terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Kafka, a carta ao pai.

 Teria Franz Kafka ( Praga, 1883- Kierling Áustria, 1924) escrito Metamorfose, O Processo, O Castelo se suas experiências na infância não tivessem a marca da tirania paterna?




É possível especular que sim como ele deixou evidente em Carta ao Pai, escrita aos 36 anos. Foi publicada postumamente e nunca enviada ao pai. Aliás, seu desejo foi o de que toda sua obra fosse destruída após sua morte. A carta revela o sofrimento, a humilhação, o desprezo paternos. Exemplos, como o da aula de natação, o contraste do corpo opulento e forte do pai com o corpo franzino do filho; o pedido de um copo de água à noite recusado e o castigo, ficar ao relento em um puxado fora de casa; à mesa era obrigatório comer rápido, sem sujar o chão, enquanto debaixo da cadeira paterna havia migalhas, e ele ficava à vontade para cortar a unha, apontar lápis e cutucar o ouvido. 

Esse tratamento lhe serviu como modelo para avaliar o mundo e o próprio pai: um mundo com escravos que cumprem ordens; o mundo do pai alimentado com ódio dos que não o seguem; e um mundo dos felizes, livres de comando e obediência.

A proibição de falar, a acusação de ser fraco, desajeitado, tratado com insultos, com ironia, risos maldosos, ameaças, o fizerem perder a autoconfiança. As comparações eram frequentes, com ele, pai, que trabalhou desde muito jovem, que privilegiava os negócios, que tinha talento para vendas, ao passo que o filho era inepto, suas "altas" ideias (ou seja, os escritos de Franz) não serviam para os negócios. Uma de suas publicações foi mostrada ao Pai, que a largou na mesa de cabeceira. Nos escritos lamentava o que não podia lamentar junto ao Pai.

A mãe entre o marido e os filhos, tinha uma posição penosa. A tirania paterna perdurou em todas suas realizações, escreveu ele na Carta. A consciência culpada foi carregada na vida adulta. Nenhum consolo com a religião judaica, que Franz valorizava e para o pai importava apenas a fachada.

Outro desastre foram as tentativas de noivar e casar. Nenhum respeito pelas suas escolhas. Por que não se casou? Obstáculos que pertencem à vida, escreveu ele, a pressão do medo, da fraqueza, da falta de consideração para consigo, além de o casamento dos pais não servir como melhor exemplo. Como seria casar e viver sob a sensação de perigo?

 Com Dora Dymant, sua amante, um consolo nos dois últimos anos de vida.

 

Tudo o que para o Pai seria sem culpa, para ele uma culpa semelhante a viver dentro de um caixão funerário. Uma incapacidade para a vida que Franz a tomou como responsabilidade sua, inclusive o fato de ter permanecido solteiro. Se casasse estaria sujeito às permanentes acusações paternas de desonestidade, acomodação e parasitismo.

Ao final da Carta afirmou que chegar tão próximo à verdade pode acalmar e tornar vida e morte mais leves.

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Sim, sua obra carrega a marca da tirania paterna, a vida como um interminável processo, até mesmo acordar e se descobrir uma barata

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Há testemunhos de que o pai era benevolente, tratava bem a todos seus subordinados, e Franz teria exagerado na carta. Absurdo! Justamente os tiranos o são em casa, nunca com os de fora do círculo familiar. 

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Quando a fortaleza desaba

 Uma das virtudes, segundo Aristóteles, é a da fortaleza. Ser virtuoso hoje tem uma conotação de fraqueza, de ser certinho, até mesmo carola, e, quanto ao termo "fortaleza", o que vem à mente é a força física, músculos exercitados. 

No sentido ético, a fortaleza é uma virtude, quer dizer, um bom hábito, algo que se pratica, que se manifesta nas ações, e que, ao ser praticada torna as pessoas mais justas ou do contrário, injustas. Sempre mirando o meio termo, nem falta, nem excesso, é certa "disposição de caráter que torna alguém bom, e que o faz desempenhar bem a sua função" (Aristóteles), requer sabedoria, não a intelectual e sim a sabedoria prática.

A fortaleza é uma virtude das mais excelentes, tem a ver com a firmeza de caráter, de enfrentamento, de coragem para tomar decisões, mesmo nas situações mais difíceis. A fortaleza se diferencia de dois opostos, o lado fraco que é o medo, e o lado extremo que é a confiança desmedida, temeridade, audácia, algo comum em nossos dias, talvez possamos ainda incluir nesse excesso, o exibicionismo.

Esses seriam os aspectos morais dessa virtude, a fortaleza.

Há outro aspecto, quase invisível, a fortaleza representada pelo papel da mulher.

Fortalezas são planejadas e construídas para durar, para enfrentar o inimigo, para vencer, nunca para sucumbir.

Mas é possível que fortalezas desabem. 

Quando na cozinha não se sente mais o cheiro bom da comida, daquele macarrão com frango; quando o avental fica dependurado, sem uso; quando se ouve na casa apenas o ruído do relógio; quando na cadeira de balanço o corpo cansado se larga e o olhar perde a vivacidade; quando essa cadeira não mais conforta alguém; quando os passos ágeis se tornam lentos e pesados; quando as tarefas e afazeres cotidianos, antes executados mesmo inúmeros e incessantes, agora representam um fardo.


      O vazio

 O que houve? Desemparo, as paredes racharam, os alicerces ruíram. 

E esse é um lado na vida das mulheres, pouco ou quase nada considerado.

O outro lado é muito mais visível, mais cruel e muito bem conhecido. Vai além da perda de sentido ou da falta de reconhecimento. É o modo como as mulheres precisaram se submeter a um papel, ou são submetidas ao papel de coadjuvante, devem obedecer ao comando, ao "conheça seu lugar". Não são ouvidas e nem respeitadas, estão sob o jugo do autoritarismo.

A muitas dessas mulheres, a violência não deu a chance de construir ou reconstruir sua fortaleza.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Ser criança no Borundi

 Alguns dias atrás, em reportagem de TV5 Monde, o depoimento de uma mãe: a filha de cinco anos tinha sido violentada e morta. Enquanto isso, os demais filhos chafurdavam no lixo e na lama. No lixo em busca de algo aproveitável, comida inclusive.

A mãe olha para o repórter e diz que não possui nenhuma foto da menina para mostrar como ela era. Talvez no intuito de alguém saber quem e como era a garota e assim esperar algum resultado, uma denúncia. Ou talvez para lembrar dela, o que é duvidoso tendo em vista as condições de extrema pobreza, quando há outras prioridades, entre elas, sobreviver.

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O Borundi é considerado o país mais pobre do mundo, a população é em sua maioria hútu, são 12,5 milhões de habitantes, em um território pequeno, encravado na parte central-sul da África, a oeste fica a nascente do rio Nilo. Ali se encontra o maior e mais profundo lago de água doce, com 16 % da água doce do mundo e que se estende por outros países. No Borundi é aproveitado para pesca, contudo perigosa dada a precariedade das embarcações e a ameaça de crocodilos.

A produção agrícola exportada é maior do que a produção para consumo, escassa, e carregada nas costas ou bicicletas para os mercados, quase que exclusivamente de cereais, frutas e verduras. Há fome generalizada, as casas são choupanas insalubres, as autoridades em especial policiais corruptos arrancam o que podem do pouco ganho, em média 10 dólares por mês. O desmatamento, a péssima qualidade da saúde pública em um território densamente povoado, contribuem para a miséria, mortalidade infantil e uma expectativa de vida de apenas 45 anos.

Uma das fontes dessas informações é um vídeo no You Tube, "Como é viver no país mais pobre do mundo". O entrevistador pergunta quantos filhos certa mulher tem, ela "acha" que são seis. Em outra choça dormem no chão oito pessoas, crianças morrem de repente, há tráfico de crianças para Uganda e dali para países árabes.

Apenas 13% têm acesso à internet. Daí o espanto e a indignação que produz a reportagem referida no início, sobre a mãe cuja filha foi estuprada e morta, e dela não há uma foto sequer, importa enfatizar isso.

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Pois bem, o contraste, a abissal diferença com relação a outras culturas e sociedades, são espantosos.

Para ficar apenas no exemplo da ausência de imagens, diariamente, por motivos e situações desde a mais banais e corriqueiras, até os mais relevantes e impressionantes acontecimentos, as fotos, as imagens, os vídeos, invadem nosso dia a dia.

As crianças são clicadas o tempo todo, desde que nascem, durante todo seu desenvolvimento, suas transformações, tudo é captado por imagens. 

E daquela menina, nenhuma foto...

(Sem imagem para ilustrar esta postagem).