quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Momentos inusitados na vida de alguns filósofos

Há certos momentos marcantes na vida dos filósofos, alguns típicos do que se espera deles, outros inusitados e até surpreendentes.

Sócrates cercado de alunos, Sócrates que abreviou sua morte com cicuta, episódios típicos de um filósofo. Mas imagine Sócrates no banquete em que o jovem e belo Alcebíades, embriagado como relata Platão, seduz pela juventude e beleza. Relata Alcebíades ter dormido sob o manto de Sócrates, e "pensava que logo ele iria tratar comigo o que um amante em segredo trataria com o bem amado, e me rejubilava", mas isso não aconteceu, Sócrates acordou e retirou-se.

Mudança de quadro: Agostinho no jardim de sua casa em Milão (ano 386), aos 32 anos busca um sentido para sua vida. Uma súbita iluminação lhe mostra o caminho da fé em Deus, a leitura de Paulo de Tarso muda por completo sua visão de mundo, ele se converte ao catolicismo, e encontra a paz depois do que chamou de "vida em pecado".

Bem diferente de Descartes, uma cena de intimidade, descrita pelo próprio filósofo na primeira Meditação: "Por exemplo, que eu esteja aqui, sentado junto ao fogo, vestido com um chambre, tendo este papel à mão...", quando analisa o grau de certeza proporcionado pelos sentidos. Por que será que ele mencionou o modo como se vestia?

E Nietzsche dançando? Em Ecce Homo ele recorda dos passeios em Nice, onde terminou "Assim Falou Zaratustra": "Muitas alturas silentes da paisagem de Nice são sagradas para mim devido a momentos indeléveis que ali passei ...; a agilidade muscular foi sempre tanto maior em mim quanto a força criadora mais fluentemente me inundou o espírito. O corpo é entusiamo: não nos ocupemos da 'alma' ... Frequentemente viram-me dançar."

Entre as muitas "esquisitices" de Wittgenstein, mania por limpeza, comida frugal, acessos de violência (o famoso puxão de orelha em uma menina, sua aluna quando professor de matemática em uma aldeia; discutindo com B. Russell e o ameaçando com um atiçador de lareira), há uma pouco conhecida, mas marcante cena passada na Irlanda. "Seus vizinhos mais próximos, a família Mortimer, consideravam-no completamente louco ... Chegaram a proibi-lo de passar por seu terreno, afirmando que ele assustaria os carneiros". Assim, Wittgenstein tinha que desviar, e "num desses passeios, os Mortimer viram-no parar de repente e, servindo-se de um bastão, desenhar uma figura (um pato-lebre?) no chão da trilha, a qual ficou contemplando por um longo tempo, inteiramente absorto, antes de retomar a caminhada" (cf biografia "O dever do gênio", Ray Monk).

Se permanecer absorto é algo que até se espera de um filósofo, comprar um Jaguar e dirigir em disparada, fere nossa imagem do pensador (a da estátua de Rodin, por exemplo). Trata-se de Foucault em Uppsala (Suécia). "Um dia vai com Jean-Christophe a Estocolmo comprar um carro. Voltam com um suntuoso Jaguar bege que surpreende a boa sociedade local", gostava de comer bem, bebia de vez em quando até cair de bêbado, "também gostava de se vestir de chofer para levar Dani (uma amiga) a suas compras na cidade. Seu Jaguar se tornou lenda entre todos que o conheceram em Uppsala. Todo mundo conta que ele dirigia como um louco" (cf biografia de Didier Eribon). Temiam que se acidentasse, o que, felizmente para a filosofia, não aconteceu.
Decididamente, filósofos não andam com a cabeça nas nuvens...

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Pessimismo

Matança de ratos presos em uma ratoeira, é essa imagem que vem para descrever o massacre da população civil da Faixa de Gaza. Espremidos entre o mar, a fronteira com Israel e com o Egito, ambas fechadas, dois milhões de habitantes não têm para onde fugir dos bombardeios israelenses.
Enquanto o Hamas se serve de prédios particulares e públicos para a entrada de túneis e depósito de armamento, e Israel bombardeia tais prédios, o pior, em abrigos da ONU, mais de mil pessoas, crianças e mulheres morrem, outras são feridas, mutiladas. Qual esperança para esse canto fervilhante do planeta?
Leste da Ucrânia, uma senhora tem o teto de sua cozinha perfurado pelo cadáver nu de uma mulher! Estilhaços de um míssil derrubaram um avião civil, choveram cadáveres (298) do céu!
Brasil: pai que mata filho, madrasta que o enterra; policiais que arrastam o corpo de uma mãe caído do porta malas de uma viatura, talvez ainda com vida; black blocs com seus coquetéis e uma ação de protesto contra o capitalismo, bancos, revendedoras de veículos, prédios públicos, mataram um jornalista. 
Examinemos a ação terrorista destes encapuçados. No comando deles no Rio de Janeiro, uma professora de filosofia, Camila Jourdan. Jovem, bonita, com artigos sobre Wittgenstein. Enfim, mestre, quer dizer, habilitada para ensinar o pensamento de filósofos, aqueles amigos da sabedoria, que ensinam ética, moderação, reflexão, raciocínio, lógica, uso de conceitos, busca da verdade!
Retire-se de nossa sociedade as indústrias, as trocas internacionais, a mediação dos bancos, o sistema financeiro, automóveis, ônibus (que foram incendiados), impeçam a circulação de pessoas, seria o caos.
É isso que visam os anarquistas do movimento black blocs? 
Cegueira social, teórica e prática! Camila Jourdan chefia a "Organização Anarquista Terra e Liberdade". Ora, se é "anarquista", como pode ser ao mesmo tempo "organizada"?!
Alguns os defendem em nome do direito democrático de protestar; enquanto isso os que foram detidos, se serviram do sistema judiciário que eles próprios querem destruir. Se fossem consequentes e coerentes, dispensariam advogados, estes, afinal, pertencem ao sistema...

Diante desse quadro (e ele está incompleto), a pergunta:
Somos melhores que nossos antepassados?
Democracia? Os gregos a inventaram, talvez a tenham usado mais e melhor do que nós modernos.
Justiça? Os romanos e povos antes deles tinham leis, códigos e os aplicavam (prisões lotadas? no Brasil atual ...)
Conhecimento, ciências, progresso tecnológico? O que dizer da Renascença, de Leonardo da Vinci?
Medicina, antibióticos, mas e o vírus ebola? Não há vacina...

O que procuramos, nós humanos, o que conseguimos, e o que fazemos conosco mesmos?
Absurdos, abusos, violência, violação de direitos, muito sofrimento.

A história nos mostra a vida dos povos, e nada encontra a não ser guerras e rebeliões para nos relatar; os anos de paz nos parecem apenas curtas pausas... E de igual maneira a vida do indivíduo é uma luta contínua... Por toda parte ele encontra opositor, vive em constante luta, e morre de armas em punho (Schopenhauer)

Atos de fala segundo Austin ("speech acts")

Em uma série de conferências de 1962, o filósofo inglês J. L. Austin contribuiu com uma nova forma de ver a linguagem, a da ação, a da pragmática. Falar pode ser um ato realizado apenas pela fala, como em "Eu batizo" "Eu juro...", "Eu aposto....". Em atos que constatam, como afirmações a respeito de algo, isso também ocorre como Austin acaba por concluir.
Todo ato de fala emitido em situação, em contexto apropriado, com intenção de dizer realmente o que se quer significar, há três dimensões concomitantes:
- Um ato locucionário, expressões usadas são inteligíveis pois gramaticalmente aceitas em termos de regras sintáticas, com vocabulário de certa língua, com certa entonação, reporta-se algo, e em geral se refere a algo, a um estado de coisa do mundo.
- Um ato ilocucionário, que é a ação implícita no ato de dizer algo a alguém, por exemplo, "Meus vizinhos se mudaram para longe daqui". Afirma-se com intenção sincera, informa-se algo, ou pode servir como uma mentira se alguém os ameaça e a pessoa que informou pretende defender seus vizinhos. Os atos de fala, neste nível, são como que revestidos de um valor. Se alguém compreende um ato de fala como aviso, imediatamente age de acordo, acata ou não o aviso. E assim com uma ordem, um pedido, uma sugestão, uma pergunta, etc.
-Um ato perlocucionário, há um efeito produzido em quem ouve, certa afirmação, em certo contexto, pode alegrar, amedrontar, ser útil ou nociva. 

Habermas, em sua teoria da ação comunicativa, mostrou que os atos de fala ou atos de discurso, tal como propusera Austin, são o núcleo do discurso comunicativo. Isso porque falar não é trocar sentenças de uma língua, e sim enunciações em situação de discurso. Não há diálogo possível sem a execução de atos de discurso, quer dizer, é preciso compreender o que se diz para haver resposta: sim, não, talvez, é verdade, concordo, discordo, por favor repita, explique-se melhor... São situações criadas por diálogos, por textos, por atos comunicativos.
É possível influenciar pelo discurso, pela fala, levar alguém a crer, a obedecer, instigá-lo, quer dizer, por meio da linguagem se exerce poder.
E isso desmonta a suposição de que verdade e afirmações se ajustam para constatar fatos, de que a linguagem é relato, nomeação de algo, ou então, pura significação. Linguagem é sempre ação, de outro tipo da ação normalmente reconhecida, a física. Impossível que palavras firam alguém fisicamente, mas podem ferir alguém em sua vida, na autoestima.

Words, words, words, em Hamlet (Shakespeare), palavras ao vento... Alguém poderia objetar que palavras não passam disso, palavras. Entretanto, para que o personagem assim se expressasse e fosse compreendido, isto é, que são palavras apenas, é preciso usar a linguagem, um ato de fala sobre o que valem as palavras. A linguagem é autorreferencial.
Millôr Fernandes: "Uma imagem vale mais que mil palavras... Experimente dizer isso sem palavras!"