quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Essência e existência

Os filósofos antigos, tanto Platão como Aristóteles, consideram inquestionável que o ser humano possui uma essência que o distingue dos demais seres. Para Platão, a alma imortal e divina habita o corpo perecível. A alma racional guia as outras duas almas, a da coragem e a alma dos apetites. Sem a alma racional, não passaríamos de animais.
A alma inteligível “se assemelha ao que é divino, imortal, dotado da capacidade de pensar, ao que tem uma forma única, ao que é indissolúvel e possui sempre do mesmo modo identidade”, escreve Platão no Fédon. A mais elevada capacidade da alma é contemplar o Belo e o Bem em si mesmos, assim alcançar a verdadeira virtude pelo contato com a verdade. As Verdades Eternas foram contempladas pela alma, mas nem todas as almas se recordam com a mesma facilidade das ideias puras e perfeitas. É preciso reflexão filosófica para ascender até elas.
O corpo, ao contrário, é mortal, tem formas mutáveis, não tem inteligência, e se decompõe. Quando a alma se separa do corpo com a morte, ela migra para o lugar de onde veio e se liberta do corpo que “constituía para a alma uma espécie de prisão” . O filósofo, aquele que ama a verdade e a sabedoria, é aquele que tem a missão de ensinar a libertar-se do corpo e livrar-se da opinião, variável e instável, e ater-se às ideias que são as essências imutáveis de todas as coisas.

Para Aristóteles a essência que distingue e individualiza os homens é sua racionalidade. Todo ser é individual, é uma substância, algo que permanece mesmo com as mudanças. Em toda substância, há matéria e forma, potência e ato, diz Aristóteles.
Pela forma os seres distinguem uns dos outros; eles subsistem ou existem em uma matéria (o corpo humano, a madeira, o ferro, o barro); há um produtor da forma, que age na matéria: é sua causa eficiente; todo ser se destina a uma finalidade, sua causa final é o bem, sua plena realização.
A definição significa a essência de uma coisa. Por exemplo: “Homem é animal racional”. Suas propriedades variam: "São elas: Essência, Quantidade, Qualidade, Relação, Lugar, Tempo, Posição, Estado, Ação, Paixão” diz Aristóteles em Metafísica. Por exemplo, algum homem com sua essência de ser individual, que tem uma aspecto, um peso, está em nossa frente, neste momento, parado, em certa atitude.
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Para a filosofia contemporânea a essência, o que é comum a todos os homens é sua existência, finita, particular, no tempo e no espaço, a vida é de cada um, pertence apenas àquela pessoa, há uma autodeterminação e liberdade de ser e de agir, de decidir, de optar, de valorar, inclusive de criar valores.
São análises muito diferentes das concepções antigas.
O laço que une os homens em uma identidade parece ser na atualidade a dignidade da pessoa humana, ainda assim, difícilmente há acordo quanto ao que seja a dignidade, a integridade da espécie e o valor da vida. De modo que essa característica não é universalmente aceita, não é nossa essência. As religiões, culturas, geografias, modos de viver e de pensar, são específicos.
O que leva à questão:
Todos existem sim, mas existem sob o mesmo padrão, haveria uma espécie de "teto" comum e universal, atemporal?
Desde que filósofos introduziram dois fatores interligados, a temporalidade e a historicidade, não há mais régua capaz de medir e padronizar uma essência humana.

Schopenhauer assim se expressa:
A vida humana em seu conjunto revela as propriedades de uma tragédia...uma série de esperanças mal-sucedidas, tentativas fracassadas e enganos conhecidos tardiamente. Reconhecer, observando sua vida, que todo homem está in the wrong pode ser sua salvação.


segunda-feira, 21 de novembro de 2011

A política da resistência segundo Foucault

Em uma sociedade super conectada, na qual pessoas não devem nem conseguem escapar da avalanche de informações que se acham disponíveis, basta clicar (evidentemente é preciso certo nível de educação formal, acesso a redes de comunicação, e também ter e saber o que dizer, o que procurar na web), será que os atuais protestos atingem o alvo, serão eficazes, há resistência aos poderes que Foucault chamou de "locais"?
O que são e como funcionam esses poderes locais?
A invenção de máquinas para produzir, para divulgar, para educar, para endireitar comportamentos e atitudes, para treinar, para examinar, para punir, para investigar, para vigiar se espalharam e passaram a fazer parte da criação e do exercício de normas.
Sociedade de normas é algo relativamente novo, vem de meados do século 18. A sociedade de leis é muito mais antiga, nasceu com as primeiras formas de governo.
Pois bem, as formas de governar nas sociedades de normas (que não deixam de ser de leis também) se modificaram e se transformaram nos últimos dois séculos, não por meio de guerras e revoluções apenas. A industrialização, o crescimento populacional, o surgimento de ciências que medem a riqueza (economia), o fluxo de pessoas (estatística), a vigilância de ruas e portos para maior e melhor circulação de produtos, a urbanização (saneamento e transporte), controle de natalidade, todos são fatores que exigem governar indivíduos pertencentes não a uma massa amorfa, mas a uma população. Saúde, educação, segurança, passam a ser fatores decisivos que testam a capacidade de governar.
Não mais o príncipe astuto que retira as forças de seus súditos, e sim governabilidade, isto é, investimento em localizar no espaço e no tempo indivíduos sujeitados (sem que eles se deem conta disso) a normas, a regulamentos, a modos de vida (famílias cada qual em sua casa, vacinados, reprodutoras de filhos saudáveis, aptos a serem instruídos e responder às necessidades da sociedade de regulação e controle), todos e cada um identificáveis, rebanho pacificado e útil. Só assim esse rebanho pode servir a novos modos de exercer poder: vigiar, treinar e capacitar indivíduos produtivos e dóceis de um lado, e a população registrada, encaixada, manobrável, suscetível de ser mantida em espaços controláveis e saudável o suficiente para produzir e reproduzir, para consumir e circular.

Industrialização, urbanização e crescente capacidade de produzir exigem novo modo de governar

Quanto maior a riqueza e a força de produção, maior o controle sobre o território e a população. Quanto menor, menor também o controle, menores também os índices de desenvolvimento.
Atualmente a China é o exemplo mais notório desse novo modo de governar mais de um bilhão de indivíduos com sucesso, extrair força, exigir trabalho regular, exaustivo, mas não excessivo a ponto de comprometer a produção e a competência. Em contrapartida o Estado não precisa fornecer armas e sim treinamento, disciplina, saúde.
Países da África, e sem esquecer o Haiti e outros da América Latina, nem tampouco os bolsões de pobreza no Brasil, são exemplos de menor controle, há um uso político do discurso da inclusão social, mas enquanto a miséria não atrapalhar a capacidade de o Estado governar, ela não precisa ser erradicada.  
As políticas de resistência visam esses poderes instalados nos maquinários que inventaram o sujeito moderno. Muito mais difíceis de resistir na medida em que nos tornamos corpos dobráveis com comportamentos normalizados, um número da população.
O limite da competência do governo será definido pelas fronteiras da utilidade de uma intervenção governamental, afirma Foucault em Naissance de la biopolitique (p. 42).

domingo, 13 de novembro de 2011

Normas e transgressão

Transgredir normas pode resultar em mudança de visão, renovação de ideias e valores e às vezes revolução social e política.
Exemplos de transgressão: ajudar judeus a fugir do regime nazista, denunciar pela Internet abusos cometidos contra a oposição ao regime sírio, a coragem de seguir o caminho da integridade moral em meio à corrupção, discursos contra o racismo nos EUA nos anos 60 (Martin Luther King), a resistência de Mandela ao apartheid.

Resistir é também uma ação política, implica a não aceitação do que é imposto, do que é impingido e quando pessoas são privadas de seu poder de deliberar e reagir contra a violência e o preconceito, como: os movimentos feministas, a causa gay, denúncia de opressão, condenação do castigo físico, recusar suborno, greve de fome, ocupação de espaço público (como o atual OWS). 

Mas não é forma de transgressão e nem de resistência depredar o patrimônio público. Depredação não é transgressão, como no episódio da ocupação da reitoria da USP. Não sequer é uma forma de protestar pelo uso livre de maconha em espaços públicos.
Se de fato houvesse a intenção de lutar pela liberação do uso de maconha, o meio deveria ser outro, com argumentos, com justificativas razoáveis. Mostrar que a proibição alimenta a corrupção, o crime organizado, o aliciamento de menores. Também expor os riscos e as consequências do uso para a pessoa, há quem diga que maconha entorpece ou embota a mente, entre outros efeitos...
Se há normas e regras, a sociedade deveria ser chamada a dar sua opinião seja para aperfeiçoá-las, seja para rejeitá-las.

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A política de combate às drogas faliu.
Quem consome tanta droga a ponto de enriquecer os traficantes? Morro abaixo habita a silenciosa classe média, que consome, mas não tem a coragem de admitir.
Drogar-se não é transgredir nem resistir.

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Durante 40 anos lecionei filosofia. Sei que é preciso haver muito estudo e dedicação para honrar a universidade gratuita e, assim, fazer o mínimo e devolver à sociedade os impostos que ela paga para que o ensino público funcione.

Uma curiosidade/brincadeira:
Se aos estudantes detidos após ocupação da reitoria na USP (alguns nem eram alunos regulares) fossem feitas algumas perguntas básicas sobre história da filosofia, ou sobre sociologia, política ou psicologia, será que estariam aptos a responder?
  • Aponte três diferenças entre as ideias de Platão e Aristóteles.
  • Qual a finalidade do método para Descartes?
  • Quem afirmou: "Como meio geral de pagamento, o dinheiro torna-se a mercadoria geral dos contratos, de início apenas no interior da esfera de circulação de mercadorias... O grau em que o dinheiro se tornou meio de pagamento exclusivo indica em que medida o valor de troca se apoderou da produção em extensão e profundidade"?

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Hobbes, a violência e o papel do Estado

Hobbes ficou famoso com sua declaração de que o homem é o lobo do homem. No estado natural, primitivo, os homens competiam entre si, havia certo equilíbrio, contra a força física de uns era usada a astúcia dos mais fracos. Mas se um plantava e colhia, o vizinho queria se apossar da terra. Não havia paz.
A natureza humana, dizia Hobbes, é dotada de paixões, impulsos, e uma guerra pela sobrevivência se instala. Para não se entredevorarem, os homens entenderam que era preciso buscar paz. Mas como, se a luta pela vida não cessa?
Pelo pacto de não agressão obtido por meio de um poder que contivesse aqueles impulsos e fosse compulsório, absoluto.
Pois bem, Pinker, que se tornou famoso pelos seus estudos polêmicos sobre o funcionamento da mente, do cérebro e da linguagem, em seu último livro afirma que Hobbes estava certo, que a guerra de todos contra todos só pode cessar com um poder delegado e legitimado pela aceitação voluntária. Segundo Pinker, há muito menos violência hoje, se compararmos com civilizações mais antigas, pelos menos em número absoluto.
Discordo. Governos legítimos, com constiuições e leis, estado de direito democrático e um mínimo de segurança, isso existe em poucos países.
Um olhar sobre o globo revela que há luta para sobreviver nos países mais pobres, onde falta tudo: comida, segurança, educação, trabalho decente. E onde nascer mulher significa permanecer na ignorância e submissão!
Exemplos que ocorrem imediatamente são os dos países africanos.
Mas na China, que acumula riqueza e pode até ser chamada para injetar dinheiro em fundos monetários (salvar a zona do euro), há milhões de pessoas vivendo amontoadas, trabalhando de sol a sol, carregando como formigas a economia que mais cresce. E isso com censura, sem direitos políticos e sociais consolidados. Luta, sim, de todos contra todos.

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Os acampados de Wall Street não gritam contra um sistema de competição regrado e sim contra o 1% que enriquece à custa de especulação, dinheiro para fazer mais dinheiro, improdutivo, fruto da ganância. Os atuais protestantes, ao contrário do que pregava Hobbes, não podem pactuar para se salvar do poder financeiro, e isso porque foram os próprios governos, caso dos EUA, que se viram obrigados (será mesmo?) a salvar os bancos. Deveriam pensar em reformar o sistema financeiro!
Saídas?
Prosseguir, contra Hobbes, na direção de mais liberdade, educação, democracias comprometidas com o bem estar de pessoas com direitos e deveres legitimados por leis e regras. O respeito ao estado de direito moderno não vem de um pacto, de imposição e nem da delegação do poder a um soberano absoluto. Ninguém gosta de baixar a cabeça. Saber viver bem é muito melhor do que tão somente sobreviver, ainda mais que para isso seria preciso abrir mão de sua própria liberdade e determinação.
No que apostar?
Talvez em  uma regulamentação internacional para o capital financeiro, contra paraísos fiscais e a especulação.
Modelos?
Grécia (a antiga!) com seus legisladores; Inglaterra desde o século XVII com a Revolução Gloriosa; França depois de acertar contas com as palavras de ordem: liberdade, igualdade e fraternidade; Estados Unidos com a invenção da federação e o respeito secular à constituição.
E o Brasil?
Já despertou como nação, falta ainda consciência de bem comum, mais seriedade no trato com o que é de todos e vale para todos.