segunda-feira, 27 de junho de 2011

O que diz Foucault a respeito do neoliberalismo

No curso Nascimento da Biopolítica (Collège de France, 1978-1979) Foucault continua o curso anterior sobre o tipo de governo centrado na razão de Estado. Razão de Estado como uma arte de governar, é analisada por um novo ângulo. Não o da história dos regimes políticos, mas a de uma prática de governar o Estado, com um tipo de racionalidade, de cálculo, responsável, ao mesmo tempo, pela construção do Estado; e isso requer o enriquecimento pelo acúmulo monetário, que ocorrre paralelamente ao aumento populacional e à concorrência entre países. Outro aspecto é a organização policial e um aparelho militar e diplomático para tentar um equilíbrio na Europa. O Estado nada tem do monstro frio, no estilo do Estado absoluto analisado por Hobbes. Ele resulta de um modo de governar que surge no século XVII, bem diferente do modo de governar centrado no poder soberano e teocrático, do período medieval, em que o direito era exercido pelo rei.
No século XVIII ocorre nova transformação, que ampliou e serviu para melhor implantar a razão de Estado. Não é possível governar sem a economia política, é preciso organizar, distribuir e limitar os poderes, manter certo equilíbrio para haver concorrência. Os governos despóticos serviam muito bem ao controle e expansão da economia. No lugar de questionar a legitimidade de suas práticas, esses governos precisam controlar os efeitos de suas práticas para serem bem sucedidos, algo tipicamente utilitarista.
A pergunta que os governantes se fazem é: será que eu governo bem dentro desses limites do que é necessário para lidar com a natureza das coisas?
E isso é o liberalismo, ele requer a criação de métodos próprios para definir os limites das práticas de governo. A abordagem de Foucault não envereda pela costumeira crítica (e condenação) ideológica de governos. Ele faz análise histórica das práticas de governar.
Neste sentido, o liberalismo que nasceu na segunda metade do século XVIII, permanece nos governos europeus dos anos 60 e 70, diz Foucault.
O mercado regula preços por meio de seus "mecanismos naturais". O poder público intervém para aparar os efeitos de mercado não desejáveis para a própria capacidade de governar. Qual é o valor em termos de utilidade do governo e de suas ações, em uma sociedade em que a troca determina o verdadeiro valor das coisas?
O neoliberalismo propõe não apenar deixar o mercado ordenar-se naturalmente, como o liberalismo, mas ainda que os governos sigam regras institucionais e do direito. Assim se instaura uma ordem social regrada economicamente pelo mercado. Há uma valorização da "empresa" como principal agente econômico. Nasce assim, segundo Foucault, uma nova arte de governar, que atende ao chamado "capital humano", certo nível de emprego, de renda, de saúde da população, isso tudo é necessário para o Estado funcionar. E também indivíduos treinados, aptos a desempenhar o papel de "empreendedores de si mesmos".
Essa é nossa atual "arte de governar": mercado, regras institucionais, indivíduos produtores e, claro, consumidores. A cada crise, é isso que governos precisam salvar para manter a concorrência e a produção. As ações se transformam em "desafios". Desapareceram termos para analisar e propor metas, como "dificuldade", "problemas" e os planificadores, os empreendedores preferem o termo esportivo, concorrencial "desafio".
Viver se tornou uma corrida de obstáculos!

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Alguns ensinamentos socráticos

Sócrates considerava que ensinar a virtude era o maior dos bens, e que esse ensinamento era incompatível com o que os sofistas defendiam, a relatividade dos valores, que os valores nascem de convenções sociais, que o homem é a medida de todas as coisas, quer dizer, todo conhecimento passa pelos nossos sentidos e impressões. O conhecimento nasce das sensações que variam, e, como o que vale depende de ocorrer de um modo ou de outro, é preciso ensinar bons hábitos de conduta para a pessoa discernir o que é melhor em cada situação, diziam os sofistas. Foram também eles que mostraram a importância da retórica, da correta argumentação como forma de convencer, de obter sucesso nas decisões políticas. 
Na época em que Sócrates viveu (470/469-399 a.C), ele era considerado como um filósofo sofista, mas nem ele e nem seu famoso aluno, Platão, pregavam a filosofia como se fosse a arte de argumentar. Sócrates deu a si mesmo uma missão, ensinar que nada se sabe, isto é, começar pelo reconhecimento de sua própria igonorância, uma lição de humildade e de desprendimento. 

No templo de Delfos encontra-se a inscrição "Conhece-te a ti mesmo”, saiba que você é humano, você pode errar, que você não é um deus. Apenas deuses podem pretender à verdade absoluta, seres humanos aprendem, indagam, duvidam, buscam o saber. Uma vida virtuosa e guiada pela moderação é capaz de oferecer aos que se voltam para si, para seu interior, poder distinguir entre o bem e o mal.
Mas como livrar o espírito dos erros e prosseguir no caminho do conhecimento? O que é erro? O que é verdade?
Sócrates  usa a ironia para mostrar que os que pretendem saber tudo, nada sabem. Conversa com seus alunos e amigos, e os conduz às perguntas: o que é o bem, a justiça, o amor, a amizade? As noções errôneas são desmontadas uma a uma, e isso incomodava, até mesmo irritava. Mas era o modo de o aluno perceber que seus conceitos eram equivocados, que ele poderia livrar-se de falsas definições e opiniões e prosseguir em um novo caminho, com uma nova visão. O próprio Sócrates não cessava de examinar e pôr em dúvida tudo o que ele recebera como certo. É preciso extrair o saber, fazer o parto das ideias, dialogar, interrogar até surgir na divina e eterna alma, alguma luz.


Ninguém é mau voluntariamente, essa é a máxima da ética socrática. A pessoa com pleno domínio de si, com pleno conhecimento, não erra. Quem desconhece o real alcance do que pratica é que comete injustiça, prejudica, engana, faz o mal. Daí a importância do filósofo, e de todo aquele que ensina, que faz as pessoas refletirem. 

Você se considera o melhor em seu ofício? Por quais razões? Quais são suas intenções nos negócios públicos?  Você sabe separar o interesse da polis, da cidade, de seus próprios interesses? O que faz você acreditar que é o melhor dos artesãos ou dos poetas ou dos políticos e achar que entende de outras coisas mais?

Sócrates, enfim, era um questionador, e quem retira o solo dos outros, precisa ser eliminado. Ele é acusado de corromper a juventude e acreditar em falsos deuses. Julgado, é condenado à morte. Sócrates se defende:
Essa ocupação não me permitiu lazeres para qualquer atividade digna de menção nos negócios públicos nem nos particulares; vivo numa pobreza extrema, por estar no serviço do deus. Além disso, os moços que espontaneamente me acompanham – e são os que dispõem de mais tempo, os das famílias mais ricas – sentem prazer em ouvir o exame dos homens; eles próprios imitam-me muitas vezes; põem-se a interrogar os outros; suponho que descobrem uma multidão de pessoas que pensam que sabem alguma coisa, mas sabem pouco, talvez nada.

E diz ainda:
Em toda a minha vida, em toda minha pouca intervenção nos negócios públicos, deixei patente que sou assim, como também sou assim nos negócios particulares, jamais assentindo com quem quer que seja e o que quer que seja fora dos limites da justiça.


Ele não teme a morte, pois ou sua alma é imortal e ele se reencontrará com os que já se foram, ou dormirá um sono eterno, morrer é igual a nada, a nenhuma sensação.

Quem vive conforme a virtude é feliz, e Sócrates praticou a virtude, aprendeu, aperfeiçou-se, portanto, foi feliz. Para isso não precisou de fama, riqueza e nem beleza (ele era muito feio...); buscou o equilíbrio, a justiça, o autoconhecimento.

sábado, 11 de junho de 2011

Entre ser e existir

O conceito mais abstrato em filosofia, desde os antigos até nossos dias, é o de ser. Trata-se antes de mais nada de um verbo de ligação, mas quando se diz "isso é tal ou tal", designa-se algo para alguém, esse algo é o ser.
Em filosofia o termo responde à questão fundamental para os gregos, o que é isto? Ela é aplicável a qualidades, como a justiça, aplicável às coisas, como esta casa, ao conhecimento como o que é a verdade, à natureza, como o que é o movimento.
Como todas as coisas vieram a ser, isto é, possuem a marca essencial e intrínseca, peculiar e intrigante, de ser? Antes de ser isto ou aquilo, tudo é. Cada filósofo concebe o que é o ser a seu modo, ideia para Platão, a substância inerente a cada coisa para Aristóteles, o pensar para Descartes, os fenômenos para Kant.
O que é o ente enquanto ele é, quer dizer, o que são as coisas enquanto elas são?
Desde há muito tempo costuma-se caracterizar a pergunta pelo que algo é, como a questão da essência. Essa questão torna-se mais viva quando aquilo por cuja essência se interroga, se obscurece e confunde, quando ao mesmo tempo a relação do homem para com o que é questionado se mostra vacilante e abalada, diz Heidegger.
O homem que pergunta, que questiona o que é a essência, descobre que essa é uma dúvida sua. Por isso Heidegger diz que o questionador e sua pergunta entram em uma relação nada sólida, nada clara. O homem é aquele que se propõe a pergunta pelo sentido do ser.
Não é incrível que em um planeta no espaço infinito, aquelas criaturinhas bizarras façam essa pergunta?
Mais recentemente a filosofia passou a distinguir entre as essências permanentes que constituem o ser das coisas e a existência.
Existir depende de um tipo de consciência de si, de se saber mergulhado e dependente do tempo, não do tempo cronológico, mas do tempo existencial; o ser que está aí, existe e inelutavelmente morrerá.
Qual é nosso modo de ser, dos entes humanos? Quem somos nós?
Compreensão, ir fundo na história, perguntar pela origem, escolher, isso é constitutivo dos homens. Nasce conosco a pergunta filosófica pelo ser das coisas.
Então, qual é o modo de ser dos homens?
É o modo da existência, estar aí no mundo, em uma situação, agindo, decidindo o que se pode ser, nossos projetos. Diferentemente de um garfo ou faca, de uma árvore, de uma cadeira, estar aí para os homens é capacidade de  decidir, liberdade. Não o utilizável. Estar no mundo significa transformar o mundo e a si mesmo, lidar com os outros e ser para a morte.
Aceitar e compreender isso é cuidar das escolhas, saber que há diversas possibilidades, que o que se espera pode ou não acontecer, e que o inescapável é a morte.
E, ao contrário, situar-se como coisa em meio às coisas, considerar as situações como se esgotando nelas mesmas, é viver no equívoco, tapear-se.
Nada mais inautêntico do que inventar um valor ou uma crença, apegar-se a eles e considerá-los como absolutos.
Quem vive na temporalidade, na historicidade livra-se desses apegos. Quem compreende que essa temporalidade faz surgirem as perguntas sobre o ser e sobre a existência, tranquiliza-se.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Qual é o sentido de um kit contra homofobia nas escolas?

Incrível a sucessão de equívocos tanto para produzir quanto para retirar de circulação o kit contra homofobia. Essa peça de discórdia se tornou moeda de troca, pasmem, para proteger um político que enriqueceu graças a informações privilegiadas. Beneficiou-se a quem? Quem foram os prejudicados?
Gasto público do Ministério da Educação, aliás de quanto?
E isso para veicular material supostamente didático com o objetivo de ensinar que adolescentes e jovens não devem ter preconceito contra opções sexuais deles próprios. Essas opções já existem mesmo? Será que vídeos dúbios e de mau gosto servem? Será que esses jovens já compreendem algo sobre sua própria sexualidade? 
E tudo isso visa produzir mudança de atitude e de valores, mostrar aos jovens que há outros tipos de amor, que o comportamento e as atitudes de alguns de seus colegas, meninos e meninas, deveriam ser tolerados e aceitos. 
Evidente que todos viveríamos melhor em uma cultura de liberdade e de tolerância, isso é certo. O propósito de se evitar violência é louvável e justificável.
O problema são os meios para atingir esse propósito.
E nesses meios vem embutido um grande equívoco, o conceito de normalidade. Atitudes de amor e desejo chamadas de homossexuais (e mesmo bissexuais) devem ser vistas como normais, esse é o recado implícito. Ora, o conceito de normalidade foi uma invenção das sociedades disciplinares que usam exames (médicos, psicológicos, pedagógicos, morais) para enquadrar, medir, punir, endireitar comportamentos e adaptá-los. Desse modo se obtêm efeitos prolongados em cada indivíduo de respostas prontas às solicitações do trabalho, da escola, de uma terapia, de uma punição penal. Enfim, normal é um conceito útil em todas as práticas que requerem obediência não tanto a regras, mas a normas de conduta. 
Falta uma visão um pouco mais ampla, portanto, ao se propor que comportamentos e atitudes que fogem ao normal são normais...
Repito: toda violência é prejudicial e inaceitável, ainda mais se for alimentada pelo ódio e pela raiva gratuitos. Lembram do índio que foi queimado vivo? Quando se soube que era um índio, a gritaria foi mais alta. Entram aí os valores de inocência e bondade natural.
Quando o alvo da violência é alguém que foge ao padrão aceito e que é classificado como normal, e, por alguns como natural, são excitados sentimentos mais básicos ainda do com que a violência contra índios, velhos e crianças.
Para que não aflorem esses sentimentos, pois eles incomodam, já se apelou para:  "é contra a natureza",  "aberração", "anormalidade", "doença", "é genético". São os discursos moralizantes, médico-psiquiátricos, biológicos que têm servido de biombo para excluir, marcar, proibir, censurar.
Mas, para que classificar, para que diagnosticar, para que normalizar modos de viver, de sentir prazer, de amar? É que investigar o comportamento, examinar o desejo, classificar tipos psicológicos leva a discussão para o terreno calmo, neutro e objetivo da ciência (claro que não há esse território). 
Sai a violência física contra as crianças, por exemplo, a cruzada contra a mastubação infantil (vejam o filme "A fita branca") e entram os psiquiatras com as doenças mentais, entra o divã psicanalítico, entra o psicólogo nas escolas. Pretensão: decifrar o que nós humanos somos e sentimos, como desejamos, como amamos.
A luta deveria ser contra essas pretensões, e isso os gays não viram, caíram na armadilha do correto, do normal e do aceitável. Alguns poucos entenderam que, ao criar uma cultura e um modo de viver alternativos, fazem mais pela causa do que lutando por legislação e adotando esse conceito psiquiátrico, "homofobia". 
O que fazer?
Cultivar nas crianças e nos jovens valores e sentimentos que os façam refletir: isso é legal? Eu gostaria que fizessem isso comigo, com meu irmão ou irmã? Dar exemplos de atitudes corajosas e covardes, que merecem o elogio e o incentivo, ou que precisam ser criticadas. Generosidade, honestidade e capacidade de empatia podem evitar a violência do preconceito, seja ele qual for. Exemplo: o professor passa o filme sobre a vida de Oscar Wilde, escritor que foi preso por ser gay, e depois discute com a turma valores e atitudes.
Criar leis para punir homofobia é tão rídículo quanto inútil. Já há suficiente proteção legal contra a violência física e moral em nossos códigos.
A pergunta que não quer calar: se não fosse a blindagem a Palocci o kit seria distribuído? Lastimável sermos governados por vermes...
PS:
Este post é uma homenagem a Foucault e a Jarbas Schüneman.