações.
Pois bem, o passado de cada pessoa com suas vivências, sentimentos, paixões, temores, fobias, alegrias, parecem enterrados, inamovíveis, irreversíveis. A psicanálise volta, retorna, retoma esse passado para ser reavaliado, reconsiderado, e até refeito sob novas perspectivas. 
Cada etapa da vida, especialmente se há enriquecimento interior, se a sensibilidade e a vontade de se compreender, de entender melhor certas ocorrências, inclusive buscar quais delas são mais significativas, representa momentos diferentes para repensar o que passou e ecoa sempre. É possível ampliar o modo de se olhar para o que passou, e assim mudar de perspectiva. Não é preciso análise com profissionais. Para se ver no espelho interior é preciso abertura, que suas experiências novas possam filtrar as antigas. O passado nos impele, não se extingue. Pelo contrário, acontecimentos não voltam, impossível retornar no tempo, tudo tem e teve seu tempo, evidente. Porém, o que a pessoa é, está sendo produzido pelo que ela já foi um dia. Fatos marcantes, na medida em que se amadurece, são vistos sob novo prisma, pois somos capazes de autotransformação.
Sim, fui covarde, fui culpado, fui excessivamente rigoroso, fui mesquinho, fui generoso, e muitos modos mais de se auto-avaliar podem ser redirecionados. Negação, alteração, justificativas, enaltecimento, auto-engano, o próprio esquecimento, a criação de barragens, esses mecanismos, ao serem reconhecidos, ajudam nessa reconsideração. Fui justo comigo? Por quais razões me considero incapaz e fraco? Ou o contrário, me julgo acima de suspeita, incólume?
Alguns chegam a situações limite, quando sentimentos espocam ou faltam, e se sucumbe. Outros se renovam, seguem adiante com força e coragem, e uns poucos conseguem paz interior. 
Vez por outra uma epifania, um súbito episódio revelador capaz de mudar tudo.

Obstáculos à autotransformação: negação, desculpas e justificativas e o sepultamento de seu passado.
Condições ótimas à autotransformação: abertura, humildade, e muita, muita reflexão acompanhada de informação, leitura, sensibilidade. Evitar as conchas que fecham as pessoas, como preconceito, radicalismo, a fé que cega, a egolatria.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Filosofia e amizade

Filósofos em geral apreciam a amizade como marca das relações humanas. Enquanto o amor pode faltar ou vir em excesso, acabar, gerar rancor, incendiar a alma, cegar, a amizade é mais serena e duradoura. As bases dos laços entre amigos(as) são a afinidade, o convívio, a troca de experiências, o aprendizado, o desprendimento, a compreensão. A amizade dispensa cobrança, ignora o ciúme, e, quando o amor filial, materno, paterno, entre casais vem revestido pela amizade, engrandece essas relações, alimenta-as com a sinceridade, a admiração e o proveito mútuo de que usufruem pessoas amigas.
Bem conhecidas são as reflexões de Aristóteles nos livros 8 e 9 de Ética a Nicômaco". "O amor é um sentimento e a amizade uma disposição de caráter"; vem baseada no respeito, nenhuma das partes precisa comandar a outra, há camaradagem,confiança e aprazibilidade. Um traço essencial à amizade é o querer bem, a benevolência mútua, desprovida de interesses, como usar o outro em seu proveito ou apostar no prazer simplesmente. Por isso a distância não prejudica, mas é claro que o convívio a alimenta.  
O ególatra, aquele que ama a si mesmo, é incapaz de ser amigo, mas também aquele que se menospreza é incapaz de prezar o outro.

Para Cícero, a amizade decorre de sinceridade, benevolência, confiança e desprendimento. Conversar com um amigo é o mesmo que conversar consigo mesmo, tal é o grau de sentimentos compartilhados, o alegrar-se e o entristecer-se; "uma alma dissimulada e tortuosa não pode ser fiel", escreveu Cicero no Diálogo sobre a Amizade.

Michel de Montaigne refletiu sobre a amizade, em especial a sua amizade com La Boétie, também filósofo (século 16), como uma relação pessoal, alguém por quem se tem afinidade, apreço, valores e vivências em comum. No Tratado sobre a Amizade, o autor é sincero, o tom é confessional, ele ressalta a importância das experiências vividas, dos fortes laços que os completam, dos conselhos trocados, mas também mostra que amizades podem se romper, e resta o rancor. Quando lhe foi perguntado, por que tal amizade com La Boétie? Ele respondeu, "porque era ele; porque era eu". Isso mostra que as relações acontecem favorecidas ou não pelo meio, pelo ambiente social, pelas convivências; isso pode ou não fazer surgirem amizades.

Escrever ensaios é fazer experiências com o pensamento

Assim, cada um pode engrandecer a si e aos outros nessas relações antes de tudo simples, diretas, benéficas, sinceras. E, se Filosofia é a amizade à sabedoria, se compreende ainda melhor que filosofar requer esse caminhar em direção ao que é saber, ao que se preza, ao que se valoriza.

Ao mesmo tempo, o quanto são desprezíveis o engano, a mentira, o jogo duplo. O quanto causam de prejuízo moral, ético, político, social, econômico as mentiras, as manipulações, os raciocínios tortuosos, o fingimento, a astúcia.
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Considere-se nossa situação. Um mergulho no tempo e aterrissamos no planalto central do Brasil. Ali nasceu, há treze anos, um projeto baseado na inimizade ao país e aos brasileiros. Esperemos pelo seu fim próximo.
A estrela do jardim do Palácio do Alvorada foi desfeita, a estrela dos líderes do partido foi plantada no poder em benefício próprio com dinheiro público.

terça-feira, 28 de julho de 2015

O (in)dispensável ser

Se algum escritor ou pensador se aventurasse a dispensar o verbo ser, conseguiria que seu leitor o compreendesse? Alguém poderia ousar eliminar "ser"?
Impossível, por inúmeras razões. "Ser", "être", "to be", e certamente nas diferentes línguas, algo semelhante à função de "ser" deve ocorrer. 
Sequer questionamos, nem poderíamos, que conjugar tal verbo seja imprescindível (acabei de escrever "seja"...). Simplesmente porque nomear, é (novo uso do verbo ser) distinguir algo para que nós ou para que os outros nos compreendam. Identificar, classificar, opor, destacar, apontar, e muitas outras ações linguísticas requerem por detrás a pressuposição de que coisas, pessoas, lugares, temporalidades, situações, sejam, no sentido de existirem, de estarem aí à nossa disposição.
Desde que a Filosofia nasceu, a pergunta é pelo ser e pelo não ser. A mais essencial de todas as questões, como apontou Heidegger é essa: por que existe o ser e não antes o nada?
Mesmo no uso banal, e, talvez mais importante nesse mesmo uso cotidiano, "é", "era", "sou", "não é", "não sou", se apresentam o tempo todo. "Ele é", invoca quem, o que, como. "Isto é", acarreta indagar o que, como, e também, duvidar, afirmar, pressupor.
Sujeito, predicado e objeto: "Algo ou alguém é tal". Essa proposição, o núcleo da lógica e da gramática durante séculos, foi analisada como resumindo todo tipo de pensamento. 
No sentido tradicional, o ser pertence à realidade entendida no sentido metafísico, quer dizer, como inerente a tudo. Ser ideal, ser substancial, ser como consciência de si, ser como ideia se autoproduzindo na história, ser aí no tempo, ser como existência humana, assim a filosofia rondou em torno ao SER. 
Não mais. A Filosofia da Linguagem mais recente deslocou a questão para a diversidade dos usos do verbo ser na medida em que não identifica o verbo empregado na linguagem usual com o ser na acepção de que tudo é, tudo tem uma essência, de que todos os entes existem ou subsistem no ser. 
Hoje a Filosofia retira do ser esse caráter absoluto e essencial, as coisas se dispõem para nós, para nosso uso e nosso conhecimento. 
No centro de todo ser, um ser que questiona
A afirmação "algo é isso", passou a ter um uso entre inúmeros outros. Para Wittgenstein, após quebrar a cabeça com a proposição geral que resumiria tudo o que é o caso, tudo o que ocorre, concluiu que é na e pela linguagem de todo o dia que faz sentido afirmar que algo é. E mais em um sem número de usos. Pense na comunicação entre falantes e como passa despercebido o verbo ser, e falar acerca do ser em si fica restrito ao linguajar do filósofo. 
Indispensável no uso normal da linguagem, e dispensável ou como disse Wittgenstein, dissolvido enquanto eixo fundamental da metafísica. Assim é "ser", ou "o ser".
Faça o teste, pergunte para si mesmo "o que eu sou?"

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Foucault e a morte do homem

Em sua obra de 1966, As Palavras e as Coisas, Foucault (1926-1984) analisa o nascimento das ciências humanas. Ao invés de buscar as raízes da Sociologia, da Psicologia e da Crítica Literária em cientistas inovadores, ele inventa um novo caminho, o da arqueologia do saber ocidental.
O saber se constitui em séries, ordens, disposições como camadas arqueológicas. No século 16 o mundo dispunha de signos e se buscava suas semelhanças, as correlações, as relações mágicas e divinatórias. Não havia nenhuma possibilidade de surgir o homem como objeto de ciência. Nem mesmo na época de Descartes, em que a razão/consciência representava as coisas e as articulava por meio das ideias. Estas precisavam da gramática (orações com sujeito e predicado) para representar o mundo, os seres eram classificados em grandes quadros ou tabelas, e a riqueza avaliada por meio da moeda, o valor ficava embutido na mercadoria. 
Tampouco havia nessa ordem do saber (epistemê) um lugar para o homem. Ele surge quando, em fins do século 18 novos saberes o designam como ser vivo (pela Biologia), falante (pela Filologia) e produtor (pela Economia Política). Enfim um ser em "carne e osso", usuário da linguagem e trabalhador. O homem que surge para o saber, segue normas e tem funções, a Psicologia pode se articular; ele fala, e a linguagem requer estrutura e com ela há sentido, e a Crítica Literária usou esses dois conceitos; produzir provoca conflitos e não se faz sem regras, conceitos basilares da Sociologia.
Como as ciências humanas pretendem chegar ao que é o homem, nele mesmo, sem desconfiar que ele é constituído por estruturas, tal como a Psicanálise, a Etnologia e a Linguística exigirão, a vocação das ciências humanas não será realmente crítica. O homem que delas surge para o saber, não percebe que sua vida é finita, que a morte é inexorável, que sem a linguagem não há possibilidade de haver sentido e que a cultura humana dá as cartas, sempre. A busca de uma origem primeira e de um final redentor se frustra nos condicionamentos do inconsciente, da cultura e da linguagem.
Quem "sacou" isso? Nietzsche e Freud, e também etnólogos como Lévi-Strauss, para quem a "estrutura dissolve o homem", ele é constituído por meio de invariantes culturais comuns às diversas sociedades, tanto as antes chamadas de "primitivas", como as chamadas "sociedades com história".
Há condicionantes, não somos donos de nosso destino, e, ao mesmo tempo, agimos, vivemos, falamos, trocamos produtos e criamos artefatos. 
Nos desviamos da pergunta perturbadora e inevitável sobre nosso fim, a morte. E também de haver fala e nela podermos pensar. E mais, a carência de desejar e de o objeto que supriria essa carência, faltar.
Por isso, quando Nietzsche anunciou que o homem não necessita de Deus, que o homem é o inventor de Deus, Foucault mostrou que o inventor também morreu. Criador e criatura morreram. E no saber ocidental ainda pululam formas, estruturas, linguagem, inconsciente. Estão aí, nos constituem, mas fora e longe de nosso alcance.
Por isso o riso irônico com relação às filosofias do homem como sujeito com uma essência, com uma existência e cuja liberdade seria ilimitada. A existência não é nossa essência, pela simples razão de que não temos essência alguma.

terça-feira, 30 de junho de 2015

Sobre a utopia de Lula

Recentemente Lula teve um episódio de: epifania? sinceridade? oportunismo? Blá blá blá de líder sindical? Sim para as duas últimas opções. Não foi um súbita revelação, não passa de retórica petista que tem em Lula seu principal representante. Dizer que o PT precisa voltar às origens, que só pensa em cargos e que precisa recuperar a utopia inicial do partido, não passam de declarações que o previnem contra o absoluto e inconteste fracasso de sua discípula, de quem quer se descolar para eventual volta ao poder.
Mas ninguém se perguntou sobre o que seria a tal "utopia".
O conceito nasceu com a filosofia política, etimologicamente significa lugar ideal, de sonho, por isso mesmo inexistente. Filósofos da esquerda marxista consideram que o socialismo e mais adiante, o comunismo (sociedade sem classes sociais, como o nome indica, sem propriedade privada, tudo pertence a todos igualmente) representaria a sociedade ideal.
Se utopia é sonho, implica que é irrealizável. Cidades perfeitas, políticas perfeitas são impossíveis. Então, como pode se perder algo infactível? Aí reside o absurdo da proposta de Lula.

A Escola de Frankfurt adotou o conceito de utopia em sua teoria crítica da sociedade como conceito limite, um alvo que, apesar de inalcançável, seria inspirador. Horkheimer deu à utopia o sentido de plano para o futuro, um futuro possível para a prática social, econômica e política em que as ações não dependeriam de um mecanismo econômico como no marxismo, elas surgiriam de um protesto contra esse mecanismo. Seria a "ideia de um estado tal que nele, as ações dos homens não emanem de um mecanismo, e sim de suas próprias decisões", escreveu Horkheimer, o chamado projeto de emancipação.
Problema: em uma sociedade inteiramente permeada de violência, miséria, sujeição, dificilmente esse projeto de emancipação se realizaria.
Evidentemente, não é a esse tipo de raciocínio que Lula se referia, e sim à utopia de um partido de trabalhadores, da massa operária à qual ele pertenceu um dia, ao mecanismo de poder sindical. E este vive de contribuições do patronato e dos próprios trabalhadores. E a quem beneficiam?? Seus líderes não abrem mão desse poder que financia seus projetos de permanência no poder sindical.
Lula imagina o Brasil assim: um imenso sindicato, todo poder aos chefes, todos submissos ao pensar único: acabar com a pobreza, implantar o socialismo, acabar com latifúndios, justiça social é ser contra patrões, FMI, poder da burguesia, etc. etc.
Deixam de lado por ignorância e por conveniência que, justiça social com combate à pobreza não é só distribuir riqueza. Esta precisa, evidentemente, ser criada. Acabar com a pobreza não depende de bolsas unicamente, mas de educação e saúde acessíveis e de qualidade. E, principalmente, acabar com a pobreza depende da produção e investimento, que requerem governos honestos e responsáveis, políticas econômicas sérias, compromisso com os setores que movimentam a riqueza e os bens de um país. 
A mão que afaga...
O PT de Lula ambicionou cargos públicos, acostumou-se a se refestelar com o dinheiro público, e o mais grave, sustentar-se à custo de desvio de verbas, ineficiência, a desfaçatez de destruir empresas como a Petrobras. Essa era e é a utopia de Lula e seus asseclas. 

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Inteligência, pensamento abstrato e o concreto na educação

Inteligência e seu desenvolvimento, se dão paralelamente ao desenvolvimento do pensamento e da linguagem. Símbolos, sinais, signos são apresentados o tempo todo, e linguagens se acham à nossa disposição. As noções de temporalidade, o raciocínio lógico, a própria presença no mundo com nossas ações e experiências, enriquecem o material da inteligência. Por sua vez, a inteligência resolve questões de situações cotidianas e projetos a serem desenvolvidos.
J. Dewey, filósofo norte-americano (1859-1952), elaborou importantes noções sobre a aplicação da inteligência, da experiência, da lógica e da observação, na educação de crianças e na vida em geral.
Lidar com coisas, o concreto, ao contrário do que educadores propõem, não se dá sem o abstrato, sem atos de pensamento (que envolvem necessariamente inteligência e linguagem). Quando a criança lida com objetos, brinquedos, jogos, ela também está imersa em inferências, pois as coisas se apresentam revestidas pelas sugestões que despertam, e "são significativas enquanto desafios para a interpretação ou como evidências que subsidiam uma crença". Portanto, levam a pensar, a concluir, a inferir que tais e tais ocorrências, têm tais e tais consequências.
Situações familiares são mais imediatas, práticas e concretas. A casa com seus objetos e pessoas, ruas, árvores, comida, necessidades básicas, o meio ambiente, para as crianças, e para os adultos, impostos, eleições, leis, assim como comer, dirigir, etc., são vistos como concretos, associados à vida social comum.
E como teóricos os conceitos da ciência, o pensamento abstrato, distante dos interesses vitais, como saúde, bem-estar, beleza, sucesso, e isso porque as exigências da vida nos parecem sempre urgentes e concretas.
Entretanto, o teórico, o abstrato em maior ou menor grau, pode e deve ser praticável. Conhecer pelo conhecer, desinteressado, o pensar pelo ato livre de pensar, estes são essenciais para a própria vida prática, para emancipar as pessoas, tornar suas vidas mais ativas e ricas.
Desse modo, a experiência que se inicia pelos materiais concretos, é seletiva, há uso da inteligência para, por exemplo, separar os materiais (como faz um bebê com brinquedos), adaptar esses materiais e, mais adiante e importante, saber usá-los. O uso exige compreensão das funções, o para que, junto a um porque, que chega a um objetivo e este satisfaz (ou não) os propósitos da ação.
Educadores deveriam levar em conta que o desenvolvimento do pensamento abstrato é uma das finalidades da educação, e que ele deve proporcionar satisfação; que o processo educacional deve levar a uma interação equilibrada entre a lida concreta, as atividades práticas, com o despertar da curiosidade e da capacidade para solucionar problemas intelectuais. Crianças com dificuldade de abstração deveriam ser guiadas para o  modo como as ideias podem ser aplicadas.
"Todo ser humano tem ambas as capacidades, e todos serão mais eficientes e felizes se ambas as capacidades forem desenvolvidas em conexão uma com a outra", o abstrato e o concreto, escreveu Dewey (How we think)

segunda-feira, 15 de junho de 2015

O que é estruturalismo?

Surgiu na França, décadas de 50/60, com o objetivo de facilitar e inovar a pesquisa nas ciências humanas, com ênfase na Etnologia, Psicanálise, Linguística e mesmo na Psicologia. Pode-se dizer que não se constitui em uma escola filosófica, foi antes um esforço para repensar a Filosofia com base nas ciências acima listadas.
Fatores imprescindíveis para o estruturalismo são: haver linguagem; capacidade de localizar um elemento no todo e encontrar o todo no elemento (pense-se nas trocas linguísticas, em que para uma sentença ser formulada seguem-se regras de combinação de fonemas, palavras, e sua significação); oposição; diferenciação; símbolos.
Estruturas são formas significantes, descontínuas, o sujeito é constituído, não há necessidade de uma visão da história em termos de origem e finalidade (como na dialética hegeliana e também na marxista), importam os cortes, a descontinuidade, dispensa-se toda e qualquer transcendência, bastam as imanências, quer dizer, o que surge em função de disposições dos elementos que são detectados por meio da atividade de compor e decompor o real.
Invariantes culturais universais, como relações de parentesco, mitos, o modo como o psiquismo se estrutura como se fosse linguagem, formas da arte e da literatura, tudo isso pode ser captado de modo estrutural. 
Sem linguagem não há pensamento, formulou Saussure há cem anos!
O que isso tem de tão revolucionário?
A Linguística nasceu quando se iniciaram estudos a respeito da organização das diversas línguas e esses estudos evidenciaram que todas têm flexões, frases que precisam de regras, signos, e que a Filologia (estudo da evolução das línguas), não dá conta de como se usa a linguagem.
A constituição ou estrutura de toda e qualquer língua requer um conjunto de regras socialmente praticado, que ninguém inventou, que está aí quando as crianças aprendem, e que são faladas por alguém. Portanto, regras e seu uso importam, já saber como evoluíram não importa para o uso individual. Indivíduos trocam signos, com dupla face: imagens acústicas (significantes) que são algo mais que o som, vêm juntamente com os significados, isto é, o que se entende, se compreende. Essas realizações da estrutura linguística só se dão num sistema que congrega elementos de tal forma que a intencionalidade do sujeito entra no que ele quer comunicar, mas não no veículo que serve para comunicar.
Assim, estruturas detectadas nas culturas são invariantes e universais, suscetíveis de transformações possibilitadas pelas regras que regem o todo. Desse modo, o etnólogo chega à sintaxe das transformações, ou seja, as regras que tornam o real inteligível e possibilitam a construção de modelos para estudo e compreensão da realidade social.
O inconsciente, as relações de troca, a linguagem, a arte, as narrativas, o simbolismo estruturam o sujeito, sua fala, sua cultura.
Assim, o concreto, a realidade social evidencia-se nessas possibilidades combinatórias sem apelar para origem e finalidade última. Dispõem-se de elementos e regras combinatórias que não se esgotam. Tal como em um jogo de xadrez, o jogo segue regras e as jogadas são ilimitadas. 
Formas, cores e sua disposição = estrutura.


Alfredo Volpi e suas bandeirinhas ilustram o jogo estrutural.

domingo, 31 de maio de 2015

Razões para viver

Verbos denotam ação principalmente. Qual seria o verbo que diferentes pessoas usariam para definir o sentido que dão a sua vida?

Amar, alguém discordaria? Mas pense no caso de uma criança palestina, que viu sua casa, seu território ser tomado, cujo modelo são adultos que empunham armas, e cenas de violência são banais, a morte ameaça essas crianças. Qual seria o verbo delas? Odiar? Não, precisam sobreviver, defender-se, essas seriam as ações mais apropriadas.
Pense nas mulheres que lutam para usar o véu de sua crença, e também nas mulheres que lutam para dispensar o uso do véu e são impedidas, podem ser punidas com pedradas. E que dizer das mulheres que sofrem mutilação genital, das que são obrigadas a casar com quem acabaram de conhecer?
"Amar" não atenderia seus propósitos vitais. Elas precisam de reconhecimento e proteção, existir como pessoas, não como animais subservientes.

Que dizer do verbo "crer"? A crença de sunitas e xiitas exige fidelidade a sua seita. Não são todos muçulmanos? Até mesmo budistas com sua religião pacifista e cuja máxima é tolerar, aceitar, compreender, perseguem muçulmanos da etnia rohingya em Mianmar.
Há intolerância em seitas protestantes mesmo em países adiantados e com alto nível de educação e informação, como nos EUA, ao proibirem o ensino da teoria evolucionista de Darwin. 
Pode-se chamar a essas atitudes de religiosos de tolerância? Que fé é essa que mata e persegue?

Qual verbo usam responsáveis por empresas, altos funcionários de governos ao espoliarem bens públicos, e reservarem para si fortunas? Explorar, acumular, entesourar...
Como podem dormir tranquilos os que se apropriam de bens públicos? Roubar seria "razão para viver"?

Entretanto, há quem use verbos como "importar-se", "cuidar", "educar". Pais e mães, professores, médicos, cuidam, zelam. E também cuidam policiais, agentes de trânsito, motoristas, operadores de máquinas, cozinheiros, garis, agricultores e muitos outros. O policial , o motorista, o operador, o agente de saúde, o biólogo, o cientista -, precisam cuidar, prestar atenção, atender; se descuidarem são chamados a responder pelos seus atos. 
Ao passo que certos governantes, políticos e altos funcionários travestem seus atos ilícitos de legalidade, aceitam e exigem propinas. Descuram dos bens públicos, encobrem o enriquecimento e ainda ficam impunes.

De nada adiantam crenças e loas, sentimentos de fé e de amor, se não houver cuidado. Cuidar implica em ser responsável, procurar conhecer cada vez melhor seu ofício, aplicar-se, informar-se. Tolerar e aceitar o outro são imprescindíveis para a vida em sociedade. São suficientes e nobres razões para viver.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

A perda da simplicidade

Os bens e produtos que compõem nossa vida são cada vez mais numerosos, exigem tempo e dinheiro, são considerados necessários, mesmo imprescindíveis.
Meios para expandir tudo o que é básico, desde vestuário, alimentação, moradia, se banalizam, ficam ao alcance de um toque nas telas, de uma volta em shoppings, de visualizações na mídia. O desejo se retroalimenta por esses meios. A simplicidade e a austeridade se perdem, aliás, o que seria vida simples e austera nas urbes e nos meios sociais hoje?
O que é de fato necessário e o que é supérfluo? A linha que os separa ficou diluída com a revolução industrial, com a expansão das comunicações, com a sofisticação do mercado de trabalho, com a especialização das funções. Ao que tudo indica, o supérfluo se tornou necessário. Quase impossível abrir mão de produtos de "última geração", o preço é ficar alijado e mesmo alienado pelo desconhecimento ou pela rejeição do mais atualizado artefato tecnológico.
Evidentemente que para produzir, transportar e comunicar é obrigatório investir em tecnologia e conhecimento, se não o risco é, como se diz "ser engolido pela concorrência".
Essa disputa nunca tem o vencedor final, além de deixar no caminho muitos perdedores.
Nesse quadro, como agir, como reagir?
Delineando para si projetos de vida em que a informação, o senso crítico, o discernimento, a renúncia à multiplicação desproporcional do desejo de consumo e a busca por certo despojamento façam parte do modo de ser.
Problema: esse tipo de reflexão, que modo de vida escolher e quais valores preferir -, sequer passa pela cabeça da maioria.
No lugar da simplicidade e do despojamento, a competição e o total envolvimento com as atrações e novidades.
Sem que houvesse quem compra supérfluos estes não seriam comercializados e a produção mudaria talvez para outro tipo de consumidor, e poderia atender as reais necessidades de enorme parte da humanidade, que sofre com fome e guerras fratricidas.

Um bom exercício de desprendimento seria contemplar o céu que se abre por detrás de nuvens, em um azul que leva o espírito a ir mais além, para diante, para o mistério. Saber-se mortal e frágil pode levar as pessoas a olhar com certa distância a acumulação de bens, as mesquinharias, o egoísmo, a pressa, a competição e tantas barganhas do dia a dia.

Sêneca (século I) escreveu em Da tranquilidade da alma: 

Minha alma, que não está habituada a choques, padece com a menor humilhação; ao sofrer alguma injúria (como é comum encontrar em toda a existência humana), ou alguma contrariedade, bagatelas, que me têm tomado mais tempo do que valem a pena, volto-me à ociosidade e, como os animais, por mais cansados que estejam, acelero o passo ao retornar ao lar. E decido então encerrar-me em casa: que ninguém me roube um dia, pois ele jamais me indenizaria de tal perda; que minha alma não se incline senão para si mesma ... que não se ocupe de nada que a distraia, que a submeta ao julgamento alheio. Apreciemos uma tranquilidade que seja estranha a todas as preocupações públicas ou particulares. ... É possível à alma caminhar numa conduta sempre igual e firme, sorrindo para si mesma, comprazendo-se com essa sensação, sem se afastar jamais de sua calma, sem se exaltar, nem se deprimir. Isso será tranquilidade. Equilíbrio, que os gregos chamam de "euthymia".

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Sobre o uso inapropriado da Filosofia

Em recente artigo (Gazeta do Povo, 20 abril) o filósofo Luiz Felipe Pondé enaltece Lucrécio, autor de "Da Natureza das Coisas", século I a. C. Os pontos ressaltados são a concepção de cosmo com limite, o acaso, a natureza se compõe de átomos em livre movimento, e, como diz Pondé, "morreu, acabou". Tudo bem, expressa seu materialismo, o que é uma postura filosófica defensável e respeitável. O mau uso de seu materialismo vem de sua pura e simples condenação de se pensar em outra possibilidade. Liberdade, contingência, mas não como coisa de adolescente, defende ele; felicidade, mas não aquela proporcionada pela abertura de um shopping center. E prossegue, sempre na primeira pessoa, eu creio que tudo acaba, eu condeno quem acredita na vida eterna, eu condeno o prazer imediato, e eu digo que tudo é tão simples quanto cuidar bem das eventuais mulheres que compartilharem de sua cama.
Ops! Não estaria Pondé sendo moderno, bacana, de certa forma querendo se mostrar contestador e, talvez, chocando seus leitores?
Filosofar requer respeito às posições de outros filósofos que pensam diferentemente, requer olhar sempre para o outro lado, requer despojar-se de orgulho e de jactar-se como aquele que tem razão, que tem certeza, e isso apoiado em alguns conceitos retirados de outro filósofo, no caso Lucrécio, cujo pensamento é interessante, e, como todos os filósofos, leva a refletir, a clarear, a mostrar novos caminhos, outras visões, mas, certamente, sem a vaidade de pretender que sua posição elimina todas as outras. Em especial com argumentos que detonam o adversário ("são teenagers" adjetiva Pondé, o que pressupõe ser ele adulto...) em lugar de dialogar e expor razões, sempre com argumentos.
O uso inapropriado da filosofia, para o enaltecimento próprio e o desprezo pelo outro, leva a becos sem saída. Quer dizer, se você é tão sábio assim, eu humildemente me recolho à minha insignificância.
Pelo contrário, filosofar deve ampliar horizontes, mostrar que tais e tais filósofos, ao adotar tais e tais posições, abrem perspectivas, arejam o pensamento.
***
Um exemplo de crítica aos que defendem a vida eterna, sem desprezar essa posição, se encontra na seguinte reflexão de Wittgenstein: "como seria uma vida eterna?" Imediatamente surgem questões, o inusitado, a beleza da Filosofia!
Desse modo, o público interessado em filosofia, especialmente os alunos de filosofia, aprenderiam algo mais, refletiriam com mais acerto, ficariam intrigados com a proposta de se pensar como seria "vida" que fosse também "eterna". Há nessa proposta um oximoro e são conceitos combináveis ou há um paradoxo? Quer dizer, como pode a vida que implica necessariamente em nascimento e morte, portanto, inteiramente imersa na temporalidade, ser eterna, durar para sempre?
***
Filósofos não podem simplesmente afirmar terem razão e desprezarem seu oponente dialógico. Filosofar requer troca de ideias e conceitos.
Então, qual o sentido de filósofos adotarem uma corrente, defenderem suas noções e criarem escolas de pensamento?
Isso é próprio da Filosofia, mostrar que o pensamente filosófico não se esgota, que há diferentes modos de pensar, e, ao criticar outras posições, colaboram para a extensão e o aprofundamento da crítica mútua.
O contrário não é Filosofia e sim doutrinação, ideologia, é pretender convencer e mesmo vencer com seu ponto de vista exclusivo.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

"Penso que vai chover, logo existo" (!!!)

A frase acima foi pronunciada por Wittgenstein em um debate em Oxford em fins dos anos 40. O tema era o cogito de Descartes. Trata-se de usar seu método de mostrar o que faz e o que não faz sentido dizer, conforme o contexto, e mais, sua concepção de que problemas filosóficos podem e devem ser dissolvidos pelo uso da linguagem comum. Isso irritou o debatedor. Afinal, o que é o cogito?, indagou este. Ora, filósofos e seus problemas, como essência, mente, intenção, realidade, verdade, e tantos outros conceitos filosóficos, quando retirados da problematização que se faz em Filosofia, por meio de generalizações e abstrações, nada significam.
Assim, se alguém dissesse: "Penso que vai chover, logo existo", parodiando o famosíssimo e para lá de emblemático, "Penso, logo existo", base da filosofia racionalista, Wittgenstein diz que não se saberia do que tal pessoa estivesse falando.
Dissolução da linguagem privada, e também de mente, pensamento, consciência. São palavras que só significam quando usadas em formas de vida, quer dizer, em certos jogos de linguagem.
Tudo começou com a reflexão sobre lógica quando tinha apenas 19 anos. Como se relacionam linguagem e realidade? O mundo consistiria de fatos, eles constroem . Aos poucos o que faz sentido dizer não está mais inscrito nas proposições lógicas e Wittgenstein põe em dúvida o arcabouço lógico-linguístico do mundo, do dizível, do constatável, e estende sua análise para além da "pureza cristalina da lógica". No dia a dia, o uso normal da linguagem desautoriza o esquema de espelhamento entre proposições e estados de coisa.
Em meio aos problemas filosóficos, outros o atormentavam, como se lê em sua biografia (O dever do gênio, de Ray Monk) mais, muito mais. As dúvidas com relação a sua pessoa, sua integridade moral e emocional, seus dilemas de homossexual, como dominar e dar sentido aos seus atos, a necessidade de examinar as questões filosóficas, em especial a filosofia da matemática, a sensação ambígua de que mesmo com inequívoco interesse pela filosofia, a vida prática parecia-lhe mais convidativa, mas acolhedora e proveitosa.
Filósofos profissionais em sua arrogância e pretensão, eram abominados. A vida reclusa, ensinar crianças em aldeias remotas, cuidar de jardim, serviços militares na I Guerra, e mais tarde serviços em hospital com feridos da II Guerra, lhe era preferível, fazia sentido, ajudava muito mais do que suas aulas em Cambridge.
Russell foi amigo e protetor, o que não impediu de criticá-lo e mostrar-lhe que a teoria dos tipos não dava conta da lógica, que lógica e matemática eram dois terrenos distintos.
A construção da única obra publicada em vida, Tractatus Logico-Philosophicus, foi árdua, retirou-se para a Noruega a fim de dedicar-se à reflexão. A questão da igualdade não pode ser dita, "A" é o mesmo que "A", pode ser mostrada, exposta; "B" ser diferente de "x", "y", "z" pode ser mostrada, a lógica se constitui de conjuntos de signos; entre seus métodos, o das tabelas de verdade. A esfera mística, em que as dúvidas o perturbavam, só pode ser mostrada em ações. Ao mesmo tempo em que necessitava da solidão, necessitava também de amizades sinceras, e mesmo de amor. Riqueza, em especial a de sua família, foram dispensadas, gostava de levar uma vida restrita.
Ironizava tudo que era levado a sério, inclusive sua própria filosofia, e desconfiava da ciência, da cientificização da cultura e de como a sociedade cultuava a ciência e o cientista.
Isso não o impediu de inventar máquinas e instrumentos e isso tendo sempre em vista necessidades práticas.
"A ética, na medida em que brota do desejo de dizer algo sobre o sentido da vida, o bem absoluto, o valor absoluto, não pode ser ciência. O que a ciência afirma, nada acrescenta".
Excelente recado aos que pretendem que a ciência explique tudo, até mesmo o sentimento de crença religiosa.
Wittgenstein é desses filósofos revolucionários, não via problema em pisoteiar pilares da Filosofia para continuar respirando.

terça-feira, 31 de março de 2015

Foucault não é da esquerda marxista!

Socialismo, comunismo, esquerda marxista, nenhum desses rótulos, ideologias ou concepção política cabem no pensamento e no ideário de Foucault.
O comunismo, com Stálin, matou mais do que Hitler no auge da eliminação de judeus e outros povos pelo chamado nacional socialismo, leia-se nazismo. E intelectuais que se prezam não podem ignorar a miséria do comunismo, o autoritarismo, a violência, a irracionalidade e inaplicabilidade de seus "princípios".
Considerar que Foucault é de esquerda, é impingir a ele um credo na transformação revolucionária por meio do poder do proletariado, ou hoje em dia, pelo poder dos trabalhadores, dos sindicatos, e no Brasil, do PT, do PCdoB, do MST. Estes são sectários, acham que o capitalismo é o sistema responsável pela pobreza, que os bancos especialmente os internacionais e os conglomerados industriais e financeiros devem ser eliminados, e nunca, nunca esse tipo de bandeira foi levantado por Foucault.
Foucault estudou a história da loucura, das ciências humanas, das prisões, da sexualidade; analisou o modo como aos poucos foi se constituindo um tipo de poder apaziguador, para governar e manter sob obediência populações, torná-la governável, portanto é preciso controlar desvios, desmandos, anormalidades. O Estado e sua conservação, dependem de governar populações, gerir a vida, a saúde, o comércio, e isso repercute no comportamento, no condicionamento de práticas, inclusive a "produção de verdade" e de nossa subjetividade.
O marxismo concebe a história como luta de classes, Foucault não. Nem passa pela sua cabeça a dialética da contradição social e econômica, condição de uma futura revolução social. 
Sua fontes de inspiração são Nietzsche, o estruturalismo francês, Canguilhem (historiador da biologia), os poetas malditos, como G. Bataille. Evidentemente conhecia a literatura marxista, mas dizia que Marx teve seu mérito em propostas e críticas para o capitalismo do século 19, e fora desse século "era como peixe fora d'água".
O capitalismo sofreu várias transformações, a riqueza tem se concentrado, bancos investem no próprio sistema, há muita pobreza, miséria, doenças, sofrimento, mas impossível eliminar trabalho, investimento, produção, circulação de riqueza e de bens, relações comerciais internacionais, e os diversos fatores da economia nacional e mundial. Regras e legislação existem, nem sempre são respeitadas.
Os poucos exemplos de países comunistas, com concentração do poder no Estado, foram violentos. Na antiga URSS houve morte, exílio, perseguição política e banimento da liberdade de credo, de pensamento, de crítica. Idem na China de Mao, e esta teve que se reinventar para que bilhões não morressem de fome.
E que dizer de Cuba, da Coreia do Norte? A pretensa igualdade produz déficits de todo tipo, humano, social, econômico. 
Se você preza sua liberdade de ir e vir, de pensar, de ser isso ou aquilo, de criar, de produzir, de instruir, de inovar, fique longe do comunismo/socialismo/marxismo.
Assista o vídeo do MST destruindo pesquisas científicas em nome da agricultura familiar. E o PT apoiando, aplaudindo, ao mesmo tempo em que precisa dar conta do mundo real...
Ah, Foucault daria boas risadas!

segunda-feira, 9 de março de 2015

O poder da reflexão filosófica

O mais conhecido símbolo da reflexão filosófica é a estátua de Rodin, "O Pensador". Dobrado sobre si, mão no queixo, ensimesmado, voltado para si, para seus pensamentos.

Mas, se a reflexão se limitasse às atitudes acima, a filosofia não teria produzido tantos pensadores com suas obras geniais, que merecem atenção cuidadosa, estudo, e que são, sobretudo, um convite à reflexão. Como então se caracteriza a reflexão se não é apenas pelo voltar-se para si?
A filosofia deve e pode levar a perguntas, ao questionamento, ela conduz à raiz, à busca de fundamentação, e assim produz admiração, abre os olhos e a cabeça para nossa situação no mundo, na sociedade, na história, na cultura, em nossa vida. 
Para chegar a esses efeitos, é preciso o que se poderia chamar de material de trabalho filosófico: ideias, noções, conceitos, propostas, indagações feitas pelos filósofos, mas não só por eles. Historiadores, artistas, escritores, jornalistas contribuem com material para a reflexão. A diferença está no grau de elaboração do material, enquanto os filósofos levam as questões a um nível mais geral, à abstração, às fundamentações, um artista, um cientista, um historiador, um escritor (e outros mais...), recolhem material mais concreto, documentos, situações do cotidiano, pesquisam, investigam. Eles precisam quantificar, construir com dados da realidade empírica para chegar a resultados, a feitos e fatos.
Isso não significa, como dito acima, que a reflexão filosófica seja feita nas nuvens, que o filósofo, ao abstrair, esteja longe das questões e problemas da realidade social, cultural, do avanço científico, dos acontecimentos locais, nacionais e mundiais.

De onde a filosofia extrai o conceito de justo, de belo, de bom? E o de verdade? Qual a motivação ou inspiração do filósofo para compreender o sentido da existência humana, de seus valores, das exigências de justiça, de melhoria da condição humana?
Justamente, das situações, acontecimentos, batalhas, contradições, sentimentos, buscas, indignação, aprovação, realizações, e de tudo o que nos constitui. A reflexão nos conduz a perguntar se isso tudo faz sentido ou se tudo isso é absurdo, se podemos conhecer os limites de todos os seres, ou não temos como saber o que nos limita. Os conceitos de ser e nada são abstrações? De que afinal se alimenta a filosofia?

Um exemplo de reflexão filosófica seria uma questão interessante e provocadora como esta:
Quem levaria mais a fundo a reflexão filosófica, Dostoiévski em "Crime e Castigo" ou Wittgenstein no "Tractatus Logico-Philosophicus"?
Sofrimento, liberdade, valores, justiça, punição, consciência moral, dilemas éticos, a produção literária de Dostoiévski dá a pensar.

Lógica, fatos gerais que constituem o mundo, limites do pensamento e da linguagem, a estrutura do mundo, como obter sentido para Wittgenstein, e isso pela análise filosófica.

Em comum: produzir, criar, levar a reflexão sobre nossas condições ao limite do possível, ilustrado pela tragédia (crime/morte) ou pela busca da forma lógico-gramatical, arcabouço último do sentido, lado a lado com o que é inexprimível (divino/inefável).

Em suma:
Refletir requer analisar, reunir pensamentos, dispor deles em certa ordem, concluir com sínteses renovadoras, dar razões, exigir rigor no raciocínio, e ser verdadeiro em seus propósitos.
Impossível sem honestidade e curiosidade intelectuais.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

1o curso de Foucault: proveniência da vontade de verdade

A questão primordial da teoria do conhecimento é a da relação entre sujeito e objeto. Foucault inaugura outra questão, fazer uma história do conhecimento (à qual chamará de "genealogia") dirigida aos acontecimentos do saber nos quais o conhecimento produz certos efeitos. Um exemplo de acontecimento na ordem do saber foi a exclusão dos sofistas. Um exemplo, e dos mais efetivos de teoria do conhecimento, é a de Aristóteles, filosofia e verdade se tornam interdependentes, desejo de conhecer se fundamenta na lógica, que expõe o sofisma, com aparência de raciocínio, mas que usa palavras para convencer, uma espécie de tática; é diferente dos erros e dos falsos raciocínios. O silogismo, raciocínio correto, remete às coisas significadas, aos referentes, e, portanto, à verdade das proposições confirmáveis pela realidade.
Já os sofistas, defende Foucault, sustentam o próprio enunciado em sua materialidade de discurso, como coisa, e não como palavras que remetem a coisas. O discurso dos sofistas leva a acordo ou desacordo com o que diz e não com a verdade ou falsidade, com a verificação, com o discurso apofântico, isto é, a relação entre este ser que se diz e o ser ele mesmo, se a coisa é, a proposição tem que dizer isso.
Assim, a filosofia ocidental busca a verdade nas coisas, é apofântica. E Foucault trabalha não com esse tipo de verdade e sim com os enunciados do discurso e seus diferentes níveis e inserções. A questão deste primeiro curso é:
Como, nas relações de dominação dos discursos filosóficos os sofistas foram "esquecidos e reprimidos para dar lugar a um discurso apofântico que pretende se ordenar ao ser sob o o modo da verdade?" (p. 67)
E antes, o que havia?
Verdade em sua relação com o discurso jurídico, na idade arcaica (Grécia homérica), os deuses e o cosmo presidem as decisões. Isso muda na idade clássica, legisladores invocam as regras do costume, o que é justo para os cidadãos e a cidade, pergunta-se pelo prejuízos, não mais se invoca a fúria de Zeus, justiça ligada à medida das coisas (cultivo da terra, dívidas, sistema de medidas, a moeda). A verdade não é mais atributo divino, deve ser buscada nas coisas, a verdade de tipo saber, da memória, do exercício da soberania, características estas que adentram a época platônica e vêm até nós. A noção de nomos, regra, norma é introduzida. O criminoso passa a ser excluído da cidade, ele é impuro, é preciso saber quem ele é, ele representa perigo ao espaço do nomos, não segue as leis, é anomos, anormal. 
"Toda uma ética da verdade está em vias de se desdobrar", a figura do sábio, puro, formulador das leis, fundador do poder político torna-se proeminente, o conhecimento das leis se entrelaça com o conhecimento filosófico do mundo, nasce uma moral da virtude. Testemunhas, constatação, verdade estabelecida, distribuição do poder sobre o saber da ordem das coisas, ao qual tem acesso apenas a sabedoria.
Nesse sentido, Édipo tem a ver com o discurso verdadeiro e não com impulso universal do desejo, como interpretou Freud.
Conclusão:
No primeiro curso são dados os passos para a compreensão do uso da verdade, da anormalidade, da exclusão, da confissão, do exame, para mostrar a proveniência do discurso filosófico, político e científico. 
E eles nasceram de práticas "humildes", papel da moeda, dos ritos de purificação, do modo como se lidou com a dívida dos camponeses, lá atrás, nos séculos 6 e 5 a. C.

domingo, 15 de fevereiro de 2015

O primeiro curso de Foucault no Collège de France

Chama-se "Leçons sur la Volonté de Savoir", "Lições sobre a Vontade de Saber", o curso que começou no dia 09 de dezembro de 1970 e foi até 17 de março de 1971, publicado em 2011 pela Seuil/Gallimard, que eu saiba ainda sem tradução.
Nele Foucault lança as questões que o ocuparam em suas investigações históricas sobre a loucura, a prisão, a sexualidade (sim, ele já estava preocupado com estas últimas bem antes de publicar "Vigiar e Punir" e "História da Sexualidade, Vontade de Saber", note-se que a noção de vontade de saber é o tema do curso de 1971).

A própria filosofia não lhe fornece instrumento teórico para analisar a vontade de saber, os filósofos, e ele inicia com a metafísica de Aristóteles, sempre se voltaram para o conhecimento, visto como natural, faz parte da natureza humana desejar conhecer, indo da sensação até o conhecimento das causas gerais do cosmo e dos seres. Exceções são Spinoza e, principalmente, Nietzsche. Para este a vontade é o elemento decisivo na busca da verdade, a verdade e o erro, juntamente com o desejo, as lutas, as discórdias, são parte da vida, não pertencem ao conhecimento, nem requerem a unidade de um sujeito pensante e  soberano como é o caso dos filósofos de Platão, passando por Descartes, até a fenomenologia no século 20.

Importante a distinção de Foucault entre saber e conhecimento, este sendo "o sistema que permite dar uma unidade prévia, um pertencimento recíproco e uma conaturalidade ao desejo e ao saber", e "chamaremos saber o que se deve arrancar na exterioridade do conhecimento para nele encontrar o objeto de um querer, o fim de um desejo, o instrumento de uma dominação, o local de uma luta".
Assim, "Arqueologia do Saber" liga-se ao primeiro curso, que se liga às questões centrais do seu pensamento: como o discurso com pretensão científica (o da medicina, da psiquiatria, da patologia, da sociologia) se insere no sistema penal, que de prescritivo passa a ser investido por uma vontade de verdade. E essa vontade de verdade opera a distinção loucura/desrazão, possui raízes históricas, sua arbitrariedade e modificações em um série de redes institucionais, isso tudo forma um sistema que influencia outros discursos e outras práticas. 
Há relações de dominação engajadas na vontade de verdade, conhecimento surge dessa necessidade, e também saberes, disciplinas e acontecimentos. Como a epistemologia não fornece os instrumentos para essa análise, nem a história da ciência, Foucault os buscou na vontade de saber e suas relações com as formas de conhecimento, em termos teóricos e históricos, com a crucial pergunta de se a vontade de saber dispensa um sujeito fundador ou se ela o reintroduz.
Original e difícil esse caminho, não é o da história do pensamento, nem o da história da cultura, pois estes não chegam a suspeitar de que na história das sociedades, a vontade de saber se articula com processos de luta, violência e dominação. Ao invés de submeter desejo e vontade ao conhecimento, mostrar que no surgimento do conhecimento há desejo, há vontade, que não têm nada a ver com conhecimento, mas com luta, instintos, paixões.
(a ser continuado)

domingo, 11 de janeiro de 2015

Fanáticos não riem

Rir, satirizar, ver o lado cômico, serve para expor as incongruências, o avesso daquilo que se apresenta como verdadeiro, correto, único, ideal.
Fanáticos pegam em armas, destroem, matam quem estiver em sua frente, sejam seus opositores ou quem estiver à sua frente: assim foi com as bombas na maratona de Boston, assim foi com a carnificina no semanário Charlie Hebdo (o policial executado na calçada, já ferido!).

União pela liberdade de expressão, de religião, de pensamento

Os chargistas sabiam que corriam risco, havia mesmo proteção de um policial, morto no atentado. Os jornalistas que olham o lado risível do que é considerado socialmente e culturalmente como sagrado, intocável, poderoso, absoluto,  incomodam. Se em nome de uma crença, de uma religião, de uma seita se cometem atos que exatamente vão contra o que religiões e crenças pregam, é possível tratar desse tema, tão atual e candente, pelo lado sério, da crítica e da reflexão que analisa fatos. Interessante é que esse tipo de análise não incomoda, apesar de sua contundência.
Já a sátira, as charges, a "gozação", a piada, incomodam muito mais. É que elas atingem diretamente sentimentos e não a razão, a inteligência, o raciocínio. Não que charges não sejam inteligentes, pelo contrário, elas reúnem em um só desenho toda uma crítica social, política, revelam em poucos traços situações absurdas, injustas, revelam nossas fraquezas, nossas idiossincrasias, e não poupam ninguém, sejam líderes religiosos ou políticos, artistas, a própria imprensa e os meios de comunicação.
A forma satírica da charge, usa o poder imediato da imagem, a comunicação instantânea, não precisa ser traduzida. Os traços propositadamente exagerados, distorcidos, indicam claramente a intenção crítica. E mais, a mensagem é sucinta, aberta, de leitura fácil.
O leitor/espectador é atingido, ele reage, gosta, detesta, pode negar, concordar, protestar. Difícil é ignorar.
O fanático não suporta o adversário, a crítica, a sátira. Ele se considera dono da verdade, mais do que isso, ele se acha condutor de toda a humanidade. Pega em armas, treina, aponta, atira, mata. Considera sua luta como guerra santa. Perigoso porque o faz em nome de um Deus, Alá, e de um profeta. Com isso põe todo o islã, que absolutamente nada tem a ver com fanatismo, sob o estigma de crença da vingança. 
Os próprios chefes religiosos não se imolam, não se martirizam, ordenam que seus adeptos se imolem e se martirizem. Os chefes querem poder, aqueles que são fanatizados creem que morrer os conduzirá ao paraíso!
Absurdo!