sexta-feira, 19 de março de 2021

A morte pertence à vida e esta àquela

 Pode ser que estejam me perguntando, afinal, por que a insistência em comentar a obra mestra de Thomas Mann?

Uma última vez ainda. E para concluir a postagem anterior em que se confrontam duas posições, a do defensor da religião e o defensor da ciência, no caso, a Medicina, uma vez que o tema é a doença, a internação no sanatório para tuberculosos em Davos (início do século 20), vejamos a posição do herói do romance, Hans Castorp.

Pois bem, o jovem Hans Castorp decide aprender a esquiar e certo dia galga até o pico da montanha próxima ao sanatório. Embevecido com a paisagem, não sente o tempo passar e é surpreendido por uma nevasca da qual tenta em vão sair, roda em círculos até o ponto de partida, uma certa cabana. Ao perceber que estava perdido, se recosta na parede para se abrigar e adormece. Sonha com uma praia ensolarada, que exala prazer. Em contraste, o sonho seguinte é infernal, sangue, imagens lascivas. Acorda, e se põe a pensar sobre o que acabara de sonhar, dá uma olhada no relógio, percebe que transcorrera não uma noite, os sonhos e o tempo escoaram muito rapidamente. Assim também a vida escoa...

A experiência de sua existência desde a infância marcada por várias mortes, a presença constante do fim  de pacientes jovens, no próprio sanatório, o drama da doença, entende que morrer é parte da vida, que o homem é o senhor dos contrários. "Die Durchgängerei des Todes ist im Leben" (p. 693), a corrente, a passagem da morte se dá na vida, não há vida sem ela. No meio dessa corrente e da razão estamos nós, está o homem, Homo Dei. Há que ser cortês com a morte e com a vida, e essa é a verdadeira devoção. Não a vida eterna, a imortalidade da alma, e nem a confiança absoluta no progresso, na ilustração, na ciência. 

Hans Castorp assume suas próprias ideais e sentimentos, não concorda nem com o religioso Naphta e nem com o humanista Settembrini. E essa é igualmente a posição do próprio autor, Mann, penso eu.

Ser cortês com a vida e com a morte, essa é a devoção, essa é a religiosidade, em seu coração. A morte, pensa Castop, não deve dominar seu pensamento, "Der Tod ist eine Grosse Macht" (A morte é uma grande força"). E só o amor é mais forte do que a morte, não a razão. O bem e o amor são nossos anteparos.

Seria uma visão por demais romântica da morte?

Vivemos tempos sombrios, pensar como Hans seria um alento.

segunda-feira, 8 de março de 2021

Ciência e religião em uma visão pedagógico/filosófica

E se religião e ciência fossem somente "invenções humanas"?

Essa é uma pergunta que pode provocar polêmica e incompreensão.

Se não vejamos:

Ambas nasceram de situações, sentimentos como o de medo ou de ocorrências surpreendentes, imaginação, projeções mentais, necessidades como a de sobrevivência, a vontade de obter explicação para tudo, ambas trouxeram sim respostas e seus efeitos são permanentes e profundos.

A partir dessas considerações, se separam os caminhos, aquele traçado pela religião com suas marcas e efeitos, em contraste com os caminhos da ciência, idem com suas marcas e efeitos.

Fé de um lado, crença na palavra sagrada, na salvação da alma, na redenção dos pecados, nas profecias, nos ritos, em uma palavra, em Deus. Para quem tem fé, a religião não é humana e sim divina.

Pesquisa baseada em métodos de outro lado, investigação, cálculos, resultados comprováveis, avanço simultâneo com diversas técnicas e tecnologias, e, como constatamos em época de pandemia, pesquisa laboratorial avançada para a produção de vacinas, como exemplo claro e notório da necessidade da ciência. Uma invenção humana.

Essas diferenças não anulam nenhuma das duas, religião e ciência têm seu lugar e papel na sociedade e na história da humanidade.

Volto à obra Montanha Mágica e aos personagens que defendem um, a religião, o outro a ciência e o progresso da humanidade. A indagação que não quer calar é a seguinte, e isso da parte do próprio autor, Thomas Mann, que depois parte para o confronto entre Nafta e Settembrini. 

E o que indaga T. Mann?

Não seriam Deus e Diabo princípios? Pergunta inusitada e surpreendente, dá o que pensar, produziu em mim profunda inquietação. Se são princípios, então guiam nossa ação, valores, decisões, visões de mundo. Seriam talvez Bem e Mal nas considerações de Nietzsche?

E o mal de que trata a obra, a doença? Como encarar a doença, perguntam os personagens no início do século 20 (e nós hoje temos essa mesma dúvida). Para o jesuíta, tem a ver com caridade, com interesse em salvar sua alma, na visão cristã o corpo é a prisão da alma, ele é corruptível, a voz da humanidade sempre será, quem ou o que irá libertar-me do corpo mortal? "O corpo uma cortina entre nós e a eternidade", afirma Nafta, o judeu/jesuíta, e acrescenta: "denn Mensch sein, heisse Krank sein" (então ser homem, quer dizer ser doente).

Por sua vez, o pedagogo Settembrini afirma que doença é doença, e a eternidade, na voz da razão é algo a que a humanidade não chegou. A loucura, por exemplo, é uma doença. Nos manicômios é possível ter uma conversa racional com loucos, entrar por assim dizer, em suas alucinações. 

Em suma, vale a razão. 

E nós, brasileiros?!

A razão submergiu nas alucinações, essas sim reais, de nosso atual governante e de seus asseclas...