domingo, 22 de março de 2020

Doença, morte, corpo e alma segundo Thomas Mann

Aproveito as muitas horas, dias e provavelmente semanas de reclusão para adiantar a leitura da obra prima de Thomas Mann, Der Zauberberg (A Montanha Mágica).
1875-1955 (Prêmio Nobel de Literatura 1929)

Já havia lido há tempos em português, depois em inglês. Mas sempre quis lê-la no original. Assim, resolvi voltar a estudar alemão, curso que interrompi no longínquo 1972, no segundo ano.
Mas entre os atuais três anos da língua e ler Thomas Mann, ia uma distância...
Ainda assim me propus à tarefa, são 1005 páginas!
Aos poucos, com dicionário on-line, prazer e paciência, prossigo, mergulho nas experiências de Hans Castorp, 23 anos, em um sanatório para tratamento de tuberculose em Davos, por duas semanas.
Sanatório em Davos no qual se inspirou T. Mann

Cada hora e cada dia são descritos com minúcia, e nos levam a reflexões sobre a vida, e quem reflete sobre a vida, o faz necessariamente sobre a morte...
E o que leva à morte essencialmente são doenças. O personagem principal, ao chegar à estação e depois ao sanatório, experimenta nele mesmo a doença do seu primo, Joachim, a quem visitava.
Assim Hans Castorp se expressa sobre o mal estar que sente:
Na p. 102: Als ob der Körper seine eigene Wege ginge und keinen Zummenhang mir der Seele mehr hätte. "Como se o corpo tomasse seu próprio caminho e não tivesse mais relação com a alma". E um pouco adiante, o personagem sente que não faz nenhum sentido razoável isso que ele sente, um tipo de desgarramento do corpo, como se o corpo se "comportasse" com vontade própria, a despeito do que sua alma desejaria...
***
Nossas atividades normais e banais são repentinamente interrompidas, o corpo passa como que a ter vontade própria, não dominamos mais nossas sensações de bem-estar a respeito das quais normalmente nem atentaríamos. E ficamos à mercê da doença, procurando a cura, um hospital, um sanatório (caso de Hans), um remédio, por vezes um milagre.
A vida cotidiana escapa de nosso controle, somos ao invés de donos de si meros corpos controlados por um vírus. O invisível tomou conta do mundo todo. Perplexos assistimos a cenas de dor, sofrimento, isolamento e morte.
Mais uma vez a humanidade precisa com urgência da ciência, essa salvação que passa esquecida e desconhecida grande parte do tempo pela maioria das pessoas... 


segunda-feira, 9 de março de 2020

O QUE DIZ HEIDEGGER: SOBRE "VERDADE"?

O mínimo que se pode dizer sobre a concepção de Heidegger de verdade, é que ela é original. 
Em primeiro lugar porque ele dispensa critérios como o do empirismo, de que verdade depende de contato das sensações com o mundo; discorda dos conceitos científicos de verdade, como o de comprovação por testes e cálculos; discorda de que a verdade seja algo inefável, divino, inalcançável para nós, humanos; discorda do conceito aristotélico/tomista, de que verdade é o acordo entre o intelecto e a realidade dos fatos; discorda do conceito estético, verdade é a da arte, o que nos deleita. 
Evidentemente discorda do conceito transcendental, aquele em que a verdade passa pelos filtros dos recursos puros da razão.
1889-1976
O que é então a verdade? Qual é a sua essência?
Tal como os filósofos analíticos, a  verdade requer a linguagem, mas diferentemente deles, a linguagem não é formal ou lógica, não forma uma quadro da realidade suscetível de ser formalizado.
A linguagem para Heidegger enuncia algo, e a isso reagimos, damos uma resposta, abrimos caminho para certo ente, para certo modo como algo se apresenta para nós, naquele dizer, e isso denota liberdade.
Como assim? Então verdade e liberdade se condicionam mutuamente?
Sim, é que liberdade para Heidegger não significa ser solto, independente, e sim estar aberto para a recepção do mundo, para as situações da existência cujo sentido exige verdade como liberdade. O avesso da verdade como desvelar é o encobrir, o pôr um véu, e fazemos isso o tempo todo...
E qual é o limite desse livre apresentar do ente a nós?
O limite não é o impensado, o limite é não podermos sair de nossa condição humana e transcender a totalidade do mundo, dos entes, de tudo o que há. Estamos sempre imersos em nossas situações, nossos objetivos e projetos nos lançam para o aí no mundo.
O mistério do ente em sua totalidade acaba por ser ignorado, pois somos atraídos por nossos problemas, pelo dia a dia, pelas circunstâncias cotidianas.
Nosso modo de ser hoje em dia passa pelos instrumentos, pela tecnologia, pelas máquinas, pelos meios de transporte.
Estamos longe e esquecidos dessa verdade como liberdade, a essência nos foge. Não porque seja inacessível e sim porque nossa lida nos amarra, e a busca pela essência acaba por se confundir com misticismo, exercícios da mente, fé e apego a crenças e mitos.
Difícil retirar essas camadas que impedem chegar à essência, o nosso modo de ser aberto pela linguagem e o acesso à verdade.

domingo, 1 de março de 2020

O que é o cogito para Descartes?

Descartes (1596-1650) apreciava viajar, não só pela Europa, mas também e, principalmente, para dentro de si mesmo.
O si próprio, o seu interior, o seu eu foi a fonte para sua metafísica, base para o racionalismo. Isso quer dizer que para buscar os fundamentos do saber, para chegar à verdade, bastaria encontrar um porto seguro, algo sobre o que não restasse dúvida alguma.
Tudo o que nos cerca pode tanto ser, como deixar de ser. Então por aí não se chega à verdade. De início Descartes pressupôs que nem mesmo operações matemáticas estão a salvo, pois pode-se supor um Deus enganador. 

Foi então que o filósofo decidiu que o melhor caminho, ou seja, o método seguro, seria duvidar de tudo. Exceto de que ele próprio estivesse duvidando. Impossível duvidar de que se esteja praticando o ato de duvidar e tal ato implica necessariamente pensar. A atividade do pensamento é o porto seguro da metafísica, a base para todas as ciências e conhecimentos.
Cético algum pode abalar a certeza dessa verdade: "Penso, logo existo".
Descartes foi além, essa certeza permite deduzir outras evidências, a de que era impossível que ele nada fosse, e do que ele  consistiria?
"De uma substância cuja essência ou natureza era apenas a de pensar e que para existir não tem necessidade de lugar algum e não depende de nada material".
Esse racionalismo, a distinção radical entre corpo=matéria / alma=espírito não serviu para o filósofo resolver questões religiosas, místicas, e sim racionais, a busca da evidência, que é própria do ter ideias e culmina na certeza, que é um estado psicológico de satisfação interior.
O caminho para a metafísica vem das evidências, das ideias claras e distintas, que abrem caminho o método das demonstrações seguras, ou seja, a matemática.
E é por essa via que ele chega à certeza de que há um Deus não enganador, espírito, que existe, uma natureza a mais perfeita de todas, portanto, dotada da mais alta perfeição que é a da existência.
Tudo se conecta em Descartes com as noções de mente, ideia, certeza, verdade, de um lado, e do lado oposto, a matéria sensível, descartável, e tudo que for fruto da imaginação.
A reta razão só pode buscar fundamentos para a verdade, nunca a vontade nem os sentimentos.
Portanto, racionalismo, o pensamento, o cogito, o eu pensante.
Essa concepção nasceu juntamente com o mecanicismo, a doutrina de que a matéria se movimenta como um mecanismo com leis próprias. E, como o espírito ou cogito não segue leis mecânicas, entende-se como foi possível conceber o espírito independente do corpo.
Em contraste, pela concepção atual de evolução, de matéria como energia, a separação corpo/espírito está ausente da metafísica desde Hegel, Nietzsche, e tantos outros filósofos do século XX.