quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Plenitude existencial

 Há momentos de satisfação e de contentamento, em geral porque alguma expectativa ou projeto deu certo, ou porque encontramos a solução para um problema, ou tivemos um encontro feliz e inesperado, entre muitas outras situações.

Mas a plenitude existencial é mais rara, não  é fugaz, não deve servir como moeda de troca, não é disponível como um produto, não está à mão, nem sempre é compartilhável, não se confunde com uma sensação de estar alegre e mesmo feliz. Em suma, não se preenche, pois tudo aquilo que se preenche pode ou será esvaziado mais cedo ou mais tarde.

A plenitude existencial é incompatível com a soberba dos que se consideram superiores a todos e a tudo, até mesmo com relação à natureza e às regras mais básicas de convívio; incompatível com o orgulho daqueles que jamais se voltam para si e reconhecem seus erros; com a insegurança que paralisa decisões; com a irresponsabilidade que delega aos outros ou ao acaso ações que deveria assumir. 

A fraqueza moral, a falta de coragem e de respeito provocam cegueira existencial que é justamente o oposto da plenitude existencial.

A plenitude existencial é uma atitude muito mais do que um sentimento. Uma atitude diante da vida e do mistério da vida, portanto, do mistério de ser, de existir e de não mais existir. Sim, justamente a morte, o não mais ser, o fim inevitável, inescapável, a consciência aberta, a mala pronta para sua partida agem como um alerta. O que não significa ater-se à morte, pois essa atitude imobiliza a ação, a responsabilização de que falávamos acima, trata-se de um negativismo doentio.

Então, que atitudes conduzem à plenitude? Pleno não significa saturado, cheio e sim satisfeito. Estar e ser aqui e agora, saber-se si mesmo, contentar-se com o simples fato de viver, de olhar, de contemplar por instantes os movimentos, as cores, parar e prestar atenção a sons, sentir-se íntegro com seu corpo, aquietar-se e entender o sentido que tudo tem para você. Assim refletir: isso basta...

E para tal não é preciso um guia, um mestre que diga a você o que pensar e fazer. Ser dono de sua decisões, poder encontrar-se e refugiar-se em si, mas não como se isso fosse uma prisão. Não somos prisioneiros de nós mesmos, cabe a cada um procurar sua própria libertação, e assim experimentar o sublime, acessar o inacessível, ir além, alçar voo e depois pousar,  repousar, tranquilamente.

É impossível alcançar o sublime e o inacessível enquanto a alma pertencer a si mesma: é preciso que ela se desvie de seu caminho habitual, se liberte; e que, mordendo o freio, arrebate seu cavaleiro e o faça subir a alturas onde jamais ele se arriscaria por si mesmo.

Sêneca in: "Da Tranquilidade da Alma"

PS: vale ouvir "Força Estranha" com a Gal Costa, letra e música inspiradoras.                           

                                              


                                                                      1945-2022                       

terça-feira, 15 de novembro de 2022

O livre pensar é mesmo ilimitado?

 O tema do momento é o do título, o pensar livre, ou, como nos debates atuais, a "liberdade de expressão". Há algum tempo atrás dava para abordar o tema de forma leve e irônica com a frase de Millôr Fernandes: "Livre pensar é só pensar".

Entre pensar e expressar vai uma enorme distância que apenas o uso da linguagem transpõe. E esse uso varia conforme o lugar, público ou privado; a situação, que acarrete ou não consequências e responsabilização; o meio, redes sociais ou canais jurídicos. 

Num bar entre amigos, você pode dizer o que bem entende? Evidente que não! No espaço de lazer e prazer, também há limites, por exemplo, a ofensa, a calúnia, a ambiguidade, ou o inverso, a deslavada bajulação, o fingimento. E tudo pode acabar em tapinhas nas costas ou brigas...

O mesmo ocorre nos grupos familiares. Convívio, amizade, troca de experiências, afeto que podem desandar a depender de uma questão mal resolvida, de segredos que vêm à tona.

O momento político e social trouxe para o campo jurídico a decisão do que é livre pensar, do que é liberdade de expressão. No centro disso, as redes sociais e as notícias fabricadas com explícita intenção de prejudicar, de atingir a honra, de manipular fatos, de tecer intrigas, de deixar no ar suspeitas, de forjar acontecimentos. 

E para onde essa rede de mentiras pretende levar, o que ela dissemina, o que ela cria? A aceitação sem verificar fontes de uma parcela enorme do público, as redes criam verdade, produzem guerra de informação e contra informação, vale tudo. 

A consequência mais polêmica foram as sucessivas tomadas de decisão por parte dos tribunais superiores, que se deram a missão de punir os disseminadores de notícias falsas, e de roldão punir conforme o que os próprios juízes decidem que seja prejudicial ou inverídico no tocante às eleições presidenciais deste ano. Isso é chamado de "arbítrio".

Certa ou não, uma decisão judicial tem o mérito ou demérito implícito. Cumpra-se.

                                                    ***

Acho que há um outro lado, digamos, filosófico e ético. Refletir, lado filosófico; o reto agir, lado ético. 

Do lado filosófico, o livre pensar só é possível por meio da linguagem. Então, é limitado por ela. Basta uma simples observação: "O que você quis dizer com isso?" É a linguagem usada para esclarecer a própria linguagem. E a resposta é um ato de fala, que esclarece, que compromete, que possibilita o diálogo.

Por isso mesmo a linguagem, ao responsabilizar o dito e aquele que diz, entra no terreno ético. "Eu afirmo tal ou tal coisa, sim, e me comprometo com a veracidade do que eu estou dizendo".

Ora, nenhum destes aspectos, o do dizer verdadeiro e autêntico, o do dizer responsável e comprometido valem no território político e dos influenciadores, nem nas decisões supostamente corretas de cortes de justiça. 

Como ficamos, então? Mal, muito mal, tanto pelas notícias fabricadas como pelo seu controle pelos meios jurídicos.


terça-feira, 1 de novembro de 2022

Guerra de ideologias

 Nada chama mais a atenção nos dias de hoje, não que isso seja unicamente questão da atualidade, o jogo das ideologias. Esquerda e extrema esquerda, direita e extrema direita se digladiam. Por que é impossível, ao menos de um ponto de vista filosófico sustentar uma ou outra posição?

Ideologia significa conjunto de ideias que são defendidas sem respaldo filosófico e nem científico. Seu respaldo é social e político. Ora, para haver fundamentação é preciso que um tipo de razão, de argumentação, de raciocínio, de análise pelo qual certa ideologia deveria ou poderia ser sustentada. Ou que a ideologia passasse por prova, experiência, que a corrobore ou que a falseie.

Então qual é a força que move uma ideologia? Se é um conjunto de ideias, valores, posições políticas, propostas partidárias, a base não é a da argumentação, e sim a da valoração de um conjunto de posições,  de preferências que impulsionam a ação política. A política por sua vez, é a trama da cidade, da polis, do poder. A modernidade (a qual nem todas as nações ou países alcançaram) é caracterizada principalmente pela liberdade de pensamento e de ação, pela responsabilidade cívica, pela representação legítima de seus cidadãos, pela independência e atuação dos poderes de legislar, de governar e jurídico, sob certa constituição, ela igualmente legítima. 

É neste âmbito social e político que as ideologias atuam. Partidos políticos com expressão, certamente não os nascidos de interesse pessoal ou para simplesmente acomodar grupos e personalidades, aqueles partidos têm um fundo ideológico. De que natureza é esse fundo? Ele se caracteriza por ser pró ou contra, por exemplo, ao papel do Estado, ao direito à propriedade, à preservação da natureza, à liberdade de expressão, à saúde pública, e outros tantos direitos e deveres. 

Mas, ao se defrontarem com a realidade social e econômica, as ideologias travam. Alguns exemplos: sistema bancário, indústrias de grande porte, mobilidade social, meios e sistemas de transporte, conservação de rodovias, implantação de parques, manutenção de museus e prédios públicos. Em nenhum deles há ou deve haver preferência ideológica. 

Já na educação, na arte, nos símbolos há escolhas, há valores e portanto, algum tipo de infiltração ideológica ou de postura explicitamente ideológica. Até que ponto as ideologias mascaram, até que ponto influenciam, até que ponto vale a pena lutar por certa ideologia?

Impossível responder devido à própria natureza das ideologias. Elas são máscaras que, de tão coladas impedem todo e qualquer juízo de realidade. Indefensáveis à luz da razão argumentativa, porém capazes de fanatizar, de cegar.  Véus de ilusão... 

 

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Sociedade esfacelada

 Habermas entende que as sociedades modernas se compõe de duas faces, uma formada e dirigida pela ação comunicativa e a outra formada e dirigida pela ação estratégica.

A ação comunicativa é a que sustenta o mundo da vida, o qual por sua vez se forma com o tripé: sociedade propriamente dita, cultura e personalidade. A ação estratégica sustenta o sistema, formado pelas relações econômicas que visam objetivos de ganho, de sucesso,  a lida com ocorrências, o controle da natureza. São ações que em geral não  requerem interação subjetiva.

Na ação comunicativa os atos de fala, a interação social, a possibilidade de validar o que se afirma, de sustentar valores, de respeito, ética, educação, cultura são permeados pela linguagem, pelos processos de entendimento, pelo diálogo argumentativo.

A modernidade se caracteriza pela progressiva "invasão" dos sistemas econômicos no mundo da vida. Os meios de comunicação se valem cada vez menos da ação mediada pela linguagem, a sociedade sofre um processo de instrumentalização que penetra a vida pessoal, a educação, os valores, a cultura e a ética. 

Nas sociedades modernas a comunicação fica crivada de mensagens da propaganda, com o uso massivo da capacidade de influenciar, de inventar verdades, de falsificar, de deslegitimar, de uso abusivo do poder em todas as esferas. Daí o titulo desta postagem, a sociedade esfacelada.

A distinção entre a ação validável, o saber compartilhado, os ordenamentos de valor, a formação da personalidade entraram no jogo do poder político e do poder econômico. Evidente que estes são parte necessária e fundante da sociedade. O problema, segundo Habermas, com o qual eu concordo, é que o mundo da vida (sociedade, cultura e personalidade) foi colonizado, foi cooptado pelo sistema político e econômico.

A modernização implica a expansão dos processos econômicos e administrativos, mas o que assistimos é a expansão e por vezes o aniquilamento da crítica, da fundamentação e busca de razões, do lema kantiano do esclarecimento, da responsabilização. O resultado é o uso do direito para coagir, a ética é neutralizada, quem se mostra mais e melhor nas redes sociais se impõe e impõe prestígio, e tudo e todos são vendáveis.

Esse é o quadro triste e caótico das eleições presidenciais de 2022, um Brasil polarizado, amedrontado, ameaçado de um lado e de outro. Na balança o voto que se mostre o mais responsável possível. 

Creio que a sociedade brasileira irá resistir às chantagens, às mistificações, às palavras de ordem da esquerda exacerbada e da direita desfocada.


sábado, 1 de outubro de 2022

O fanatismo X engajamento

 O fanatismo cega, distorce, adota o pensamento único, desinforma, visa a adesão sem possibilidade de contestação, de ouvir os outros lados, de respeitar o contraditório. A enorme diversidade de crenças, de posições políticas e partidárias se resumem a um só caminho, eu nem diria caminho pois o fanático não anda, não olha para o lado, acredita que a sua seita é a verdadeira, como se seita e verdade estivessem do mesmo lado.

O fanatismo mata, dias atrás matou uma jovem iraniana que se recusou a usar o véu. E esse é mais um dos problemas que mostra a gravidade do sectarismo: o seguidor deve ser fiel aos símbolos, à letra da doutrina se for uma religião, às obrigações e imposições, sem possibilidade de contestar pois o risco vai de uma expulsão até o castigo físico e moral. 

Os fanáticos tratam os outros como impostores, como infiéis, como inimigos. Se apegam a um livro considerado sagrado cujos "ensinamentos" devem ser lidos ao pé da letra. O que implica em negar toda e qualquer possibilidade de interpretação. Ora, entender, significar, interpretar e contextualizar formam a base racional, intelectual, mental da vida humana em sociedade. 

Esse obscurecimento da razão é que leva às perseguições, ao racismo, à violência, à violação dos princípios morais. São princípios inerentes à liberdade, ao direito à informação fidedigna, à formação educacional, ao direito de ir e vir. Como é possível explicar que sejam espalhadas notícias falsas, fabricadas com a intenção de ludibriar, de atacar? A explicação para quem está do lado racional é uma só, fanatismo, terror, miséria moral.  

O fanático segue seita, já o engajado segue ideias, propostas, causas. O engajado luta por suas ideias que são permeáveis, no sentido de serem comunicáveis, quer dizer, podem e devem ser contestadas ou validadas. O fanático não se comunica, ele se impõe e impõe regras, ele vocifera palavras de ordem.

O engajado discute com base em argumentos retirados da experiência, de visões de mundo, de um aprendizado cujas fontes foram a educação refletida, com valores, com princípios. E isso nada tem de burguês, de privilegiado, de elite. Educar e ser educado é um direito em sociedades abertas. O engajamento requer sociedades abertas, que respeitem direitos, aliás, que tenham estabelecidos esses direitos.

O engajado é livre, pois suas ideias e propostas nasceram da argumentação, do conhecimento, da participação.

O fanático é escravo de suas paixões, não pensa, só reage.

Problema: como enfrentar um fanático se ele se recusa a pensar?!

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

O lugar da Filosofia na cultura atual

 A Filosofia na cultura atual, e me refiro ao Brasil, ocupa um espaço ínfimo, aliás, isso não é de hoje. Restrita a seminários, depois passou a ser ensinada nos cursos de Filosofia e a maioria de seus professores vinha desses seminários. 

Havia um caminho a ser percorrido que era o da Filosofia Cristã nas disciplinas de Ética e Metafísica. A História da Filosofia ocupava o centro, depois vinham a Lógica e a Teoria do Conhecimento. 

Aos poucos outro caminho foi surgindo, dessa vez a influência foi a do marxismo, a filosofia passou a ser um tipo de doutrina a ser passada para alunos que deveriam ser os futuros divulgadores daquelas ideias e projetos para a sociedade. E esse caminho vingou, em particular nas universidades públicas. Havia uma verdade, a de luta social, a do avanço da ideologia marxista, sua propagação e, mesmo com o declínio do comunismo na Europa Ocidental, os modelos soviético e chinês faziam a festa e a cabeça dos assim chamados "engajados". 

Será que o lugar da Filosofia seria esse? Engajar, doutrinar, arrebanhar para uma futura revolução política?

A mais evidente e poderosa razão para discordar desse projeto é a de que a Filosofia não é um projeto político, aprender e ensinar filosofia está muitíssimo longe dessa missão. O principal argumento dos que defendem aquela missão salvacionista é de que há necessidade de tomar partido, que não é possível neutralidade, que em nossa sociedade capitalista, há um mal social a ser extirpado, o da opressão do capital sobre o trabalho, em que há o domínio de uma classe que tudo possui sobre uma classe que nada possui, de que a propriedade privada gera a desigualdade e assim deve ser eliminada.

Falta visão histórica, das mudanças históricas e econômicas na relação capital/trabalho, o papel do avanço tecnológico, do mundo super conectado e informado, transformações que mudam o quadro geopolítico mundial.

De modo tal, que sustentar um discurso político de determinada e muito influente corrente, eu não diria de pensamento, e sim de ideologia, indica pobreza de pensamento. O discurso ideológico não conduz a pensar e a refletir, pelo contrário, ele serve para engajar. É um discurso monolítico que não admite o contraditório. 

A Filosofia tem um papel e um lugar na cultura e se esse papel for reduzido a uma só escola filosófica, então a razão, o pensamento, a reflexão, o questionamento de conceitos, a própria história da filosofia desde os pré-socráticos até a nossa época, isso tudo perde o sentido. Se há uma só doutrina, uma só escola com direito à verdade, o pensamento filosófico se reduz à repetição, a uma oratória vazia e esquelética de ideias. O pensar fica comprimido, se esvai.

A história passada e a do presente podem ser fonte de análise filosófica. Mas o projeto de engajamento ideológico decorre da adesão partidária o que para a Filosofia significa não mais precisar pensar: filosofia e partidarismo se excluem.

O lugar para a Filosofia na cultura atual se afirma, se confirma, se dá devido à abertura que o tipo de reflexão filosófica proporciona. O estudo e a análise do pensamento filosófico fornece as chaves que abrem as portas do saber. E os grandes filósofos são a rica fonte desse saber. 

Infelizmente há um grande vazio de ideias e de filósofos dignos do nome no Brasil. Talvez por isso o discurso ideológico ainda persiste, e com ele a Filosofia se empobrece, infelizmente.

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

A carta de Wittgenstein a John Maynard Keynes

A vida simples e inteiramente despojada, a renúncia à fortuna paterna, o retorno da guerra na qual fora feito prisioneiro, e sem falar na personalidade arredia, ao mesmo tempo artística e com uma brilhante inteligência lógica e matemática -, esses fatores combinados o levaram a se inscrever como professor primário. Sucederam-se aldeias na Áustria, Tratenbach em 1921 (onde recebeu a notícia da morte de seu amado Pinsent), depois de uma rápida passagem por Hassbach, em 1922 se torna professor de escola rural em Puchberg.
O Tractatus foi publicado, recebeu resenha que circulou com repercussão em Cambridge para onde Wittgenstein retornou nas férias de verão. De volta a Puchberg finalmente recebe uma resposta à carta que enviara a John Maynard Keynes um ano antes (!). Este, famoso economista, era um dos expoentes da intelectualidade inglesa. Talvez movido pelo sucesso acadêmico do Tractatus, finalmente responde com atraso à carta de Wittgenstein convidando-o a voltar para Cambridge. Escreve que Wittgenstein teria para seu dispor de 50 libras inglesas. A carta de 29 de março de 1924 começa com um pedido de desculpas da parte de Keynes, que ele teve dificuldades para entender o Tractatus e essa foi a justificativa da demora em responder...
4 de julho de 1924 é data da resposta de Witgenstein, que agradece o envio do livro de Keynes ("The economic consequences of the peace"), mas afirma que não é de sua área a economia, e que ele não compreendeu quase nada (natürlich wie nichts verstehe) e também pelo dinheiro. Mas, quando pensa no que pode usar e como passar esse tempo na Inglaterra, se põe a questionar. O que faria ele na Inglaterra, bastaria ir até ele, Keynes, e ainda correr o risco de dispersar-se? E mais, ele iria apenas para parecer "nett", bem? E que "não que não valha a pena ser bonzinho (nett), quando ele apenas poderia realmente ser bom, ou vivenciar algo melhor, se algo realmente muito melhor houvesse". 
E prossegue, ficar dois dias tomando chá com o senhor ou algo parecido, e ver que em minhas férias eu me transformaria num fantasma. Ainda assim seria melhor do que passar um mês sozinho em Viena.
E o melhor vem no parágrafo seguinte:
Fazem dois anos que não nos encontramos, não sei se o senhor mudou, mas eu mudei, e que infelizmente não estou melhor do que antes, e sim que estou diferente. (...) Diz que "o encontro entre eles teria algumas horas sem que o objetivo fosse alcançado e o resultado do encontro seria decepcionante e desgostoso para ambas as partes". "Se fosse para ter um trabalho determinado, fosse como varredor de rua ou para limpar as botas de um joão ninguém, então eu iria para aí com grande alegria, e então o senhor teria a bondade (Nettigkeit) com o correr do tempo por si mesma ajustada."
Esse termo "Nettigkeit" pode também ser traduzido por limpeza, penso que também por acerto, ou tudo certinho, de acordo com o protocolo. 
Claro está que a ironia e um pouco de amargura se deixam notar nesta carta. E ainda o temperamento arredio, a necessidade de isolamento. 
Quando retornou à Inglaterra foi reconhecido como gênio da filosofia. Outros escritos viriam e a história da filosofia só teve a ganhar. A carreira de professor primário se encerrou e a de varredor de rua nunca começou!
In: Zeit der Zauberer, Wolfram Eilenberger

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

O que é hipocrisia e como se distingue da mentira e da falsidade.

 Mentira, falsidade, hipocrisia, como eles se opõem à verdade, e a que tipo de verdade?

A mentira pode ser rastreada e até mesmo facilmente descoberta. Com os recursos das redes sociais, com a possibilidade de esconder-se no anonimato e esperar para ver o estrago feito, a mentira se "popularizou". O mentiroso acaba por acreditar na própria mentira, e pior, ele dificilmente é desacreditado, permanece enviando mensagens falsas, prejudica pessoas, instituições e cria uma atmosfera de desconfiança, de descrédito. Mas é sempre possível confrontar o mentiroso, em geral ele se acovarda diante de revelações, quando exposto ao público.

Em quem e no que podemos confiar, nos perguntamos. Na imprensa, nos telejornais, na autoridade constituída? Como surgiram e por que razões se constituíram os tribunais? Defesa, ataque, provas, "provas" forjadas, a retórica de advogados e promotores, os infindos recursos jurídicos, este é o palco da verdade que se vale do poder dos discursos, do melhor preparo jurídico, e da distribuição de penas e castigos. Em nossa sociedade a prisão, na qual se encontram o pequeno delito, crimes contra a vida, mas nela não estão os delitos talvez mais prejudiciais à sociedade: o delito financeiro, os poderosos traficantes e milicianos.

falsidade é a mentira que se disfarça, que não pode ser esclarecida. Diversamente da falsidade dos enunciados lógicos e científicos, nos quais as regras lógicas, empíricas e linguísticas são comprováveis, verificáveis pois em relação direta com fatos e com a verdade de tipo lógico/científico,- a falsidade moral, social, e presente nas relações pessoais tem duas faces. 

A falsidade está mais próxima da hipocrisia do que da mentira. Lobo em pele de cordeiro, o falso sabe manipular, gosta de fantasiar, de contar vantagem, usa de todos os meios para prosseguir no seu fingimento, tem prazer em usar máscaras e não se abala. Para o falso não há do que se arrepender, nem do que se desculpar. Ele não é agressivo, pelo contrário, fala mansa, olhos nos olhos, ele se esconde atrás da cortina opaca e ao mesmo tempo leve de seu mau caráter.

E a hipocrisia talvez seja o defeito moral mais insinuante, mais pegajoso, aquele que se vale da duplicidade e, por isso, mais difícil de ser desafiado e descoberto. O hipócrita reza, mas não crê; se proclama seguidor fiel de leis, regras e normas sociais, mas na prática as burla sem o menor constrangimento. Aliás, ficar constrangido, sentir algum tipo de culpa, se reconhecer responsável e assumir responsabilidade pelos seus atos, não é com ele. Seu discurso muda conforme o seu público. O hipócrita sabe como ninguém bajular, aplaudir na frente e atirar pedras por detrás.

Como reconhecer e desmascarar o hipócrita? Ir a fundo nas questões a ele colocadas, até que as contradições venham à tona. 


sexta-feira, 22 de julho de 2022

A incrível diversidade humana

 Somos todos pessoas, quer dizer, nós humanos não apenas somos um corpo com os mesmos caracteres transmitidos geração após geração. E como pessoas que vivem em sociedades, países, cidades, campo, montanha, ilhas, locais ermos, locais apinhados de gente, as nossas peculiaridades também variam enormemente.

O que me fez pensar nisso, que é bastante óbvio, foi uma série documental da Netflix sobre os super ricos que moram em Los Angeles. São chineses e seus descendentes que adoram, que cultivam, que valorizam unicamente a sua própria riqueza. Quanto mais exposição, mais sinais de muito dinheiro e muito gasto em tudo o que é sinal exterior de super milionários, melhor. Neste reality show vale tudo para aparecer, desde comer trufas banhadas em ouro, até os carros, as mansões, iates, e compras de joias e roupas. 

Eles não conversam de fato, para realmente se comunicarem, as agressões mútuas são veladas, as fofocas são alimentadas, a vida é feita de luxo.

                                            


O mais impressionante é seu total desinteresse por uma causa, por política, pelo bem alheio, por olhar um pouco além de seu próprio conforto, gastança e superficialidade. A nulidade moral e ética fica evidente a cada vez que um personagem senta em um tipo de trono para desabafar o que pensam uns dos outros.

Viver assim fantasiados e deslumbrados para eles mesmos, está bem. Ninguém questiona nada, só se importam consigo mesmos. O único descendente de chinês que contrasta com seus "amigos" em termos de super rico, almeja entrar para o círculo super restrito.

Por que abordar esse reality? Pelo enorme contraste com as ruas que saem de Beverly Hills em direção à periferia de Los Angeles, ou um pouco mais longe, as ruas apinhadas de gente em barracas, em total insalubridade, e são a última ponta do consumo de drogas pesadas.

                                               


O que fazer? Mostrar essas situações extremas, expor, interessar-se, refletir. O mal é o capitalismo, é ele que gera injustiça social, lucro, etc. etc.? Essa é uma cortina de fumaça, conveniente porque fácil e mostra engajamento, mas pobre em sua análise. Afinal, é o capitalismo chinês, a ditadura comunista chinesa que pariu o restrito grupo de milionários que vive nos EUA. Na outra ponta, em Nova York, vivem em Chinatown chineses que não conseguem o visto, que lutam para sobreviver, que moram em péssimas condições...

Não há uma saída única e as portas de entrada são múltiplas. O descrito acima é apenas um exemplo, o planeta todo é eivado desses contrastes, dessa diversidade. 

sábado, 25 de junho de 2022

Ética dos atos de existência, o último suspiro de Foucault

 Em seu derradeiro curso no Collège de France, Foucault elabora aquela que seria a sua ética, em tudo contrária, por exemplo, à rigidez formal da ética kantiana do dever. Enquanto Kant lança mão da razão, da razão prática com suas exigências de seguir procedimentos impossíveis de não serem seguidos, como o de tornar sua vida um modelo universal, em clara oposição, Foucault defende a particularização, a modulação dos atos impulsionados pela coragem de dizer a verdade.  

                                                


O curso de 1984 A coragem da verdade, 2o. tomo, "O governo de si e dos outros", é uma proposta de seguir outro caminho além daquele da filosofia tradicional, a filosofia tal como a conhecemos em sua busca de princípios que podem ser convalidados, para uma filosofia voltada para os atos de existência autênticos, que rompem com os princípios do logos e da razão para outro modo, o das manifestações da vida. Nisso reside a novidade apresentada no curso, com os exemplos do cinismo. Foucault ressuscita o cinismo de seu limbo histórico e mostra que, apesar de raros textos, mais narrativas de outros filósofos, a vida cínica tem algo a dizer, ou melhor, a mostrar. A vida verdadeira, a do cinismo na visão de Foucault.

Problema: mas que verdade seria essa? cuidar de si, a exemplo de Sócrates e ir além, levar uma vida de cão, quer dizer, de autenticidade, despojamento, crua, com sua existência inteiramente exposta, sem vergonha no sentido de sem falso pudor, sem falsa modéstia, sem esconder-se. 

A vida filosófica tradicional se fundamenta na busca da verdade cuja fonte é a razão, com seus argumentos, com a exposição à crítica, bastante impessoal, de estilo cartesiano, kantiano, formal, que pode e deve passar pelo crivo da verdade racional.

Para a outra vertente, a da vida no modelo socrático, a vida filosófica requer preparação, ocupar-se com as coisas essenciais, com o cuidar de si mesmo, praticar aquilo que se prega (a exemplo de Sócrates) e algo mais, que Foucault afirma encontrar-se apenas nos filósofos cínicos, que é mudar a moeda, seguir o ensinamento oracular. O que significa falsificar a moeda ou mudar seu valor. Dão-se mal os que falsificam, e dão bem aqueles que transformam, que mudam o valor da moeda em algo proveitoso, uma reavaliação (Nietzsche ?), conhecer-se a si mesmo vale para poder mudar, quebrar regras, satisfazer-se com o básico tal como Diógenes que se considerava como um cão. O termo "cinismo" é relativo a cão.

Seria uma ética de enfrentamento, de coragem, vida que se joga, independente: 

...ela é também a continuação e o retorno desta vida tranquila, senhora de si mesma, desta vida soberana que caracteriza a verdadeira vida (p. 225).

Os princípios filosóficos tradicionais seriam transpostos para novas vidas, o dizer-verdadeiro levado para a vida cínica que dá à moeda outro valor; este seria um ponto importante na história do cinismo, na história da filosofia e certamente na história da ética ocidental (p. 226).

segunda-feira, 6 de junho de 2022

A importância da autonomia

 Vivemos um tempo de certezas absolutas compartilhadas nas redes sociais. Não se admite o contraditório, todos e cada um querem ter razão, há uma total ausência de diálogo, de argumentação fundamentada, ninguém pesquisa fontes, não se dá a justificação de suas afirmações ou negações, sempre peremptórias, e isso tudo passa a valer como se fosse válido, verdadeiro. Há todo tipo de perseguição, de anulação, castração moral. A fama é baseada nos likes, e ainda há os influenciadores, os tutores por excelência das mídias. Mas o que influenciam eles ou elas? A colocar cílios, unhas, o último modelo de vestuário? Qual música curtir?

O que lhes falta? Faltam valores, entre eles o sustentáculo dos valores, a autonomia, o livre pensar, a vontade de ser si próprio, educação consistente, franqueza, ousar ser a pessoa característica, quer dizer, que se assume como tal, com suas escolhas e sabedora das consequências de suas escolhas.

Ser autônomo é justamente o inverso de ser autômato, responder apenas a estímulos como se fosse um robô prestador de serviços.

Perguntas a se fazer:

O que eu quero, o que eu posso, o que eu faço, como eu faço, onde quero chegar, quais são as minhas motivações, o que me levou a ter tal ou tal atitude, quais são as razões alegadas para minhas escolhas, não estaria me enganando? O autoengano leva a passar uma borracha nas perguntas que deveríamos fazer a nós mesmos e vestirmos máscaras, andarmos na superfície, irmos de um ponto a outro por mero impulso, buscarmos satisfação no que adquirimos, no que acumulamos como se o copo ou o prato pela metade estivessem sempre vazios. Sente-se a falta, o vácuo, e isso precisa ser preenchido rapidamente e com banalidades.

A falta de autonomia é igualmente a falta de questionamento, de aprofundamento do que realmente importa. Não enxergar-se, ou melhor enxergar apenas o manto que encobre seu próprio ser.

O cuidado de si, essa é a mensagem socrática do cuidar do que realmente importa, sua alma, sua psuchê, seu interior. Cultivar essas possibilidades que a busca interior proporciona é tarefa árdua, difícil especialmente para aqueles que não entendem o significado e quais são as implicações da autonomia. Auto=si mesmo; nomos=lei, regra. Você como senhor (a) de si.

sábado, 7 de maio de 2022

A pobreza intelectual do marxismo

 

Grande parte de chamada intelectualidade e vou me referir apenas ao Brasil, ainda usa como chave de análise da sociedade e da história, o marxismo. É isso mesmo, Marx, o combatente teórico do capitalismo e suas teses referentes ao século 19. Os textos marxistas servem para apoiar todo tipo de crítica à sociedade industrial e não levam em conta as radicais transformações que o avanço científico e tecnológico proporcionou, que houve duas grandes guerras, que o jogo de forças internacional se polariza, que entre oriente e ocidente há disputa pela hegemonia, que países pobres e países ricos não devem sua riqueza ou pobreza devido à luta de classes! A realidade história, social e econômica, a ordem mundial tem características simplesmente ignoradas pelos defensores do socialismo marxista. 

E isso porque grande parte da intelectualidade é batizada nos cursos universitários e de modo especial nos cursos de ciências humanas com as ideias e com a ideologia de esquerda e seus chavões: luta de classe, desigualdade, o capitalismo como fonte de toda miséria e injustiça social, as teses de uma classe social de opressores e outra de oprimidos, capital e trabalho. Essa divisão é aplicada ao todo da sociedade, mas não leva em conta mudanças revolucionárias da globalização, das necessidades de fontes de energia, das inúmeras e diversas ocupações, dos negócios, das transações internacionais, da evolução nos meios de transportes, da comunicação total. Não analisa os contrastes enormes entre centro e periferia (que nem de longe lembram lutas de classe!); nas dificuldades do pequeno produtor rural e nas dificuldades que também o grande produtor rural enfrenta e suas causas; em como lidar com o perigo permanente do tráfico internacional; como incentivar a arte e a cultura; como melhorar a qualidade do ensino e proporcionar um ensino de pelo menos média qualidade aos rincões do país.

Enfim, o tão desgastado conceito de contradição não é aplicável automaticamente entre classes sociais, nem o capitalismo é o mesmo opressor que sujeitava trabalhadores às condições degradantes de fins do século 19 inícios do 20. Trabalhadores são todos os que operam máquinas, computadores, que varrem as ruas, que pesquisam em laboratórios, que cortam e penteiam, que operam nos caixas, que realizam tarefas burocráticas sem fim. Impossível reduzir todo o amplo leque de atividades sociais, econômicas, educacionais, científicas, tecnológicas a modo de produção capitalista. E ainda há o tráfico de drogas, corrupção nas pequenas e grandes empresas, uma guerra cruel e injustificada se arrasta nas fronteiras da Europa. E por cima de tudo, como coroamento, os governos. Ah, os governos e suas instituições! Alguma análise marxista cabe em uma simples tomada de visa de um município, seu prefeito e vereadores, o sistema eleitoral, e subindo na escala do descalabro público, governantes e seus asseclas, o jogo político dos interesses -, o que isso tem a ver com oprimidos X opressores?!

O planejamento de uma cidade, trânsito, melhorias urbanas, acidentes, o que isso tem a ver com oprimidos X opressores?

A recente pandemias e suas trágicas consequências, o que isso tem a ver com oprimidos X opressores?

Infelizmente a pobreza intelectual de grande parte do ensino, contaminada pelos chavões marxistas, insiste em permanecer na ignorância, na facilidade do esquematismo, na ideologia que dá ares de justiceiro a quem dela faz uso. Intelectuais deveriam ser pensantes, analíticos, abertos à realidade e suas transformações. 

Infelizmente as críticas à ideologia esquelética da esquerda partiram da ideologia militarista da direita, o que veio a dar fôlego aos marxistas. O caldo entornou de vez... A distância entre a realidade e suas inúmeras facetas se aprofunda com o encobrimento político/ideológico dos extremos esquerda e direita. 

O pouco espaço para o pensamento sério, fundamentado, propositivo precisa com urgência se alargar. 

segunda-feira, 11 de abril de 2022

Por que e para quem vivemos?

 A questão do sentido da nossa existência é das mais cruciais e enigmáticas não só da filosofia, mas também das religiões e do próprio íntimo de cada pessoa.

Em uma redação da aula de português do longínquo ano de 1967, no Colégio Estadual do Paraná, citei uma frase de Sartre (alguém ainda se lembra dele?) sobre o vazio, o sem sentido, a sensação de náusea de um personagem: "Nascemos sem razão, nos prolongamos por fraqueza e morremos por encontro imprevisto". O professor que era católico fervoroso, excelente pessoa e mestre, ficou perplexo. Como assim? Uma garota de 17 anos descrente, cética? A vida tem sentido, nos preparamos por meio da fé para uma boa morte, para a vida eterna. Tudo o que fazemos é uma construção de nossa personalidade, do amor à família, da dedicação aos outros, da prática de virtudes, de realizações no trabalho, na comunidade e na sociedade.

Hoje tendo a concordar com parte dos argumentos de meu professor, e sei que a atitude filosófica que provoca a sensação de "néant", de nada, de sentimento abissal, aflora para muitos e por vezes predomina. Muitas vezes recebe diagnóstico como quase tudo em uma sociedade que, como na visão de Foucault seria "medicalizada" e na qual chamaríamos àquelas sensações de depressão.

Enfim, se a pergunta acima for feita a diferentes pessoas, de sexo e idade diversos, em camadas sociais e econômicas igualmente diversas, as respostas e os sentimentos irão variar. Pergunte a um ucraniano em seu país destroçado; pergunte a um doente terminal, a um morador de rua, a um ativista de direitos humanos, a políticos engajados, a políticos fraudadores, corruptos e teremos respostas surpreendentes ou não!

O papel da Filosofia é indagar sobre o geral, o universal, o duradouro, o conceitual. As particularidades e idiossincrasias são consideradas como pertencentes a um todo, o de nossa vida em geral. Mas se recuarmos até Platão, a questão não é sobre o sentido da existência e sim sobre o que nos leva a pensar, o conceito, as ideias, como definir, como delimitar a própria reflexão.

Se olharmos para um Descartes, o ego, o pensar, o logos são aquilo a que um filósofo pode chegar, em última análise. E assim, por diante, o filósofo abstrai, mas não pode extrapolar a condição humana.

 E para quem vivemos?

A vida faz sentido sempre que se considerar o outro, nossos pais, filhos, irmãos, amigos, os que nos são próximos, nossas fontes de alegria, também de tristeza, enfim, os relacionamentos que importam, pessoas queridas que iluminam nossos dias.

Que tal sair um pouco das redes sociais, da constante exposição e mesmo exibição de tantas particularidades e atos os mais corriqueiros e passarmos a olhar para dentro de nós, olhar diretamente para os que nos são caros?

E isso sem que este tipo de comunicação fique de lado, porém com um uso mais profícuo, que faça realmente sentido. 

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Hoje ninguém mais se senta em um banco de praça e estranha a raiz de uma árvore, com a sensação de náusea, como o personagem de Sartre no livro acima citado que traz esse mesmo nome, "Náusea". Náusea não passaria de uma indisposição de estômago... Ai de nós, pobres mortais!

sexta-feira, 11 de março de 2022

O que é forma de vida para Wittgenstein?

 Linguagem e formas de vida são interligadas para Wittgenstein. A linguagem é aprendida, não é privada, e a mente resulta do aprendizado da linguagem imbricada com nossas formas de vida. 

Importante entender que forma de vida não é um conceito sociológico. Em cada situação concreta da vida humana em todo tempo e lugar, há incontáveis usos da linguagem que são interpretados em conformidade com aquela determinada situação. 

Faz sentido medir a circunferência de um girassol? Depende...Faz sentido medir o comprimento de uma mesa? Quando é o caso de medir algo ou não? Definir uma esfera e utilizar a forma esférica em um desenho são usos muito diferentes. Se não houvesse entendimento a respeito dos inumeráveis usos da linguagem, i. é, os jogos de linguagem, não haveria vida humana, a ação não se desenrolaria tendo em vista acordos ou desacordos, planos para o futuro, intenção, decisões, enfim, as ações humanas são inteiramente permeadas pela linguagem. Pode ser linguagem visual, a de gestos, a leitura de signos e símbolos, o ver uma imagem como pato ou lebre, como uma cunha para prender portas ou traços de um triângulo. 

E aquilo que não faz sentido algum? Seria o não sentido algo como ver, como ler os traços de um Picasso, ou as tintas esparramadas de Pollock? Diferente do sentido e do deleite estético que a plasticidade de formas e cores de um Vermeer produz. 

Outra situação: a compreensão que deve ser exata, sem interpretação de placas de trânsito. Compare com os usos dos atuais emojis. Como diz o poeta, e se faço chover com um ou dois riscos tenho um guarda chuvas.

São construções, invenções, infinitos recursos de nossas formas de vida, são comportamentos aprendidos.

É justamente essa postura filosófica horizontal de Wittgenstein, que Habermas critica. Se pensarmos na herança kantiana, essa redução a formas de vida permeadas e constituídas na e pela linguagem, é  uma redução inaceitável do ponto de vista filosófico de busca pelas razões, pelas causas, pela unidade, pela formas puras, pelo a priori. Habermas considera que a redução ao uso,  às atividades cotidianas representam um tipo de utilitarismo, pensamento e significado não passariam de atividades normais de nossas formas de vida. 

Essa concepção de Wittgenstein de que é impossível pensar sem a linguagem inaugura a virada linguística e igualmente a virada pragmática e encontra ressonâncias em Rorty e no próprio Habermas. A diferença é que para Habermas, mesmo ele sendo adepto do chamado pensamento "pós-metafísico", a linguagem não pode ser destituída de validade intrínseca, quer dizer, há atos de fala compromissórios. Uma promessa difere de uma constatação, a primeira pode ter consequências até mesmo jurídicas, ao passo que uma constatação exige a prova de realidade. 

Para Habermas os problemas e questões filosóficos não podem ser reduzidos às situações e circunstâncias do cotidiano, há a normatividade e a validade que estão num patamar indissolúvel.

Wittgenstein considera que ideal, exatidão, mistério, formas puras a priori são construções que fazem sentido para nós, para nossas formas de vida.

E para você, o que faz sentido?

quarta-feira, 9 de março de 2022

"As mulheres estão praticamente integradas à sociedade" : como assim, Sr. Presidente?

 Além de uma falsa e preconceituosa afirmação do título, é igualmente reveladora da falta de conhecimento sobre a própria história humana. É absurdo considerar que as mulheres estivessem em algum momento da história, fora da sociedade. Para o atual e ignaro presidente, as mulheres não faziam parte da sociedade e só no atual momento começaram a se integrar! E que dizer do advérbio "praticamente"? Será que ele no fundo quer dizer: "ah, vocês mulheres, não reclamem pois estão praticamente integradas" (afinal até votam!!!). Não precisam exagerar e queimar sutiãs, reivindicar direitos proporcionais no trabalho, dividir tarefas domésticas e da educação dos filhos, e muito, muito mais, pois vocês estão praticamente integradas. 

O que fica evidente? Falta de conhecimento social, cegueira histórica, ignorância do que constitui a sociedade. 

Na sociedade sempre houve um lugar e um papel femininos, funções que variaram e variam a favor ou contra a emancipação e o respeito. Basta um olhar mais atento para a história e os acontecimentos históricos. Nas sociedades antigas seu papel era restrito à casa, a submissão nas sociedades patriarcais, até a lenta e difícil conquista de direitos civis, um ganho do mundo ocidental. Apesar disso, ainda hoje as mulheres sofrem muitas restrições na Índia, países árabes e africanos. Essas restrições e proibições são impostas às mulheres como se fosse algo normal, natural ao sexo feminino.

O que eu quero dizer com isso?

Que muito precisa ser conquistado. O que não significa que as mulheres estivessem fora da sociedade humana. Pelo contrário, serem desprezadas, relegadas, humilhadas, sujeitadas são condições da sociedade desde tempos imemoriais. O respeito necessário às mulheres e a suas conquistas, faz parte das transformações da sociedade, o avanço nessas conquistas é também um avanço social.

                                                   


Bolsonaro sofre de um problema gravíssimo, falta-lhe a perspectiva histórica e da sociedade, falta-lhe conhecimento da situação da mulher na história e na sociedade. Mas isso evidentemente é pedir demais.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

A gratuidade do ser

 Dias atrás, num canto da pista de caminhada, deitado à sombra encontrava-se o sujeito. Moreno, jovem, bonito, com seus apetrechos de morador de rua e seu companheiro, um cachorrinho preto. O olhar perdido ao longe, à vontade, em repouso. Com uma das mãos acariciava a orelha do cachorro, o gesto vagaroso e repetido os unia no prazer relaxado e gratuito. Simplesmente ser aí, no tempo sem pressa, sem cobrança, sem que ele devesse absolutamente nada a ninguém.

Para ser aí, para existir no tempo, é preciso que o tempo seja usufruído e, paradoxalmente, o tempo é dominado e como que cessa. Agarrar o tempo, dispor dele se dá num presente. O presente não como soma, como adição de instantes e sim como lapso, como mergulho silencioso e calmo, o lento passar dos dedos na orelha do cachorro. Vale respirar o perfume de uma flor, sentir o vento nos cabelos, o sol nas costas e deter-se no momento, ganhar a completude, e, em raras ocasiões uma epifania, uma revelação, a harmonia.

Nos primeiros lampejos dessa identificação de um todo, de uma totalidade de ser que nasce de uma particularidade de cada ser humano brotam arte, música, poesia, eternidade, infinito, e a certeza do fim.

O não ser, a morte, o fim que se deseja afastar e negar nos pertence, nos limita necessariamente, mas ao mesmo tempo nos conduz àqueles momentos de prazer que passam por nós e se acabam. O efêmero emerge nesta clareira do ser que o homem abre, à qual ele pertence (Heidegger), e isso é mágico, misterioso, indecifrável. Somos e não somos. 

Quais situações da vida, muitas delas banais e corriqueiras são capazes de nos fazer mergulhar no tempo?

Atravessei a rua de casa, dei alguns passos e fui surpreendida pelo abraço de um pequenino ser. A mãe dele sorriu e disse que o menino me confundiu com a avó verdadeira. Uma surpresa neste gesto que faz pensar, e se pudéssemos abraçar mais? E se pararmos para acariciar a orelha de um cão? E se ouvíssemos mais e melhor?

Ah, mas aquele rapaz deitado no gramado do bosque não tinha deveres e nem responsabilidade. Pode ser, mas isso não elimina a magia do momento.


domingo, 6 de fevereiro de 2022

A diferença entre razão e fé

A Filosofia nasceu quando os primeiros pensadores questionaram a causa de tudo o que há. A busca por uma causa única significa que a curiosidade do saber só é cumprida se houver um princípio unitário, causa matriz de toda a enorme diversidade de todos os seres. Assim, os primeiros elementos, água, fogo, ar, e mesmo o indeterminado, e o puro e abstrato número foram eleitos como princípios geradores.

O que há por detrás desses princípios? A noção de começo, a noção de origem que resulta de uma busca racional. Ao passo que entidades como Zeus ou outros mitos, Deus para os cristãos são venerados, a eles se prestam sacrifícios, neles se crê, se tem fé.

A razão é uma via diferente da fé e das crenças para responder à necessidade de dar sentido ao todo. Mas, e Platão? Sim, Platão carregou seu sistema filosófico com mitos, a cultura grega era imbuída e alimentada pelos mitos, a religião fazia parte da casa, da cidade, dos costumes. Platão refletia usos e costumes, os mitos serviam à reflexão filosófica.  Então, o afirmado acima, que razão e fé diferem se sustenta?

Apelo para Nietzsche e Heidegger:

Nietzsche como que se compõe com Zaratustra, mas, para Nietzsche Zaratustra não é alvo de fé, vale como poesia, como música, como aliado da expansão das raízes filosóficas. A figura de Zaratustra é resgatada para compor a sinfonia filosófica. A dança, a eternidade, o mistério, o abismo: "Eu, Zaratustra, o confirmador da vida, o confirmador da dor, o confirmador do círculo, chamo-o a você, o mais profundo dos meus pensamentos". E aqui se tem filosofia, os últimos elementos, conceitos que são objeto de análise existencial e do tema central de Nietzsche, a vida. O filosofar lança mão da poesia, da literatura, dos seres míticos e os realoca, e dá-lhes sentido, leva à reflexão. 

E como entender Heidegger em suas buscas de elementos para filosofar nos pré-socráticos e na tragédia grega? Heidegger possibilita uma via para solucionar o impasse, filosofia é questão de razão, religião é questão de fé. Em "A delimitação do Ser" as distinções entre ser e vir a ser, entre ser e aparência "impregnam todo saber, dizer e fazer do Ocidente mesmo quando não se exprimem especificamente  ou nessas palavras", e se configuraram no início da filosofia grega, sendo distinções e conceitos primordiais são também as mais usadas, reflete Heidegger. A delimitação entre ser e pensar iniciou-se com Platão e Aristóteles e foi desenvolvida na época moderna, e a distinção entre ser e dever é própria da época moderna apenas.

Nietzsche e Heidegger ajudam a entender a distinção entre razão e fé, racional e místico em seu apelo, o primeiro, à tudo o que diz respeito à vida, e religiões, literatura, poesia, música fazem parte da vida.

E o segundo, Heidegger, soluciona o impasse ao situar a questão na história do pensamento, na história da filosofia. Devemos aos primeiros filósofos as distinções e conceitos fundamentais da filosofia. O fato histórico de a cultura grega imbuir-se de narrativas míticas não impediu a filosofia de nascer, pelo contrário, a cultura grega foi seu berço.

A fé não é um substituto da razão, a razão não é um substituto da fé.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Qual é a mais importante questão da Ética?

  A questão fundamental da Ética é a do BEM. Como avaliar o bem, como distingui-lo, como saber se é do bem que se trata e não de um prazer ou de uma satisfação interior?    

É preciso avaliar a importância, a duração, a extensão, as consequências do ato, da situação, das pessoas envolvidas e da intenção, ou, para usar um conceito de Santo Agostinho, a boa vontade.

Um problema: será que há risco de relativismo se formos levar em conta a situação e a intenção? Ser relativo ou absoluto não são critérios adequados para entendermos o que é o Bem, por isso mesmo não representa risco algum afirmar que o bem vale absolutamente ou que depende disto ou daquilo. Em geral esses critérios servem de desculpa para escapar da dificuldade de entender a noção de bem e o que ela representa. Quer dizer, é uma saída pela tangente, uma discussão inócua.

Não percamos tempo, portanto com a questão de se o seu valor se é absoluto ou se é relativo. 

Será que o bem é uma sensação semelhante à do prazer? Para um filósofo epicurista, faz sentido. Entretanto, se formos considerar os efeitos do prazer, caímos novamente na questão da relatividade e da fugacidade dos prazeres. 

Talvez uma experiência ou casos concretos possam ajudar. Preservar, ajudar, amar, importar-se, saber e poder avaliar as consequências, responsabilizar-se, ser honesto, sincero, aberto, essas atitudes e valores são indício de bem.

Assim nos aproximamos dos caminhos que levam ao BEM. São atitudes, elas podem ser resumidas no verbo, portanto, em uma ação, a do cuidar e a do considerar. Cuidar de si, dos que nos são próximos, do que nos cerca, sermos íntegros e levarmos em conta o outro. Age de tal modo que sua ação possa servir de exemplo, de critério; a justa medida, o equilíbrio; as escolhas responsáveis. 

Assim o BEM desce do mundo platônico das ideias para alojar-se em nossas mãos.

 

  


 


domingo, 16 de janeiro de 2022

Raízes do pensamento filosófico

 Para analisar as raízes do pensamento filosófico há dois caminhos: o de retorno aos primórdios da Filosofia; e o de responder à questão dos princípios, conceitos e limites desse tipo de pensamento.

Os primeiros filósofos se preocuparam com a origem de tudo o que há, qual é o fundamento, a base de tudo? O mundo, o cosmo, a vastidão e, ao mesmo tempo os limites do mundo. Mas, como pode a imensa diversidade de seres limitar-se a um único princípio? Deve haver uma causa única, do contrário nada existiria... Os quatro elementos, as partículas fundamentais, e, muito intrigante, o indeterminado. Se não é possível determinar qual é a causa de tudo, então é porque tudo o que existe certamente teve sua origem e, como as coisas no espaço/tempo são múltiplas, essa origem não pode ser rastreada. 

Por detrás da necessidade de investigar a causa há nos primeiros filósofos a necessidade de saber, de encaminhar seu pensamento para a interrogação com o uso do raciocínio. Mas antes, primitivamente e, eu diria até nossos dias, há o outro lado, o mais primitivo, o lado do místico, intuitivo, em que as forças da natureza e a morte impressionam, atemorizam, levam aos cultos, aos sacrifícios, a adoração de deuses, às narrativas míticas. Evidentemente, não é esse o caminho da Filosofia.

Se Platão recorre ao mito tanto para exemplificar seu pensamento, e mesmo como paralelo de sua filosofia, em Aristóteles reina soberana a razão, a busca racional dos princípios e das causas, e eles resultam de sínteses, da lógica, da ciência primeira, que é a metafísica, da especulação acerca do fundamento de tudo o que existe, que são: causa eficiente, causa material, causa formal e causa final. A metafísica aristotélica, de tão completa e profunda foi usada pelo tomismo, foi transformada e readequada por Kant, deu trabalho para Hegel que procurou um caminho divergente, levou Nietzsche a inclui-la no rol dos idealismos e voltar-se para o que é humano, isto é, fraco, nós os inventores de valores inclusive da ideia de bem e mal.

Esse caminho, o da História da Filosofia, é imprescindível para tentarmos responder à questão dos próprios conceitos filosóficos e de seus limites.

O conceito mais abstrato, mais geral e fundamental é o de ser. Para pensar de modo mais elementar é necessário pensar o conceito de ser que se apresenta na questão de "tudo o que é tem uma causa", mais especificamente no verbo "é". Vejamos: ele prevalece nas ontologias existenciais, no logos que pensa e, portanto, é; na descida da metafísica do céu platônico para o ser do homem, ser-para-a-morte; e na virada filosófica contemporânea para linguagem, finalmente o "ser" não se opõe a "nada", o ser se aliena, se aninha na linguagem. E na linguagem não há privilégio, nem mesmo o do ser da linguagem. A linguagem é múltipla, vive no e com o seu uso, para sair da linguagem ainda usamos a linguagem, e mais, é por meio dela que indagamos sobre o ... ser!

Esse é o enigma atual da Filosofia, seus caminhos bifurcados pela exigência de nos voltarmos para a ação permeada de linguagem, e poder perguntar, finalmente, há o ser da linguagem ou é a linguagem que nos traz e nos revela o ser?