quinta-feira, 24 de outubro de 2013

A morte da filosofia: incoerência, inconsistência, contradição

As condições basilares da escritura filosófica são a coerência, a consistência e a intenção de evitar contradições. Daí o título indicar que a filosofia (e demais textos teóricos, científicos, jornalísticos) são feridos de morte quando há neles incoerências, inconsistências e contradições.
A incoerência decorre muitas vezes do despreparo do autor, muitas vezes como que perdido em meio às ideias e conceitos do filósofo abordado, do tema estudado ou de ambos.
A coerência reside em indicar os propósitos e objetivos do texto ou do estudo, ir fundo neles, explicitá-los para o leitor ou estudioso do assunto e/ou do filósofo. Se o objeto de estudo for um filósofo, por exemplo, Platão, especificar o modo como será abordado, quais diálogos, com que objetivo. Ser coerente implica em formação intelectual, honestidade consigo e com o leitor, segurança, completude nos raciocínios e argumentação. Ou seja, evita-se a repetição, a vagueza, as frases longas e complicadas, os conceitos mal delineados. 
Wittgenstein teria sido incoerente com seus princípios e conceitos na passagem da lógica do Tractatus para a linguagem cotidiana de Investigações Filosóficas? Não! Ele permaneceu coerente com seu objetivo ao fazer filosofia: a busca da base, da ponte, do que permite pensar, falar, compreender, verificar a verdade ou não de enunciados, enfim como entender o funcionamento da relação entre linguagem e realidade. Se fosse incoerente, não seria filósofo!

Quase nunca se discute a necessidade da consistência, tanto a dos textos a serem elaborados por alunos e pesquisadores na área da filosofia, como o que representa a consistência no pensamento e nas doutrinas dos filósofos. O texto se firma em pé ou desmorona a cada parágrafo? Contribui para o exercício do raciocínio, da reflexão, há nele alguma argúcia, ou se perde em minúcias inúteis ou generalidades vazias? O texto tem o que dizer, renova pelo menos algum modo de ver, de interpretar? Traduz um tema ou autor de modo interessante e instigante? Ou é morno, raso, terminada a leitura nada fica, nada se modifica em nossas visões? É enriquecedor ou pobre? Diz a que veio ou se arrasta cansativamente?
Mesmo difíceis, os filósofos todos produzem reflexões consistentes, por vezes pesadas. A superficialidade e os artifícios ficam longe da filosofia. O famoso ditado de Sócrates "Só sei que nada sei" é a um só tempo revelação, renúncia, absolutamente consistente com sua meta, a de aprender sempre e de ensinar, a "douta ignorância" que permite ao filósofo reiniciar, sempre.

Contradizer-se é ainda mais grave: afirmar algo e em seguida negar, basear-se no conceito X e mais adiante considerar esse mesmo conceito como inválido. Por vezes, na mesma sentença declara-se que, por exemplo, é possível obter verdade, mas que a verdade é impossível! 
Quanto à contradição há um problema extra: os dialéticos a têm como fundamental. Ser e não ser na transformação e evolução histórica, assim como ontologicamente, se determinam mutuamente, um depende do outro para haver mudança, devir ou vir a ser. Mas não é disso que se trata quando se diz que o filósofo e a filosofia não podem ser contraditórios. O que fazer diante de duas afirmações contraditórias? Contradizer-se impede a argumentação, defender ideias e ideais, chegar a conclusões, "fechar" um raciocínio. Impossível defender a tese de que o cogito, o "eu penso" é fundamental e negar o poder do pensamento individual. Se Descartes assim o tivesse feito, não seria filósofo.
Isso não significa ser possível e desejável olhar e interpretar as várias facetas do que está sendo investigado. Se A, então... tal. Se B, então...tal. Isso não é contraditório, amplia as razões para se refletir e fazer filosofia.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

A importância da Filosofia

Um dos mais interessantes paradoxos da filosofia (tanto em sua longa história quanto como matéria de estudo e reflexão) é que ela não tem nenhuma aplicação imediata, por vezes é incompreendida, descartável e mesmo ridicularizada, e nada disso impede, pelo contrário, estimula, a que filosofar e os filósofos sejam imprescindíveis.
Como interpretar essas duas atitudes antagônicas?
Em sociedades tecnocráticas, de produção e consumo imediato de bens e serviços, sendo inclusive a educação vista como um desses bens, é possível dispensar a Filosofia devido a sua inutilidade. Ao mesmo tempo, essa mesma sociedade produz um efeito inverso: para que servem todos esses bens e produtos? Eles satisfazem e preenchem todos os aspectos e vicissitudes da vida? Basta trabalhar, pesquisar, comprar e vender, cumprir horários e realizar tarefas? E isso quanto à vida cotidiana.
E as outras questões mais profundas e amplas, que não se restringem à economia, à política, que partem para problemas como o da aplicação da justiça e dos direitos humanos, como conciliar as relações entre poder público e vida privada, liberdade e cidadania?
E quando sociedades inteiras se mobilizam por meio da religião e consideram sua crença como única, verdadeira e insubstituível, como ficam as demais doutrinas religiosas? Qual é o valor, afinal, dessas crenças? Se elas respondem pelo sentido do cosmo, pelo sentido da vida, se preenchem os anseios pela busca de um bem supremo, de um ser superior, se suprem as necessidades espirituais, como ainda assim a filosofia permanece viva e atuante?
A necessidade da filosofia é inerente à capacidade racional de compreensão, de indagação, de atenção e cuidado pelo que é básico e fundamental. O que funda, o que fundamenta nossa capacidade de conhecer o que nos cerca e o que somos nós, seres humanos? Como entender que o tempo nos constitui, tanto o tempo de todas as coisas que nascem e morrem, como o tempo sem o qual não há memória, nem apreensão das situações presentes, nem possibilidade de projetar, de planejar, de imaginar o futuro e novas situações?
E quando o tempo se transforma em puro acaso, quando ocorrências díspares confluem e mudam inteiramente o fluxo de nossa existência? O que é causado e pode ser dominado, e o que é fortuito e escapa ao nosso controle? 
Nessas condições, é possível filosofar?! Note que a pergunta instiga a pensar justamente sobre a condição humana!
Se a ciência responde com leis da física sobre moléculas, átomos, teorias sobre o início do universo; se a biologia responde sobre a origem da vida e sua evolução; se a medicina avança e mapeia o cérebro e todo o corpo, previne e controla doenças, prolonga e dá condições para saúde e bem-estar; enfim, se as ciências controlam muitos fenômenos e os explicam, a filosofia ainda assim persiste.
E isso porque ela segue outro caminho. Seu campo de saber é o das avaliações, a pergunta pelo sentido da vida, apreender todos os entes existentes por meio de categorias e conceitos gerais, como: causalidade, totalidade, verdade, teoria, matéria e forma, ideias, mente, tempo, eternidade, finito e infinito. Não se prova e nem se comprova nada nessas digressões, nessas interpretações, nessas valorações. 
Elas insistem e persistem porque ao pensamento não é dado não pensar.