domingo, 29 de janeiro de 2023

Eu sou meu corpo X meu corpo sou eu

 Grande parte dos filósofos, para não falar de religiões, enaltece o espírito, a alma, o intelecto, o pensamento em detrimento do corpo. Este seria mortal, corruptível, sujeito a mudanças, até mesmo uma prisão da alma, segundo Platão.

Penso que somos uma unidade, sou eu com minhas mãos, minha vontade, meu aprendizado, minhas intenções que ora escrevo. Assim é o motorista, com seu corpo e sua vontade, seu aprendizado, seu objetivo que conduz os passageiros; assim um cirurgião que opera; o jardineiro que ouço aparar a grama, a arte de um cabeleireiro, de um cozinheiro, e claro, usei o artigo masculino, evidente que o mesmo para as mulheres. A criança que chora e é atendida, seu corpo é acalentado. Inclusive nas mais intelectuais e mentais das nossas atividades, somos nosso corpo em ação, em meditação, quando corre, quando adoece e sofre. Eu sou meu corpo em sofrimento, eu sou meu corpo no prazer. Eu me comando, sem o corpo não há transcendência.

                                                 

                                           Pollock, sua arte seu corpo

Cruzei dias atrás com uma moça, cujo corpo anunciava que aquele corpo era sua identidade. Ela não se vestiu apenas para caminhar. Naquele corpo sarado, fone nos ouvidos, lábios preenchidos, o passo calculado, o gestual narcisista, ela enunciava e anunciava "meu corpo sou eu". O corpo é esculpido para ser exibido, é um corpo feito e refeito para ser apresentado e merecedor de postagens. É um corpo corrigido, horas de academia, precisa do louvor, do reconhecimento alheio, é um corpo que não se basta, que sacrifica até mesmo a saúde para ser exibido. A encenação, o teatro, se tornam necessários. As visualizações são seu alimento. Tudo o que se é, o que se quer, o que se possui passa pelo corpo tratado, treinado, esculpido. A escolha do visual é a sua aposta para chamar a atenção, o que é essencial.

Se meu corpo sou eu, se minha identidade for meu corpo, meu gestual, se minhas realizações dependerem do corpo sarado, esse eu é frágil. Pode desmoronar, sucumbir, esvair-se.

                                              

                                                 Corpo/fetiche

Mas, se eu sou meu corpo, a minha identidade são minhas ações, meus feitos, meus projetos, meus propósitos, minhas realizações então a vida é vida em plenitude, a consciência de si se torna inseparável do mundo.

A passagem em que Descartes vê a cera derreter em sua lareira, o que era cera não é mais, isso o faz duvidar de tudo, inclusive de seu estar ali naquele momento, com aquele corpo. Chegou à conclusão de que só a consciência, o pensamento asseguram sua existência. 

Gostaria de propor o inverso: o corpo que habitamos e que somos nos asseguram não só de nossa existência, mas de tudo que realizamos. 

O corpo não á a prisão da alma, a não ser que o transformemos na razão de tudo aquilo que somos. Então sim, seríamos escravos do corpo.

 

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

O dia em que Foucault virou anedota

 Acredito que a postagem pra lá de imbecil tenha sido vista e compartilhada por muitos. Nela os "patriotas" são advertidos de que Foucault iria ser o "mentor" de Flavio Dino, presidiários seriam soltos, e todos ficariam à mercê da bandidagem, entre outras atrocidades mentais, mas todas elas com aquele tom de tragédia, de que a família seria destruída, típico dos tempos obscuros que nosso país atravessa e que ficaram patentes nas invasões e depredações do dia 08 de janeiro.

Por que razões escolher Foucault? O malandro, mal intencionado sabia a quem se dirigir, a quem amedrontar, a quem retaliar? Ou queria ridicularizar?

E por que escolher Foucault, morto em 1984? Deveria ter ouvido falar que Foucault era alguém que pregava o fim das prisões, dos quartéis, das escolas, das fábricas e dos hospitais. Ouviu falar e classificou como de esquerda, "abominável" a escolha de Foucault, sim esse foi o termo escolhido, e me lembrei imediatamente das histórias publicadas nas revistas de minha infância, O Cruzeiro e Manchete sobre o "abominável homem das neves", de cujos vestígios se teriam inclusive fotografias. Naquele tempo ingênuo as fotos em revistas e os jornais cinematográficos eram as únicas notícias via imagem.

Hoje se fala de tudo, de todos, se prevarica, se insulta, se mente, se fantasia e se transforma a realidade em feixes, em mensagens, em tweets, em postagens, em fotos maquiadas, em selfies e naquele tipo de postagem assustadora.

Foucault foi um filósofo polêmico, com vida e obra divulgada dentro e fora da academia, e muito, muito distorcido. Quem o lê e estudou não encontra facilidade, os escritos são diversos, os temas inabituais, difíceis de entender. Ele próprio não se esquivou em inúmeras entrevistas de se explicar, muitas vezes em vão. 

Foi marxista? Não. 

Mostrou transformações históricas que redundaram na forma prisão de punir? Sim. De enquadrar? Sim.

Era favorável ao fim das prisões, escolas, hospitais (em especial manicômios), quartéis e fábricas?

Evidente que não! A sociedade moderna os "inventou" em contextos precisos, eles foram e são necessários ao nosso modo de governar, de gerir populações e da produção econômica, de educar, de curar.

Então, qual é o problema, por que a polêmica em torno a algumas de suas obras?

O incômodo que causam, o pôr o dedo em nossas feridas, em mostrar que no seu modo de funcionar muitas instituições carregam consequências. Em geral elas são postas para debaixo do tapete e seguimos em frente. Há filósofos que, como Foucault, pedem que as enxerguemos e, talvez, algumas lutas e reivindicações sejam feitas para melhorar, para modificar, para extrair benefícios às nossas vidas.

Em tempos sombrios, nada disso é feito. Pelo contrário, a aposta é em "quanto pior, melhor".

Tempos em que precisamos combater os imbecis. Eles podem ser violentos, como foi constatado. E não desistem...

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Fanáticos são um perigo para a democracia

 Para constar: um dia histórico pelo avesso da história, a da vergonha e desonra do país. A depredação do Palácio do Planalto, do Congresso e do STF será um dia marcado pelo obscurantismo, pela quebra da segurança, pela omissão, e, principalmente pelo fanatismo, como já escrevi neste blog.

O fanatismo é cego, irresponsável, mas tem um lado ainda mais perigoso, a sua tenacidade, a sua esperteza para insuflar e retirar-se de cena assim que for conveniente. Como agora é conveniente que o chefe esteja em seu retiro covarde, refestelado em Miami.

E os asseclas a convocar e pagar para o gado miúdo ficar exposto e ser eventualmente punido em seu lugar? 

Como é possível haver regozijo e gritos de vitória na invasão e depredação de bens públicos, de prédios que simbolizam valores e instituições?!

                                              

                                    Terrorismo, dia 08 de janeiro de 2023

Isso só foi possível porque responsáveis fizeram uma retirada estratégica, deixaram que o circo pegasse fogo e lavaram as mãos.

Entre os terroristas presos, havia pessoas que foram pagas, que foram aliciadas cujos rostos assustados eram visíveis nos ônibus que as conduziram às delegacias. Pode acontecer de os verdadeiros mandantes que, evidentemente, tinham por objetivo causar o maior dano e abrir a passagem para uma eventual tomada de poder pelas mãos dos militares, que estes escapem. Pior, prossigam com as notícias falsas e apelo aos quartéis.

Sim, a democracia esteve em perigo. É preciso firmeza, investigação e, mais do que nunca, que o novo governo, que o novo governante assuma a responsabilidade de governar para todos. Que deixe de lado comparações com a esquerda, como fez Lula. Não cabe neste momento nenhuma comparação, é um momento de ação, de firmeza, de esclarecimento e de punição.

O ódio, o desprezo, o fanatismo, a violência devem ser expostos, documentados, que os infiltrados sejam interrogados, fichados. A pergunta deveria ser: você que arrebentou, que destruiu, ensinaria o mesmo aos seus filhos, aos seus netos? 

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

O discurso de Lula sobre a desigualdade

 A visível emoção de Lula ao ressaltar as condições de desigualdade social e econômica foi um discurso demagógico, ele fez proselitismo?   

                                        


Seria mesmo inevitável esse tipo de apelo em seu discurso de posse, era mesmo isso que se esperava de um futuro governante preocupado com as condições de desigualdade em nosso país? Sim.

E por quais razões? A principal delas é a razão salvacionista. Todos fizeram errado, desde o descobrimento, e a prova são as condições de extrema pobreza e de extrema riqueza, muitos famintos e pouquíssimos frequentando restaurantes luxuosos; o pescador em sua canoa e o milionário em seu iate; as crianças nas escolas caindo aos pedaços e as crianças nas caras escolas particulares, e eu poderia ficar aqui tecendo as inúmeras condições desses polos que dividem a sociedade.

As causas da má distribuição de renda são históricas, culturais, sociais e econômicas. A má administração dos impostos, a dificuldade de adaptar e melhorar os mesmos, a corrupção, a inércia das prefeituras, o apadrinhamento político, a falta de iniciativa para encaminhar os problemas sociais, que sequer são diagnosticados, tudo contribui para a citada e tão propalada desigualdade. A que tipo de desigualdade Lula apelou? Para a econômica e social. 

Mas não haveria uma desigualdade mais aguda, mais profunda e que é relegada a segundo plano?

Sim, a da educação, da falta de saneamento, a precária saúde básica, e o pior, a falta de estudos, de diagnóstico acerca das dificuldades e de oportunidades de cada município. Os interesses políticos ficam em primeiro plano, idem as disputas, a farsa ideológica, e o puro e simples descaso.

Esse é um lado da moeda, o citado no discurso de Lula. Acontece que faltou ver o outro lado da moeda, o da impossibilidade de instituir a igualdade. Igualdade não se institui porque ela passa necessariamente pela liberdade de escolha, e esta liberdade de escolha é institucional, constitucional, jurídica, pessoal. Ditaduras, oligarquias, sociedades totalitárias, impõem ou uma absoluta desigualdade que submete todos ao pensamento único, ou uma absoluta igualdade que fere a liberdade, a iniciativa, e que transforma a população em um imenso exército obediente ao chefe.

As democracias modernas, constitucionais, legítimas prezam tanto a igualdade quanto a liberdade. Se a liberdade preponderar, o vale tudo prevalecerá. Se a igualdade preponderar, o pensamento único prevalecerá.

O difícil equilíbrio se dá com respeito às leis legitimamente instituídas, com a livre iniciativa baseada em princípios e regras que são transparentes e eficazes, com a base social educada justamente por um eficiente ensino básico, com as condições de saúde que permitem às crianças frequentar e usufruir do que as escolas devem proporcionar. E esses são deveres do Estado.

Então, não me convencem as comparações da desigualdade elencadas por Lula. Ninguém precisará chorar porque há escolas particulares de excelente qualidade e caras, sim muito caras. É preciso chorar porque o ensino público é ruim, precário, ineficiente.

O discurso foi sim, demagógico, Lula fez sim proselitismo.