sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Qual a importância de Wittgenstein?

O filósofo enigmático, difícil de compreender, pertence à escola de pensamento da chamada "Filosofia Analítica". O foco é a lógica, a linguagem, a representação, a relação entre pensamento e realidade.
O aspecto curioso em Wittgenstein, é o de que em sua filosofia haveria uma espécie de divisor de águas entre o início de seu pensamento voltado para as questões lógicas (Tractatus Logico-Philosophicus), e a virada pragmática em direção aos jogos de linguagem em seus usos cotidianos (Investigações Filosóficas).
A questão geral por detrás de ambas as vertentes, é a relação entre pensar e como esse pensar organiza o que há para ser conhecido e dito. Não se espere dele nenhum tipo de engajamento social ou político, Wittgenstein não tem uma filosofia política.
Mas o lógico que nele habita convive com a dúvida com relação ao que é místico, ético, impossível de ser enquadrado sob forma lógica.
Pensar é representar a realidade por meio de formas lógicas, em especial proposições como "Isso está (é) assim", ou "Chove agora", ou "Aqui está uma mão". Para essas proposições serem válidas, é preciso que elas retratem ou espelhem algo objetivável e que esteja de acordo com as regras de uma linguagem.
O que mudou?
Para falar, compreender, fazer sentido, há necessidade de contexto de fala, alguém de fato dizendo isso, e com esse dizer querendo significar algo. Claro que as regras são necessárias, mas não são regras de encadeamento lógico e sim regras da gramática de uma língua, quer dizer, não formas rígidas e sim uma linguagem que foi aprendida, que é usada, cujos significados variam conforme quem diz o que, para quem, em que situação.
Assim, a limpa e rígida proposição lógica seria uma possibilidade, como há possibilidade de, com números, calcular. Os usos da linguagem são inúmeros, não se encerram em regras para construir proposições verdadeiras ou falsas. 
Os jogos de linguagem não têm núcleo, são múltiplos.
"Aqui está uma mão" demanda não só uma frase da língua portuguesa compreensível pelos falantes, mas leva a perguntar pelo que se quer dizer em cada uso específico.
É possível imaginar vários contextos para aquele jogo de linguagem, de tal modo que com Wittgenstein se abre toda uma perspectiva para a Filosofia, a de considerar o comum, o ordinário, o sem mistério de questões como mente e pensamento como pura abstração, como privados. Não há linguagem privada, só a que foi aprendida e com ela pode-se tudo: reclamar, rezar, implorar, afirmar, negar, calcular, sonhar, pensar, filosofar, criar, ensinar, etc., etc.
1889-1951
E nisso reside a importância do filósofo: o banal, o comum, o cotidiano é o que temos, nossos recursos são banais e ao mesmo tempo surpreendentes!

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

O que é Filosofia, afinal?

Vejamos primeiramente o que não é Filosofia:
Não é ciência, pois ciência natural, formal ou social requer conjuntos de observações, experiências, confronto com a realidade, renovação constante, possibilidade de avanço do conhecimento, teorização, aplicação, enfim, recursos da experiência, recursos formais como cálculos, tabelas, mapeamento, possibilidade de reversão, comparação entre teorias. Comprovação, aplicação, teorização. Exemplos: modelos matemáticos, experiências laboratoriais, aplicação de questionários, enquetes sobre opinião pública. 
Não é arte, a arte é pura criação, sensação, gozo, fruição, enlevo, e também provocação. Nas artes plásticas, no teatro e no cinema, na arquitetura, na música e na poesia, na literatura, e nas ramificações dessas atividades o que há de comum é a fruição prazerosa e a estabilidade no tempo. Pode-se admirar uma escultura grega que é tão atual para nossa fruição estética quanto o impacto causado por uma ópera de Wagner ou um quadro de Picasso.
Não é religião, estas se baseiam na crença, na fé, nos dogmas, na aceitação sem contestação dos ensinamentos e artigos de fé que foram escritos e passam de geração para geração. Os ensinamentos podem estar em livros sagrados como a Bíblia e o Corão, e também presentes nos ritos, nas cerimônias, na tradição. O valor supremo é o do sagrado em oposição ao profano.
Então, o que é a Filosofia?
Não basta repisar o conceito de reflexão crítica, pois Filosofia vai além. Em primeiro lugar é possível filosofar a respeito da ciência (Filosofia da Ciência), a respeito da arte (Estética), a respeito da religião (Filosofia da Religião, Axiologia ou Filosofia dos Valores).
O campo de estudo da Filosofia é amplo, pensar filosoficamente exige raciocínio abstrato e capacidade de generalização. O todo, as determinações últimas de tudo o que há para ser vivido e pensado, a análise que vai às primeiras razões e às causas necessárias para que o Ser de tudo o que há "seja", exista; a pergunta pelo nada, pelo absoluto, pelo absurdo ou não da existência, pelas relação entre pensar e ser, entre linguagem e realidade, entre construção do raciocínio e impasses lógicos, esse é o material da maioria dos filósofos.
Diferentemente da ciência, todo pensamento filosófico é atual, a contribuição dos filósofos não se desgasta, não é descartada como são as teorias científicas ultrapassadas. Não há erro em Filosofia, há debate e confronto de conceitos, ideias e escolas de pensamento.
Quanto maior a compreensão de cada um dos mais representativos filósofos, maior a riqueza e destreza da reflexão.
Filosofia é exercício da razão em busca de razões.

domingo, 25 de novembro de 2018

Pensamento crítico X pensamento único

Está na ordem do dia o debate salutar sobre os anos em que a educação pública e mesmo a privada estiveram sob a égide de um pensamento único: marxismo, luta de classes, fora burguesia, antiamericanismo, anticapitalismo. Ocorre que essa chamada "luta", esteve cega para a realidade histórica, social e econômica.
Justamente educar é um processo inteiramente arejado, aberto, sujeito a críticas e à permanente renovação de ideias, de noções, de conceitos.
Houve retrocesso e prejuízo especialmente na área da História, da Sociologia, da Geografia e da Filosofia.
Foram escolhidos alguns gurus da esquerda, como Paulo Freire,  Milton Santos, Marilena Chauí, até Chomsky é invocado por essa tendência obscurantista. 
Há décadas não pertencer ao PT, PCdoB e Psol, tem sido considerado como conservador, politicamente incorreto, e, principalmente, uma recusa de pensamento crítico.
Esse é um ponto chave. Se não se aderisse ao marxismo, a Gramsci ou pelo menos à Escola de Frankfurt, seria mancomunar-se com o "sistema".
Com isso pensadores, filósofos, historiadores, sociólogos de outras correntes de pensamento quando eram lembrados, seria para afirmar que não pertenciam à gama dos pensadores críticos.
Ora, pensar criticamente é oferecer leitura, discussão, compreensão de diversas tendências de pensamento e escolas, confrontá-las, compará-las, estudá-las e mostrar quais são os pontos defensáveis e quais pontos são insustentáveis.
E sob que critérios?!
Os critérios, como o próprio termo indica, são como que instruções para o pensar e o refletir, pontos de apoio teóricos, eles apontam para caminhos e produzem consequências. Enfim, o professor que segue critérios sempre será sério, sempre sujeitará pontos de vista distintos à discussão, sempre mostrará os aspectos e conceitos utilizados, como se as aulas fossem painéis esclarecedores. 
Educar não é usar conceitos sem exame crítico e apoiados em ideologia doutrinadora cujo objetivo é (era) alcançar poder, nele permanecer e quem sabe um dia derrotar o lucro, a mais valia, o capitalismo.
Essa proposta é enganosa, falsa, perversa, tem uso político e não pedagógico.
Educar é capacitar à reflexão e à crítica, abrir cabeças, adotar critérios claros, confrontar, comparar, e como sempre ressalto, o bom uso da inteligência.
Alunos não são rebanhos a serem apascentados e sim cabeças pensantes a serem educadas.

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Nem escola com partido, nem escola sem partido (II) e sim escola com qualidade

É preciso, e rápido, sair desse debate inútil e prejudicial para a Educação. Escola com partido tem sido uma via adotada pela esquerda que predomina nos cursos de Pedagogia, especialmente nas universidades públicas. Representa a adoção de um modelo marxista, que lê a História como luta de classes, antagonismo permanente entre o trabalho e o capital.
Ora, o marxismo já se dissolveu com a glasnost, com a queda do muro de Berlim, com a reflexão crítica de um Habermas, de um Rorty entre outros filósofos que poderiam iluminar um pouco mais a discussão sobre os determinantes da História. 
Há todo um processo de comunicação, de interpretação, de hermenêutica que é ignorado pelo marxismo. Este marxismo das escolas está obsoleto, mas infelizmente é um fácil remédio enfiado goela abaixo dos alunos. E estes acabam ficando com um discurso fácil de injustiça social, de desigualdade econômica, de rejeição pura e simples a um tipo de economia de mercado que avança com o progresso tecnológico. 
Ninguém duvida que consumismo e exploração do trabalho devam se superados. Mas não o serão com as propostas comunistas e socialistas.
A História não retrocede, é preciso sim regulamentar o avanço de grandes empresas multinacionais, denunciar oligopólios e monopólios, abrir os olhos para as novas possibilidades de investimentos produtivos e com alto grau de tecnologia.
***
Por outro lado, a proposta da escola sem partido, tem o único mérito de chamar a atenção para a doutrinação corrosiva imposta muitas vezes aos próprios professores em sua formação.
Não se deve dar ouvidos ao argumento de que "não há neutralidade" (escola partidarizada) e ao argumento inverso de que é preciso haver neutralidade.
Imperioso e urgente é haver qualidade de formação, de informação, ampliar a pesquisa para as várias escolas e tendência de pensamento, abrir os olhos para a diversidade de autores, compará-los, arguir sobre suas bases e motivações, ampliar o leque de livros, renovar os livros didáticos. E isso só se faz com inteligência, com promoção de qualidade, muita leitura, melhor e mais sólida formação. E acima disso tudo, ética no trabalho educacional. Sem a abertura ética, sem formação intelectual a cabeça embrutece, emburrece.
Professores, busquem essa qualidade, dispam-se de ideologias fáceis, aprofundem seus conhecimentos. As escolas pedem esse socorro, o do bom uso da inteligência!

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

O que é verdade para Habermas?

Habermas (1929-     ) no início de sua trajetória filosófica pertenceu à Escola de Frankfurt. Dela se afastou ao introduzir o papel essencial da linguagem, mas linguagem entendida como comunicação ativa com propósitos de entendimento mútuo.
A razão, ao contrário do que pensavam seus ex-colegas de Frankfurt, não se limita a instrumento servil de exploração da natureza. Isso seria sucumbir a uma crítica sem saída da razão. Ora, é possível por meio da razão tanto um uso estratégico com finalidade de atingir objetivos práticos, em especial os do mercado e os da política -, como um uso comunicativo, próprio ao mundo da vida. A finalidade deste último uso é entender-se apenas por meio linguístico, ou melhor, por meio dos atos de fala que podem afirmar ou negar estados de coisa, isto é, obter verdade; atos de fala com valor social, isto é, que atendem normas, expectativas e valores próprios ao convívio na sociedade; atos de fala em que a própria pessoa se empenha, é sincera.
Assim, verdade para Habermas requer a possibilidade de usas esses atos de fala que ampliam o diálogo, eventualmente podem barrar a comunicação, e esse insucesso só é resolvido por meio da própria comunicação. Importa a justificação. Quando se justifica uma afirmação, ou uma negação, um relato, ou outra forma de comunicação, as razões vêm à tona. Assim, argumenta-se para apoiar ou criticar tais razões, pergunta-se com que base é razoável justificar uma postura, um juízo. Isso requer falantes com suficiente informação, formação, capacidade de compreensão, abertura, preparo ético e intelectual.
Falantes não apenas comunicam frases com sentido, tais frases ou atos de fala são empregados em situações determinadas, a um público determinado, com objetivos determinados. 
Os atos de fala atingem assim um patamar que vai além dos recursos semânticos, exige recursos pragmáticos, quer dizer, da ação. A comunicação é ação. A verdade requer essa ação linguística, pragmática, que envolve os atores sociais.
Essa foi a virada pragmática de Habermas.
Nos últimos escritos veio a virada epistemológica. A verdade tem duas mãos, uma assentada na linguagem com seus argumentos e justificações, com um "dar as razões" e outra mão assentada na objetividade de um mundo que é compartilhado. Se digo "a grama é verde", isso tem duas bases: a intenção e o contexto de comunicação, juntamente com a capacidade/possibilidade de constatação no mundo objetivo. O mundo objetivo é esse nosso mundo com fatos, com a realidade constatável porque acessível, filtrada por nossos meios, desde a simples sensação auditiva ou visual, até os aparatos mais sofisticados que servem para atestar ou negar fatos, situações, experimentos. O mundo objetivo é, digamos assim, objetivável, falantes se deparam com situações e fatos e a verdade acerca deles vem da lida com o mundo e da linguagem. 

Verdade não se vende, não se manipula, não se impinge.
Verdade se justifica, se constata, se comunica, se corrige.

domingo, 14 de outubro de 2018

O mundo das ideias de Platão

Quem estudou ou estuda Filosofia, com certeza conhece o mito da caverna de Platão.
O mito ilustra o mundo das ideias, o quão difícil é aceder a ele, as condições para sair da turva caverna e olhar o sol, a Ideia do Bem, acostumar a vista e, imbuído da luz, retornar e ensinar aos que estão presos às ilusões, à sombra, aos "factóides" diríamos hoje, a ver como as coisas são verdadeiramente.
E o que são as coisas, verdadeiramente?
Não como elas surgem a nós, pois esse nosso mundo consta de seres sensíveis, apenas aparência. A essência de cada ser é realizada na ideia sobre seres determinados. Há então uma essência de belo, de bem, e mesmo uma ideia/essência de mesa, de homem, de cão? Sim, se não houvesse ideia que unifica nosso conceito, não poderíamos pensar em algo determinado. As ideias são abstração de entes sensíveis desse nosso mundo feito de coisas efêmeras, que se vão. Se tudo passa, há necessidade de algo que não passa, que seja fixado e esse é um trabalho conceitual.
Mas como chegar aos universais, aos conceitos, às ideias?
Se fosse apenas por meio de comparação, de abstração dos entes deste nosso mundo, seria impossível pensar o mesmo, teríamos apenas nomes gerais e não essências verdadeiras.
Platão recorre mais uma vez aos mitos, a alma conhece antes de habitar um corpo as essências de todas as coisas. Conhecer é recordar tudo o que a alma contemplou antes de ficar presa ao corpo. 

Justamente essa visão de mundo que opõe sensível e mutável, a ideal e imutável, caracteriza o platonismo. Há que ir além do mundo, ou melhor, elaborar um trabalho interior, uma pedagogia do retorno ao inteligível, ao antes sabido, e alcançar a estabilidade e unificação da multiplicidade sensível. Do contrário ficaríamos presa da alma irascível, aquela que lida com coisas e não com ideias.
Pode-se dizer que esse idealismo platônico ainda repercute no pensamento moderno?
Sim, na busca por ideais. Os planos, projetos, intenções nossas, são todos projeções do que gostaríamos de ser ou de alcançar. 
A diferença com relação ao platonismo seria a de que nossos ideais se chocam com a matéria. Partem dela e muitas vezes precisam dela e dá-se uma inversão: a matéria sensível bastaria como ideal?
Há os que nem sequer pensam nisso, a caverna é seu ambiente. E há os que saíram da caverna, viram o sol, e entendem que nosso mundo é intransponível, mas pode e deve ser repensado, criticado. 
Lição a ser aprendida: procurar o bem, levantar o véu das ilusões e dos falsos líderes, esclarecer, lançar a luz sobre os erros, denunciar o corrupto, confiar na justiça. Aliás, a cidade ideal de Platão é aquela em que reina a justiça.

terça-feira, 2 de outubro de 2018

Ideologia de Gênero, o que diria Sócrates a esse respeito?

O que é ideologia?
Um conjunto de crenças, modelos de pensamento, expectativas, valores, comportamento social, que, em conjunto, levam a atitudes e visões de mundo. Nosso modo de ver é sempre embalado por conceitos e noções. Estes podem assumir aspectos pessoais e sociais, que foram aprendidos, inculcados, e, principalmente, que não passam pela razão pensante, como diria Kant. Vale tudo para defender uma ideologia, e hoje se assiste a diversos combates ideológicos nos terrenos da religião, da política, da moralidade e dos costumes. E por incrível que pareça, a ideologia chegou ao território da sexualidade.
O que é gênero?
Em princípio, masculino e feminino. Na prática atualmente, uma diversidade de preferências e comportamentos.
E surgem questões como:
A sexualidade é política ou pessoal? É psicofísica ou genética? É anatômica ou mental?
Em torno a essas questões se debatem profissionais das mais diferentes áreas, desde a educacional até a religiosa, das bandeiras políticas e/ou partidárias, até organizações não governamentais. 

***
Mas, o que tem Sócrates a ver com essa discussão?
O objetivo é mostrar o valor da história, da educação, e por que não, da filosofia. O contraste entre duas culturas inteiramente diferentes sugere que podemos mudar para melhor.
Enquanto nós, modernos, apontamos na direção da sexualidade, Sócrates e os antigos permaneciam no terreno dos prazeres do sexo que não eram nem pecado nem analisados, nem precisavam de psicólogos ou especialistas em sexualidade, nem poderiam ser reduzidos a complexos freudianos, nem ao liberou geral da proposta de Reich e Marcuse que inspirou a geração hippie.
Sócrates e os homens adultos amavam os efebos, com respeito e, como ocorre com todos os outros prazeres não eram julgados moralmente, não entravam no jogo permitido/proibido, nem precisavam do olhar diagnóstico médico/psicológico. Os prazeres deveriam ser modulados, quer dizer, encontrar a justa medida, nem desperdício e nem restrição.
***
Viver sua vida, fazer suas escolhas, seguir o mais satisfatório prazer sem colocá-lo no divã, nem no confessionário, nem na boca acusatória do pastor, nem nas intransigências dos que defendem a ideologia de gênero.
Afinal, é ridícula a dúvida sobre qual plaquinha colocar na porta dos banheiros...

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Kant e as "provas" da existência de Deus


Até hoje temos uma forte imagem teológica do mundo, não era diferente à época de Kant (século 18). Sua família lhe deu uma sólida formação religiosa. Mas, para Kant, a noção de Deus e as provas de sua existência estão fora dos limites da razão pura, por meio dos conceitos do entendimento é impossível provar a existência de Deus. Kant rejeitou o argumento ontológico de Descarte, pois formular um juízo acerca de um ser perfeito não leva à conclusão de que ele exista, nem à necessidade desse Ser. Os juízos analíticos como as afirmações lógicas não podem afirmar existência de algo, e os juízos sintéticos (os da experiência) nada podem fazer, pois Deus não é um objeto com o qual se poderia lidar.  
O conceito de um ente supremo é uma ideia que não leva à ampliação de nossos conhecimentos com relação à realidade. Kant compara alguém tornar-se rico por meio apenas de ideias, como se um negociante enriquecesse juntando zeros ao dinheiro em caixa.
Kant rejeita também a prova cosmológica da existência de Deus, que pressupõe um ente necessário como causa de tudo o que existe, mas partir do não necessário e contingente concluir para o necessário só é viável em nossa realidade concreta, em nossas experiências. E diverge da prova de São Tomás, de que a série de seres contingentes exige um ser absolutamente necessário em seu início, bem como da noção de causa primeira, presente tanto em Aristóteles como em São Tomás, pois isso não é um requisito de nosso mundo de experiências. E mesmo que essa necessidade de uma causa primeira fosse lógica, ela não se traduz como síntese para agrupar conhecimentos no campo transcendental (ver postagem a esse respeito). 
Quanto à prova de que tudo na natureza tem uma finalidade para provar a existência de um ente superior que seria a causa dessa ordem, apesar de sua naturalidade e simplicidade devido às pessoas em geral acreditarem que a ordem na natureza tem uma causa superior, isso não prova que Deus exista, apenas ressalta a própria ordem natural. 
Então Kant seria ateu?
Não, ele envereda pela razão prática, pelo sentido moral de nossas vidas, nossa necessidade de um suporte final para tudo o que existe, e isso é algo que está fora da razão pura, é como que um "abismo", algo "inescrutável", isto é, misterioso.
Nosso entendimento está preparado para o uso transcendental da razão com suas sínteses e conceitos. Já o uso transcendente, que é o mais comum, leva a pensar que pelo fatos de as coisas existirem, deve haver um causador supremo. Mas aí se entra em outro território,  o da razão prática, que leva para uma certeza moral acerca da existência de Deus. O transcendental difere do transcendente, razão pura difere de razão prática, princípios do conhecimento diferem da fé religiosa. 
Assim, uma vez mais Kant revoluciona a Filosofia. O que podemos conhecer, difere do que devemos crer e praticar.







sábado, 25 de agosto de 2018

As provas da existência de Deus para Descartes


Para Descartes Deus é uma evidência. Recorro ao meu texto sobre "15 filósofos" (ainda não publicado) para explicar melhor essa afirmação.
Se ele, Descartes, tem a ideia de Deus, e ele próprio não é Deus, quem pôs essa ideia em sua mente? O raciocínio de Descartes é o seguinte: Eu não posso ser o autor de minha própria existência, pois se eu fosse, não teria criado a mim mesmo como ser imperfeito. Ora, se penso, então existo, portanto o ponto de partida é essa certeza, a de nossa existência. 
1596-1650
Mas, e se esse Deus for desconhecido e puder abalar nossa capacidade racional? Se for um Deus enganador?
Para sair dessa possibilidade primeiro é preciso saber se Deus existe. Conhecer é mais perfeito do que duvidar, e Descartes indaga de onde veio esse aprendizado, o de pensar em algo mais perfeito do que ele. Pensar assim leva à evidência de um ser com natureza mais perfeita do que a nossa. A respeito de muitas coisas podemos nos enganar, mas não com "a ideia de um ser mais perfeito que o meu: pois que ela viesse do nada era algo manifestamente impossível [...], de modo que restava que ela tivesse sido posta em mim por uma natureza que fosse verdadeiramente mais perfeita do que eu era, e ainda que tivesse em si todas as perfeições de que eu poderia ter alguma ideia, isto é, em uma palavra, que fosse Deus", escreveu Descartes.
Deus não poderia ser composto de corpo e espírito, pois isso revelaria imperfeição. Todo ser que depende de outro para existir precisa do poder de Deus, em todo momento. Examinando a ideia que ele tinha de Deus como ser perfeito, o filósofo conclui que a existência está incluída nessa ideia, e isso é tão certo quanto as demonstrações da Geometria. Impossível que um ser perfeito não tenha necessariamente a perfeição da existência
O nada não pode produzir coisa alguma, mas também o que é mais perfeito, isto é, que contém em si mais realidade, não poderia depender do menos perfeito. Essa é uma verdade clara e evidente em seus efeitos. As ideias que se encontram no pensamento têm realidade objetiva, e a ideia de Deus é a mais evidente e a mais objetiva de todas. Seria estranho que uma criatura tivesse essa ideia de Deus no pensamento, sem que Deus, ele próprio, não existisse.  
A razão busca sempre um fundamento de verdade. Deus não teria posto em nós ideias claras e distintas sem um fundamento de verdade, pois ele é ser perfeito e verdadeiro. 
O erro provém apenas da vontade, esta pode levar ao engano, já a luz natural da razão jamais. E a razão foi criada por Deus, o entendimento humano é finito, por isso não compreende muitas coisas. Entretanto, é o entendimento, a razão com sua luz natural a única via que leva ao propósito inicial das meditações de Descartes: jamais formular juízo a respeito de coisas cuja verdade ele não conhece clara e distintamente.
E a existência de um ser perfeito é uma ideia concebida clara e distintamente.

***
A argumentação precisa encadear ideias indubitáveis. No aconchego de seu quarto, o filósofo encadeia pensamentos que conduzem à noção de perfeição e desta para a existência de um ser perfeito. Um Deus geométrico que não requer provas no sentido de ir às obras da criação, como no cristianismo. A razão se basta.

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

As provas da existência de Deus para são Tomás de Aquino


Na pesquisa que acabei de terminar sobre 15 filósofos, um deles é São Tomás (1225-1274), e uma de suas contribuições para a Teodiceia são as provas da existência de Deus. 

Segue parte do texto acima mencionado. 
"Na obra Summa Theologica São Tomás afirma que a existência de Deus pode ser provada por cinco vias. A primeira baseia-se no movimento de todas as coisas. Se elas se movem, são movidas por outras, estas são em potência e requerem um ato para sua atuação.
E nesse processo, o que é atualmente quente, como o fogo, faz com que a potência da madeira de ser quente, se atualize pela combustão. A madeira potencialmente pode ser quente e fria. Mas em ato, ou é galho na árvore, ou lenha, ou carvão. Nada pode ao mesmo tempo produzir mudança e ser aquilo que muda. Tudo o que se move é movido por outro. Não se pode ir ao infinito, é necessário um ser que mova todos os outros, o primeiro motor, posto em movimento por si mesmo, que é Deus.
A segunda via se baseia na natureza da causa eficiente. No mundo da experiência sensível há uma ordem de causas eficientes, e nenhuma é a causa eficiente de si própria. Na série de causas eficientes, há as que são intermediárias, e nessa cadeia se vai à causa última. Sem causa não há efeito.  A cadeia de causas eficientes não pode ser infinita, senão ela não seria eficiente, não haveria o último efeito, nem as causas eficientes intermediárias. Logo, é necessário admitir uma primeira causa eficiente, a que se dá o nome de Deus.
A terceira via se sustenta por meio dos conceitos de necessidade e possibilidade. Há na natureza coisas que podem ser ou não ser, pois estão sujeitas a geração e à corrupção. Mas é impossível que tenham existido desde sempre. Se tudo pudesse não ter existido, é porque houve um tempo em que nada existiu. Se isso fosse verdade, até hoje poderia acontecer de não haver nada, o que é absurdo. Deve haver seres que não são contingentes, deve haver um ser cuja existência seja necessária. Como a cadeia não pode ir até o infinito, deve ser possível postular um ser em si mesmo necessário, que não recebe essa necessidade de outro. Este ser é Deus.
A quarta via parte do grau de perfeição dos seres, com mais ou menos bondade, verdade, nobreza, e assim por diante. “Mais” e “menos” se dizem de diferentes coisas conforme atingem o grau máximo de temperatura, de bondade, de verdade; e são os melhores nessas categorias que atingem o grau máximo de ser. O grau máximo de ser em cada gênero é sua causa. Assim, todo ser precisa de sua causa, a causa de todos eles é Deus.
A quinta e última via para provar a existência de Deus baseia-se na finalidade que todos seres têm, até mesmo os animais agem com um fim, e obtêm o melhor resultado. Esse fim não é fortuito. Se mesmo os seres aos quais falta inteligência agem em direção a um fim, isso se deve a algo dotado de conhecimento e inteligência, tal como a flecha atinge o alvo por meio do arqueiro. Por isso deve haver um ser inteligente que direciona todas as coisas ao seu fim. A esse ser chamamos de Deus."

Pode-se notar semelhança com argumentos aristotélicos, o que não é fortuito. São Tomás e com ele a Filosofia Escolástica, tinham em Aristóteles seu modelo e inspiração. Essas vias são filosóficas, já a fé cristã ou de outro credo dispensa a razão. Há que se perguntar se há ou não conflito entre razão e fé, se não seria um ganho para a humanidade se a fé ao invés de cegar, abrisse os olhos, o coração e a inteligência. Em pleno século 21 a fé é cega em religiões doutrinárias e dogmáticas, nelas medram o fanatismo e a violência.

Pense-se num caso recente: a explosão de uma van no Iêmen que causou a morte de dezenas de crianças! Origem: conflitos étnicos e religiosos.

domingo, 15 de julho de 2018

Filme Filosófico (II)

Um tanto quanto atrasada, vi esse filme de Margarethe von Trotta sobre um episódio marcante na vida de Hannah Arendt. O filme é de 2012, "Hannah Arendt, ideias que chocaram o mundo". 
O ano em que se deram os fatos foi 1961, julgamento de um notório criminoso nazista, Adolf Heichmann, realizado em Jerusalém. Arendt se refugiara em Nova York com o marido devido à perseguição nazista. Lembrar que era de origem judia e que fora amante em sua juventude de seu professor, ninguém mais nem menos do que Martin Heidegger! (ver postagem anterior).
Barbara Sukowa interpretando H. Arendt

Hannah Arendt 
Arendt decide ir ao julgamento, suas opiniões foram publicadas pela revista The New Yorker depois de muita polêmica interna.
E isso devido às ideias explosivas da filósofa que ficara impressionada com a defesa pessoal de Eichmann. O filme mostra passagens desse julgamento, Eichmann simplesmente diz que obedeceu ordens. Para por no trem da morte milhares de pessoas por ter recebido ordens superiores? Sim, responde ele.
E o que Hannah deduziu, sim esse é o termo apropriado para alcançar propósitos que vão além do que no julgamento e do que a opinião pública defendem: carrasco, um dos principais responsáveis pelo Holocausto obedecia ordens!
E mais, argumentou Arendt, havia judeus poderosos responsáveis pela perseguição ao seu próprio povo. E isso ninguém tem coragem de reconhecer...
E o que Arendt viu no nazista? Um sujeito comum, com expressões até tranquilas, que agiu por dever. "A banalidade do mal", pensou ela. Sim, matar, exterminar, era cumprir ordens. A maldade sem remorso. Isso não significava defender absolutamente os atos praticados, muito menos inocentar Adolf Eichmann. Ela queria entender como reconciliar a mediocridade chocante da ação com os feitos espantosos e cruéis
O público em geral, os diretores da revista, seus colegas filósofos (entre eles Hans Jonas) foram implacáveis em suas críticas. Até mesmo a universidade onde lecionava em Nova York iria destituí-la de sua cadeira. Hannah não se conformou com tanta incompreensão, reuniu seus alunos, e reafirmou sua tese filosófica da "banalidade do mal". Quer dizer, sem nenhum motivo justificável moral, política ou eticamente, dizima-se inocentes. Uma aluna pergunta se é por serem os judeus os que foram vitimados, Arendt responde que a bárbara ação é condenável por eles serem humanos
 E ela é aplaudida pelos alunos!
***
Os casos de prática do mal, sem mais nem menos, "banal" se multiplicam. Leia o jornal, veja os noticiários: atropelamento em massa, bombas em mesquitas, alunos e professores mortos por atiradores por motivos .... banais. 
***
Recado ao professor de Filosofia: impeça que seus alunos concluam baseados na opinião geral, sem exame crítico.

quarta-feira, 4 de julho de 2018

Filosofia Contemporânea (II)

Como dissemos na postagem anterior, destacam-se ainda na Filosofia Contemporânea o existencialismo e pensadores independentes.
O existencialismo, Sartre: a diferença entre o ser em si que são simplesmente as coisas e a existência humana como escolha, liberdade e ação consciente, saem do próprio nada que vem ao mundo por meio do homem e seus projetos. Isso leva à total responsabilidade, à angústia da plena liberdade da existência, sem Deus, lançada por acaso no mundo. Ignorar a liberdade e o engajamento pessoal diante das escolhas seria delegar ao outro o que cabe a mim somente. Eu que nada sou tenho que realizar o sentido de minha existência, devo decidir e me responsabilizar pelas decisões.
Heidegger: caracterizam o pensamento do filósofo o rigor, a crucial importância dos primeiros filósofos, a existência humana como ser-aí no tempo e tendo que se haver com a sua finitude, o ser-para-a-morte. Num segundo movimento, Heidegger dá uma guinada em direção ao Ser já não mais do homem e sim da força plena que se abre para o homem por meio da linguagem. E ainda o desvelar da verdade. Verdade com a qual teve que se haver devido ao seu comprometimento com o nazismo. Reconheceu que nazismo nada tinha a ver com a força vital do Ser.
Wittgenstein: hoje chamaríamos o filósofo de gênio multitarefas. Inventor, lógico, matemático, metafísico, antimetafísico, destaca-se pela originalidade de suas propostas, que foram como que arrancadas com esforço e exigências autoimpostas. Como solucionar a questão do sentido se precisamos da nossa linguagem para justamente obter sentido? Se precisamos de formas que a linguagem oferece, podemos utilizá-las como escada atirada fora ao final do processo? Ou a alternativa não seria permanecer com os usos diversos da linguagem ("jogos de linguagem") em situações absolutamente ordinárias de nossos modos de vida? Wittgenstein deu a si e à Filosofia essa última tarefa: não quebrar a cabeça com enigmas que nós mesmos colocamos, dissolver problemas filosóficos na vida cotidiana.
Foucault: quais foram e quais são os artifícios inventados por diferentes tipos de saber que resultaram nesse tipo de sujeito submetido a normas sem origem nobre, ontológica ou metafísica? Foram "saberes de pouca glória" e práticas que passam batido pelos filósofos. Para reconhecer seu papel, há que ir para a história, para a produção de recursos não os das grandes causas econômicas ou sociais, mas as invenções como circulação de mercadorias, tipos de penalidades, discursos médicos, asilo psiquiátrico, exame e enquadramento a fim de obter certo tipo de comportamento, efeitos do dizer verdadeiro. Enfim, fazer-nos entender do que somos afinal feitos e refeitos. E assim visualizar brechas de liberdade e de reinvenção de si.

segunda-feira, 25 de junho de 2018

As principais características da Filosofia Contemporânea

A característica marcante da Filosofia Contemporânea é a diversidade e o grande número de escolas e tendências.
Vejamos as algumas das principais:
- Pragmatismo: Peirce, W. James e Dewey. Fins do século 19 até 2a. metade do século 20. A base da escola é a ação (= pragma), e esta requer a relação constante com a realidade vista como sustentáculo da vida inteligente, seja por meio da linguagem seja por meio da transformação do que nos cerca e do constante aprendizado.
-Fenomenologia: escola que serviu de base para Heidegger e Sartre, cujo fundador foi E. Husserl (1859-1938). A realidade só é atingível por meio da intencionalidade do sujeito, o que não leva ao subjetivismo. Trata-se de um vai e vem entre a consciência que é sempre de alguma coisa, e o exterior sob a forma de intuição das essências. Como exemplo, o fenômeno da religiosidade, uma essência da vida humana, independentemente desta ou daquela religião.
- Filosofia Analítica: em lugar de essência, existência ou conceitos metafísicos, a escola se volta para a análise da lógica subjacente à capacidade de emitir juízos acerca de fatos e poder analisá-los, quer dizer, submeter ao crivo do que é verdadeiro ou falso, consistente ou não. O pensamento requer uma "armação" lógica sem a qual é impossível obter sentido. Representantes: Frege, Russell, Wittgenstein (o do Tractatus), e Carnap que ressalta a ciência natural como único conhecimento de fato.
- Escola de Frankfurt: Horkheimer, Adorno, Benjamin e Marcuse unem os ensinamentos de Hegel aos de Marx para criticar a exploração econômica. E vão além de Marx, há exploração política, e ao invés de ressaltar a luta de classes, se voltam para a razão instrumentalizada, restrita à exploração da natureza. Nesse mundo das trocas, tudo pode se equivaler e se objetivar nessa sociedade bárbara e unidimensional: o desconsolo e o desemparo unem os homens, o fanatismo e a diferenças políticas os separam.

Ainda temos o existencialismo e os pensadores revolucionários independentes de escola de pensamento: Wittgenstein, Heidegger e Foucault que ficam para a próxima postagem.

quinta-feira, 31 de maio de 2018

A sabedoria socrática

Quem se interessa pelo poder da Filosofia, deve recorrer ao pensamento de Sócrates. A argumentação do filósofo é simples, direta, compreensível e a fina ironia é usada para destruir ilusões.
Ele é um questionador, desestabiliza crenças adotadas sem fundamentação, e nem precisa de floreios ou meias palavras. 
A famosa doutrina da douta ignorância, se baseia na afirmação: "Só sei que nada sei". Há um paradoxo tanto em ser ignorante e ao mesmo tempo sábio (douto) quando em afirmar que sabe nada saber. Ora, então sabe, pelo menos isso: que nada sabe.

Mas as lições socráticas são compreensíveis, basta que nos desembaracemos das aporias e das armadilhas da lógica.
O filósofo almeja aprender sempre e sua sabedoria reside em deixar de lado a arrogância, a pretensão de ser portador da verdade, e assim deixar o campo livre a quem quiser percorrer.

O pensador lavra o campo, prepara o terreno, mas as sementes devem ser lançadas tanto pelo mestre como pelo aprendiz.
As colheitas serão sazonais, não acabarão e para tal a aprendizagem deve ser permanente. Mas, se o caminho escolhido for a da vaidade, do saber total e definitivo que ao invés de argumentar só tenta dissuadir, influenciar, empacotar o pensar em caixas fechadas prontas para o uso, em geral de ideologias fáceis -, então a reflexão filosófica congela. 
A retidão e a firmeza moral, a vida exemplar, o ensino que desconstrói certezas absolutas, levou Sócrates à condenação por ter corrompido a juventude. A questão é que Sócrates incomodava políticos de Atenas, seus discursos punham a nu a hipocrisia, o filósofo desmascarava as segundas intenções, o que sempre perturba os medíocres. A estes não adiante colocar-lhes espelhos. Eles só veem o que querem ver.
Diz Sócrates:
Outra coisa não faço senão andar por aí persuadindo-vos, moços e velhos, a não cuidar tão aferradamente do corpo e das riquezas, como de melhorar o mais possível a alma, dizendo-vos que dos haveres não vem a virtude para os homens, mas da virtude vêm os haveres e todos os outros bens particulares e públicos. Se com esses discursos corrompo a mocidade, esses preceitos seriam nocivos; se alguém afirmar que digo outras coisas e não essas, mente (in Platão, "A Defesa de Sócrates").
(470/469-399 a. C.)
E prossegue afirmando que não arredará desses princípios!

Quem sabe o que seria agir por princípios?
Eu diria que são raros...

domingo, 13 de maio de 2018

A ética dos atos de liberdade de M. Foucault

As duas últimas obras publicadas por Foucault, o foram no ano de sua morte, 1984. Os títulos indicam que o tema é a história da sexualidade, mas não havia sexualidade no sentido biológico, médico, psicológico e psicanalítico tal qual desde o século 19 se compreende, nem para os gregos antigos e nem para os latinos do século 1 e 2 de nossa era.
Para os gregos tratava-se dos aphrodisia, quer dizer, dos prazeres e de como moldá-los no sentido de seguir hábitos de saúde, observar certo tipo de dieta conforme as estações do ano e a idade, respeitar o jovem efebo em sua virilidade nas relações que hoje chamaríamos de homossexuais. Ora, justamente, esse é um termo de ajustamento de condutas seguindo normas, próprio da modernidade.
E esse modo de avaliar a sexualidade em termos de normal e anormal sugere que a moral e a ética da carne, do pecado, das transgressões que nasceu com o cristianismo, se prolongou até hoje. Mesmo as tentativas de liberação, nada mais são do que o reconhecimento de que sexo é reprimido.
Para Foucault, não se trata de repressão e sim de uma pletora discursiva. Fala-se, às vezes veladamente, mas fala-se de sexo o tempo todo.
A ética grega e latina se dava em outra perspectiva. A da liberdade e autonomia sem que sexo fosse a questão dominante. A medicina oferecia conselhos para a prática mais prazerosa e oportuna, inclusive o regime do não desperdício nas relações sexuais.
Mas, o que essas práticas têm a ver com atos de liberdade, como cerne da ética?
Ao contrário de Marcuse que propusera liberar a sexualidade como forma política de emancipação, o eros não é central para Foucault. Quais seriam, pergunta ele, as práticas de liberdade que usaríamos para definir prazer, relações eróticas, amorosas e passionais? A ética como práticas que envolvem atos de liberdade, assumidos pelas pessoas e não impingidos por códigos e preceitos, com regras que definem o que é permitido ou proibido, tampouco a fala nos consultórios para extrair o sexo reprimido.
O modelo seria então, o dos gregos da antiguidade clássica: o justo meio, a modulação de seus atos em um estilo pessoal de vida, que poderia ser resumido na pergunta:"O que eu quero para mim?"
O difícil seria entender que não se trata de um "tudo vale", pois é preciso ser o dono de si, ter domínio sobre si mesmo, justamente, "a prática refletida da liberdade", uma arte de viver, e de viver bem. 

sexta-feira, 27 de abril de 2018

Três questões fundamentais de Kant

Por incrível que pareça, Kant já foi considerado pensador "perigoso" por abalar os fundamentos da Filosofia Cristã. Como assim?
Kant formulou três questões imprescindíveis ao filosofar:
Na Crítica da Razão Pura (1781) pergunta o que podemos conhecer, e responde que precisamos de recursos da nossa própria capacidade racional de usar conceitos e justapor à realidade formas, que funcionam como que "fôrmas" em que o mundo vem até nós ao modo do conhecimento.
Na Crítica da Razão Prática (1788), pergunta como proceder em nossas ações, em nossa prática. Trata-se da ética, que para Kant difere de nossos modos de conhecer, isso porque diz respeito às leis morais, ao nosso senso de dever uns para com os outros. 
Em Crítica do Juízo (1780), questiona, o que se pode esperar? Essa última levanta a questão moderna, quais são os objetivos de nossa sociedade? Por que guerras e não a paz?
Estátua de Kant em Königsberg
Com tão importantes questões, como entender que Kant pudesse ameaçar as bases do pensamento cristão?
Foi justamente separar as duas primeiras capacidades humanas. A de conhecer que depende de categorias do nosso entendimento, de situar todas as coisas no tempo e no espaço, de nossa sensibilidade.
A busca da verdade vem da razão, mas as crenças vêm da prática, não podem ser provadas.
E Deus? A necessidade de provar a existência de Deus não decorre da razão pura e sim da razão prática. Isso porque um Ser em si mesmo, soberano e além de toda experiência possível, esse Ser  é inacessível por meio de nossos recursos "teóricos". O que leva a um grande problema: não se pode provar a existência de Deus como fez, por exemplo, São Tomás de Aquino, com as 5 vias racionais. Uma dessas vias afirma que se tudo tem uma causa, deve haver uma maior, absoluta e necessária que é a causa de tudo o que existe.
Para Kant a lei moral, que guia nossas ações é o dever para com todos os homens, almejar para si apenas o que deve valer para todos. Nesse sentido, a alma imortal e Deus são postulados da razão prática. Não podem ser comprovados. Se há injustiça, cabe esperar que uma alma imortal possa compensar os méritos e deméritos. E quem para julgar? Deus, fonte de justiça e não o criador de todas as coisas.
Assim, pode-se compreender como Kant revolucionou a Filosofia e abalou princípios da Filosofia Cristã.
Para conhecer precisamos organizar o material que vem da experiência por meio de formas "transcendentais". Para agir, devemos seguir obrigações morais, a consciência do dever. 
Enfim, soberania da razão livre de tutelas, ao mesmo tempo seguindo rigorosamente a consciência que deve levar em conta toda a humanidade em nossas ações.
Kant obviamente acreditava que somos capazes disso tudo, será que somos?! 

domingo, 22 de abril de 2018

Argumentação é o melhor meio de evitar intolerância

Em um de seus romances, Haruki Murakami escreve o seguinte:

"Às mentes estreitas falta imaginação. A intolerância, as teorias desligadas da realidade, a terminologia vazia, ideais usurpados, sistemas inflexíveis. Essas são as coisas que realmente me assustam. O que eu absolutamente temo e detesto. Claro que é importante saber o que é certo e errado. Erros de julgamento podem quase sempre ser corrigidos. Desde que você tenha a coragem de admitir enganos, as coisas podem ser contornadas. Mas as mentes estreitas e intolerantes, sem nenhuma imaginação são como parasitas que transformam o hospedeiro, mudam de forma e continuam a vicejar. Elas são uma causa perdida ..." (in Kafka on the Shore, p. 181).

Vivemos esse tipo de sociedade e de mentalidade nos dias atuais. Ao invés de argumentar, procurar informar-se com fontes idôneas e fidedignas, por na balança prós e contras, as pessoas mergulham de cabeça, sem pensar, na primeira leva que os fascina. Em geral caminhos fáceis, com doutrinamento ideológico pronto para o uso, com palavras de ordem ocas, mas que servem para fazer barulho, que podem ser pichadas e berradas pelo megafone.

É preciso pensar antes para poder argumentar com mais acertos do que erros.
Mas como saber se há correção ou não?
Não é fácil, isso requer paciência, preparo e abertura de mentes.
Ou como ensina Habermas, a ação que comunica passa antes por três "peneiras":
- Constatar fatos e situações, o que permite entendimento acerca de uma verdade no mundo objetivo. Por exemplo: antes de condenar ou absolver, juntam-se evidências que são expostas ao julgamento e que são permeáveis à contestação ou comprovação. É preciso compreender de que se trata, o que evita pré-julgamentos e pré-conceitos.
- Comunicar-se com alguém nos círculos sociais, no mundo socialmente compartilhado afim de situar as ações com relação às normas, com relação ao que podemos e ao que devemos fazer.
- Entrar em entendimento uns com os outros requer também sinceridade de propósitos, convenhamos, algo difícil. Não só o que se diz e como se argumenta, importa igualmente o que se pretende com o dito. Se o propósito for manipular ou exercer influência indevida, a comunicação falhou e entra-se no terreno das disputas em que vale justamente ganhar, influenciar, derrotar o adversário.

***
As redes sociais infelizmente alimentam a intolerância, a irreflexão, as divisões e os caminhos curtos que ignoram até mesmo de que se está falando. Importa aparecer, estar por dentro, considerar que apoiar tal ou tal seita ou ideologia é obrigatório. Que se está no único lado certo, politicamente correto. Como diz Murakami, "uma causa perdida"!

segunda-feira, 19 de março de 2018

As aulas de Filosofia

Quais são as habilidades desenvolvidas pelo raciocínio filosófico?
A tarefa mais difícil de um professor (a) de Filosofia é levar seus alunos a pensar de modo abstrato.
O raciocínio abstrato assemelha-se às afirmações com sequência lógica, com encadeamento crescente e com conclusões que decorrem da argumentação.
Sem argumentação e sem algum tipo de conclusão ou consequência, o pensamento flui solto, o que impede a exatidão, o sentido claro, a transmissão do que se quer realmente dizer.
Mas não se trata do pensar pelo pensar, impossível uma "pureza" absoluta. É preciso, ao contrário, usar conceitos, chegar a ideias que permitam refletir sobre condições as mais diversas.
Um pouco ao modo socrático de extrair noções, um pouco ao modo platônico de conduzir diálogos por caminhos diversos e mostrar para onde cada um dos caminhos escolhidos pode levar: certeza, absurdos, dúvidas, esclarecimentos, razões, enfim, argumentações com conclusões, como disse acima.
São procedimentos que, apesar de exigirem raciocínio, abstração e capacidade de generalizar, se tornam relativamente fáceis se o professor(a) exercitarem essas habilidades com textos de filósofos que despertem interesse, curiosidade e possibilidade de questionar por si próprios. 
Em Filosofia não se conduz obrigatoriamente para certo filósofo ou para certa doutrina ou sistema filosófico com a exclusão de outros.
Um dos defeitos mais graves do ensino de Filosofia é obrigar alunos a defenderem uma doutrina ou super especializarem suas aulas com o único sistema ou filósofo da predileção do professor (a). Em geral determinado pensador que foi objeto de sua dissertação/tese.
Uma sala de aula é lugar de trocas, e vale insistir nessa toada, é preciso dialogar.
Perguntas e respostas, por quês, razões para isso ou aquilo, estender as situações corriqueiras para as mais gerais e universais da condição humana leva o pensamento a abstrair mas sem o risco de permanecer nas nuvens.
Como isso é possível?
Esforço, interesse e dedicação. Pensamento aberto e sujeito à crítica permanente.

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Filosofia para quê?

Filosofia se tornou disciplina no Ensino Médio...
Mas, para que serve?
Essa questão não pode ser posta, justamente Filosofia e filosofar não têm uma serventia propriamente dita.
Como se diz hoje, A Filosofia não "instrumentaliza" e isso apesar de muitos professores insistirem que ela pode servir a propósitos políticos, aos chamados "enfrentamentos" de questões sociais e políticas.
Se formos ler, por exemplo, "A República" de Platão, ou "Política" de Aristóteles, veremos que nenhuma das obras prega qualquer tipo de bandeira de ação ideológica. Aliás, o conceito mesmo de ideologia é muito mais recente.
As lições éticas e políticas em filosofia não têm um cunho partidário, ou não seriam filosofia.
Mas então para que servem essas "teorias" de filósofos se não "iluminam a prática"?
Cadê a prática diriam os engajados?
Feitas as leituras, mergulhados nos aspectos e ideias de cada um dos filósofos, o resultado é uma abertura do pensamento, um exercício do pensar, a apresentação de novos e diferentes caminhos, mostrar diversas perspectivas, mudar o olhar sobre nós, nossas vidas, nossa realidade, nossa história. Ver de um modo novo o corriqueiro, prover nossa reflexão de conceitos, aprender com os filósofos para que cada um de nós possa também exercer esse tão propalado uso de critérios. Como se diz por aí, "pensamento crítico", porém sem alcançar o que esse conceito significa.
Justamente, por "pensamento crítico" não se deve implicar em adoção de uma bandeira para resgatar oprimidos.Esse conceito vem sendo usado quase exclusivamente por esse viés, quando significa algo muito mais grave. Não que a situação dos oprimidos não seja grave ou que opressores não sejam condenáveis. É que por "pensamento crítico" propriamente se deve significar a busca de sentido, interpretações por meio visão mais ampla, procurar entender o que se quer dizer com tal ou tal ideia, tal ou tal conceito. Enfim, não se deixar levar por cantos da sereia e embalar-se no guru do momento ou na fácil condenação de que a sociedade é injusta (ela é mesmo...) ou que haveria uma ordem social ideal apenas com os justos, os bons, os despossuídos.

Abrir os olhos, ler, refletir, aprofundar-se nas propostas dos filósofos, mostrar como e o que pensam, procurar entender suas ideias, não seria isso já bastante para defender a importância da Filosofia?!

domingo, 11 de fevereiro de 2018

Nietzsche como remédio para o marasmo ideológico do marxismo

Quem e o que é ser revolucionário?
A esquerda marxista, sim, ela ainda existe e persiste no Brasil, se considera revolucionária, justiceira, suas palavras de ordem são aclamadas e assim não passam pelo crivo da crítica histórica.
Como a história e suas transformações importam?
 Na medida em que fatos e acontecimentos são situados, têm sua singularidade e seus aspectos próprios, a cegueira ideológica recusa vê-los, quanto mais analisá-los. As invés disso buscam um ideal, valores, plenitude, a finalidade dos movimentos de classe como superação da ordem econômica burguesa, mitos como Guevara. E com tudo isso se acham do lado do bem geral, como se a realidade histórica, social e econômica (leia-se "capitalismo") fosse o lado do mal.
Um pouquinho de Niezstche serviria para por no chão esses ideais revolucionários, cujos modelos incluem os caudilhos de Cuba e da Venezuela.
O pressuposto desse tipo de pseudo reflexão, é o da revolução, o de que a história encaminha-se para um fim, glorioso, a vitória do oprimidos (antes eram chamados "proletários").

Nietzsche, como observou Foucault em "As Palavras e as Coisas", incendiou essa determinação causal, esse fim dos tempos, como a morte de Deus. Nossa! Que escárnio, diriam os fiéis.
Mas se trata tão somente de esclarecer que sem um absoluto, os homens ficariam à mercê deles mesmos, ao inventaram deuses, quiseram também igualar-se a eles. Criaturas que criam mitos para se convencer de que podem impor valores como se estes fossem universais.

Ora, o homem moderno nasce para o saber ocidental como finito, como vida finita, como produtor de bens finitos, como falante de linguagem cujas regras e significados o precedem.
Na modernidade esse ser finito se dissolveu, e Nietzsche anunciou isso antes das novas formações de saber da modernidade (para a próxima postagem deste blog). A novidade seria o super homem (não, não é o do cinema, nem a raça superior nazista).
É aquele que enfrenta sua fragilidade, o que atravessa em uma corda abismos, ele é o destemido, sem medo de punição. Nietzsche é o precursor de nossos tempos "queimou ... as promessas misturadas da dialética e da antropologia" (Foucault em "As Palavras e as Coisas", p. 275).

Marx pertence ao pensamento do século 19. Seria formidável se seus asseclas em pleno século 21 se dessem conta disso!

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

A diferença entre filosofia de vida e a autoajuda

Pode-se dizer que uma filosofia de vida é mais séria, difícil, importante do que a literatura voltada para a autoajuda? Pode-se considerar o pensamento de um Sêneca ou Marco Aurélio (filósofos estoicos, Roma Antiga) mais precioso do que o de uma Louise Hay, Zíbia Gaspareto ou Augusto Cury?

Qual é o sentido de "precioso" aqui?
Raro, difícil de acompanhar ou compreender, culto, e mesmo como se classifica em nossos dias "elitista"?
Para atingir um público amplo (os livros de autoajuda são campeões de vendagem) é preciso trocar em miúdos as ideias e os conceitos, ou são as próprias ideias e conceitos de per si bem acessíveis?
Sim para as duas opções. Trata-se de temas imediatos, do dia a dia, próximos às dificuldades que em geral pessoas enfrentam, como superar perdas, alcançar satisfação em seu trabalho, solucionar questões imediatas e corriqueiras, e para tal, confiar na palavra e nos conselhos dos gurus, dos homens de fé, dos espiritualistas, e mesmo de médicos e psicólogos é fundamental.
E sempre aquele que aconselha é o responsável, é o guia, ele teria a chave do sucesso, da cura, da felicidade. Quem os segue, lê o receituário e aceita novas regras sem precisar responsabilizar-se por seus atos e atitudes, sem necessidade de pensar por si mesmo. Alguém o fará por você. 

Se formos contrastar a autoajuda com as filosofia de vida, as diferenças são profundas. Isso não implica em negar o papel da literatura de autoajuda, mas em clarear um pouco os caminhos da reflexão sobre nossa existência, sobre o sentido da vida.
Evidente que o leitor das receitas para bem viver e ter sucesso, quer solução. Tanto que tais livros também se intitulam de manuais.
No caso da filosofias de vida, o leitor não busca adesão, nem chaves para o sucesso, nem autocontrole. É o inverso, os filósofos da existência pensam e refletem sem visar seguidores, iluminam nossas ideias, modificam nosso modo de  ver e de pensar, entender sua mensagem basta, o estilo refletido de vida é livre e autônomo.
Alguns exemplos: 
O antigo ensinamento que Sócrates adotou "Conhece-te a ti mesmo" sugere que cabe a cada um mergulhar em si, poder exercer esse conhecimento para uma vida plena.
Cuidar de si, saber-se finito, existência responsável e livre (Sartre), entender que só somos no tempo, vamos morrer, que somos "ser-para-a-morte"(Heidegger), celebrar essa finitude (Nietzsche), ou considerar que a vida é frágil sofrimento (Schopenhauer).

Os filósofos abrem perspectivas, por vezes nos deixam sem chão. 
A autoajuda resolve, conduz e apascenta.