terça-feira, 28 de julho de 2015

O (in)dispensável ser

Se algum escritor ou pensador se aventurasse a dispensar o verbo ser, conseguiria que seu leitor o compreendesse? Alguém poderia ousar eliminar "ser"?
Impossível, por inúmeras razões. "Ser", "être", "to be", e certamente nas diferentes línguas, algo semelhante à função de "ser" deve ocorrer. 
Sequer questionamos, nem poderíamos, que conjugar tal verbo seja imprescindível (acabei de escrever "seja"...). Simplesmente porque nomear, é (novo uso do verbo ser) distinguir algo para que nós ou para que os outros nos compreendam. Identificar, classificar, opor, destacar, apontar, e muitas outras ações linguísticas requerem por detrás a pressuposição de que coisas, pessoas, lugares, temporalidades, situações, sejam, no sentido de existirem, de estarem aí à nossa disposição.
Desde que a Filosofia nasceu, a pergunta é pelo ser e pelo não ser. A mais essencial de todas as questões, como apontou Heidegger é essa: por que existe o ser e não antes o nada?
Mesmo no uso banal, e, talvez mais importante nesse mesmo uso cotidiano, "é", "era", "sou", "não é", "não sou", se apresentam o tempo todo. "Ele é", invoca quem, o que, como. "Isto é", acarreta indagar o que, como, e também, duvidar, afirmar, pressupor.
Sujeito, predicado e objeto: "Algo ou alguém é tal". Essa proposição, o núcleo da lógica e da gramática durante séculos, foi analisada como resumindo todo tipo de pensamento. 
No sentido tradicional, o ser pertence à realidade entendida no sentido metafísico, quer dizer, como inerente a tudo. Ser ideal, ser substancial, ser como consciência de si, ser como ideia se autoproduzindo na história, ser aí no tempo, ser como existência humana, assim a filosofia rondou em torno ao SER. 
Não mais. A Filosofia da Linguagem mais recente deslocou a questão para a diversidade dos usos do verbo ser na medida em que não identifica o verbo empregado na linguagem usual com o ser na acepção de que tudo é, tudo tem uma essência, de que todos os entes existem ou subsistem no ser. 
Hoje a Filosofia retira do ser esse caráter absoluto e essencial, as coisas se dispõem para nós, para nosso uso e nosso conhecimento. 
No centro de todo ser, um ser que questiona
A afirmação "algo é isso", passou a ter um uso entre inúmeros outros. Para Wittgenstein, após quebrar a cabeça com a proposição geral que resumiria tudo o que é o caso, tudo o que ocorre, concluiu que é na e pela linguagem de todo o dia que faz sentido afirmar que algo é. E mais em um sem número de usos. Pense na comunicação entre falantes e como passa despercebido o verbo ser, e falar acerca do ser em si fica restrito ao linguajar do filósofo. 
Indispensável no uso normal da linguagem, e dispensável ou como disse Wittgenstein, dissolvido enquanto eixo fundamental da metafísica. Assim é "ser", ou "o ser".
Faça o teste, pergunte para si mesmo "o que eu sou?"

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Foucault e a morte do homem

Em sua obra de 1966, As Palavras e as Coisas, Foucault (1926-1984) analisa o nascimento das ciências humanas. Ao invés de buscar as raízes da Sociologia, da Psicologia e da Crítica Literária em cientistas inovadores, ele inventa um novo caminho, o da arqueologia do saber ocidental.
O saber se constitui em séries, ordens, disposições como camadas arqueológicas. No século 16 o mundo dispunha de signos e se buscava suas semelhanças, as correlações, as relações mágicas e divinatórias. Não havia nenhuma possibilidade de surgir o homem como objeto de ciência. Nem mesmo na época de Descartes, em que a razão/consciência representava as coisas e as articulava por meio das ideias. Estas precisavam da gramática (orações com sujeito e predicado) para representar o mundo, os seres eram classificados em grandes quadros ou tabelas, e a riqueza avaliada por meio da moeda, o valor ficava embutido na mercadoria. 
Tampouco havia nessa ordem do saber (epistemê) um lugar para o homem. Ele surge quando, em fins do século 18 novos saberes o designam como ser vivo (pela Biologia), falante (pela Filologia) e produtor (pela Economia Política). Enfim um ser em "carne e osso", usuário da linguagem e trabalhador. O homem que surge para o saber, segue normas e tem funções, a Psicologia pode se articular; ele fala, e a linguagem requer estrutura e com ela há sentido, e a Crítica Literária usou esses dois conceitos; produzir provoca conflitos e não se faz sem regras, conceitos basilares da Sociologia.
Como as ciências humanas pretendem chegar ao que é o homem, nele mesmo, sem desconfiar que ele é constituído por estruturas, tal como a Psicanálise, a Etnologia e a Linguística exigirão, a vocação das ciências humanas não será realmente crítica. O homem que delas surge para o saber, não percebe que sua vida é finita, que a morte é inexorável, que sem a linguagem não há possibilidade de haver sentido e que a cultura humana dá as cartas, sempre. A busca de uma origem primeira e de um final redentor se frustra nos condicionamentos do inconsciente, da cultura e da linguagem.
Quem "sacou" isso? Nietzsche e Freud, e também etnólogos como Lévi-Strauss, para quem a "estrutura dissolve o homem", ele é constituído por meio de invariantes culturais comuns às diversas sociedades, tanto as antes chamadas de "primitivas", como as chamadas "sociedades com história".
Há condicionantes, não somos donos de nosso destino, e, ao mesmo tempo, agimos, vivemos, falamos, trocamos produtos e criamos artefatos. 
Nos desviamos da pergunta perturbadora e inevitável sobre nosso fim, a morte. E também de haver fala e nela podermos pensar. E mais, a carência de desejar e de o objeto que supriria essa carência, faltar.
Por isso, quando Nietzsche anunciou que o homem não necessita de Deus, que o homem é o inventor de Deus, Foucault mostrou que o inventor também morreu. Criador e criatura morreram. E no saber ocidental ainda pululam formas, estruturas, linguagem, inconsciente. Estão aí, nos constituem, mas fora e longe de nosso alcance.
Por isso o riso irônico com relação às filosofias do homem como sujeito com uma essência, com uma existência e cuja liberdade seria ilimitada. A existência não é nossa essência, pela simples razão de que não temos essência alguma.