quinta-feira, 24 de maio de 2012

Fato, verdade e realidade: as dificuldades da comissão da verdade

Nosso cotidiano depende de uma lida com os três fatores do título: fato, verdade e realidade. Na maioria das vezes esses condicionantes de nossa vida se embaralham, se misturam e são tomados uns pelos outros.
Desde a instalação da comissão da verdade que tem como meta investigar e chegar justamente à verdade sobre crimes políticos acobertados durante tanto tempo, posições diferentes surgiram. Quais crimes investigar, os da ditadura militar apenas? Ou também atos da esquerda (atos terroristas) que se opunha à censura e ao regime de força que eliminara a democracia?
Como chegar à verdade? Pelos fatos, se diz. Mas quais fatos investigar? Documentos? Quais? Como decidir se são ou não significativos, se ajudam para esclarecer quantos morreram, foram perseguidos, sofreram a violência da tortura?
E mais: quem será ouvido, quem testemunhou a prisão e a tortura?
Fatos precisam de algum tipo de constatação objetiva, mas ainda assim, provocam controvérsia quando pessoas com diferentes pressupostos e valores resolvem que uns importam mais do que outros...
Acresce-se a isso a realidade. Em geral se usa o conceito de realidade para uma situação mais geral, no caso, a história da ditadura que se inicia com o imbróglio de Jânio Quadros, a posse de Goulart, o regime parlamentar, sua queda e a revolução militar com os atos institucionais.

Para a atual geração fica difícil entender o que é viver sob censura, não poder eleger prefeitos de capitais, governadores e nem o presidente. Fica difícil imaginar o que é optar por dois partidos apenas: um "oficialmente" situação, o outro "oficialmente" oposição.
A luta contra a ditadura se fazia em pelo menos duas frentes: a clandestina e a de figuras notórias de políticos, intelectuais, jornalistas.
Manifestações de rua contra a ditadura e a repressão da polícia
E isso é parte da realidade da época.
Havia também o medo, pois ser fichado pelo Dops, a polícia política da ditadura, poderia significar prisão e tortura para delatar os clandestinos.
Sua casa poderia ser invadida e vasculhada: certa literatura, em especial relacionada ao comunismo, o poria sob suspeita.
Outros fatores pesam também nessa conjuntura: havia militares que desejavam o fim da repressão, de um lado. De outro lado, há vários opositores que se beneficiam com indenizações até hoje, por terem perdido um cargo, ou por terem sido afastados de sindicatos (isso é justo ou abusivo?).

Enfim, há muito o que fazer e nunca se chegará à verdade.
Se a verdade for algo inflexível é difícil de obtê-la. Se a verdade for flexível, deixa de ser confiável.
De qualquer maneira, é preferível recuperar injustiças e erros do que sepultá-los.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Habermas entre Kant e Hegel

A teoria da ação comunicativa de Habermas (1929-) elaborada nas décadas de 70/80, representa uma proposta de renovar a tradição kantiano/hegeliana.

No lugar de conceitos a priori e de categorias formais da razão pura (Kant), para conhecer é preciso usar a linguagem, afirma Habermas. Não é possível pensar ou conhecer o mundo, nem mesmo situar acontecimentos no tempo e no espaço sem usar atos de fala. Quem diz, o que diz, a quem, em que situação e contexto, bem como o uso de afirmações com conteúdo proposicional (proposição é uma formulação da linguagem que objetiva algo no mundo, que descreve algo com sentido e se refere a um estado de coisa): o que conta é o discurso.
Um ato de fala requer, portanto, conteúdo proposicional quando se trata de afirmações sobre algo que o ouvinte compreende e sabe a que se refere. Atos de fala têm validez, quem faz uma promessa, por exemplo, implica intenção sincera de cumpri-la, do contrário ela se torna um ato de fala vazio. Pedir informação pressupõe condições de validez, como ser relevante e obter resposta do ouvinte (que tem ou não condições de informar). E assim por diante em nossa vida cotidiana: nos comunicamos.
De outro lado, pode-se agir estrategicamente, impondo, influenciando, negociando. Nesses termos a ação tem a ver com o poder de barganha, de convencimento, como na política, na propaganda, no comércio, no mercado.

Onde entra Kant?
O transcendental passa a habitar a linguagem que é uma prática aprendida, conhecer e lidar com o mundo dependem dela, os atos de fala são necessários, mas não puros, nem a priori. Habermas "destrancendentaliza" a razão por meio da comunicação linguística.

Onde entra Hegel?
Se a linguagem é aprendida, isso depende da cultura, de sua evolução histórica e das necessidades que nascem de situações concretas. Como resolver problemas, como enfrentar obstáculos, como realizar obras? Hegel "historiciza" a razão e dá ao entendimento funções, o espírito humano se concretiza nas religiões, na arte, na filosofia. Por meio do trabalho, da linguagem e da ação, o espírito desempenha suas tarefas em direção a maior liberdade e plenitude. Direito, ética, o funcionamento pleno da sociedade civil, nada disso depende de imperativo categórico puro, e sim de transformações históricas.
Habermas concorda com tudo isso. O problema é que Hegel entende que esse processo dialético é unidirecional, que ele culmina no Espírito Absoluto, plenitude e realização máxima de seu caminhar histórico.

Para Habermas a ação comunicativa não tem fim. Ela envolve argumentação, pessoas capazes de usar a razão socializada por meio do aprendizado de atos de fala. Os participantes integram uma comunidade ética, política, social. O ideal para Habermas não é culminar em uma totalidade abstrata, e sim a concretização do dar e ouvir razões, em comunidades de comunicação ilimitadas, que negociem e conciliem interesses e valores, cujos membros sejam suficientemente educados e seus propósitos sejam os de inclusão do maior número possível de pessoas. Quer dizer, democracias que respeitem o estado de direito, sendo "a consciência da solidariedade cosmopolita obrigatória" diz ele em A constelação pós-nacional (2001).

Atingir esse ideal tem sido difícil: crise econômica, guerras, perseguição religiosa, conflitos étnicos, violência são severos obstáculos. Com educação, liberdade e solidariedade eles são transponíveis.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Por que é tão difícil compreender Hegel?

O marxismo foi em grande parte responsável pela divulgação da dialética de Hegel como método, como explicação do sentido da história. Os três momentos por que passam a história, o conhecimento e mesmo a natureza em seu desenvolvimento são: tese (ser, afirmação), antítese (não ser, negação) e síntese (vir a ser, superação ou ultrapassagem). Essa espiral crescente e transformadora mostra que não é por acréscimo que há mudança e sim por superação de dois momentos ou movimentos antagônicos reunidos em um terceiro momento em que a totalidade da história muda.
Mas Hegel não se limitou a esse esquema, e, é claro, nunca pretendeu com isso chegar à revolução do proletariado...

O que significa a mudança por contradição?
Que a negação é inseparável das determinações, do ser isso ou aquilo. Para algo ser determinado, isso requer ao mesmo tempo que ele não seja isso ou aquilo. A verdade reside na passagem, no devir. Quer dizer, a marca característica de algo, ser de tal ou tal espécie, implica diferença. Mas se é preciso a diferença, como se conhece tal espécie? Não é pela identidade?

Enquanto Kant resolve o problema pela fixação por meio de conceitos, pelo juízo que afirma, nega, contrapõe, etc., pelo recurso do entendimento às categorias imutáveis, puras a priori da razão, para Hegel isso levaria a um abismo entre o sujeito que representa o mundo e a realidade representada. Haveria dois momentos, o da apercepção do sujeito e o daquilo que ele conhece. Se o em si é incognoscível a consequência é o ceticismo, pois não é possível conferir ou confrontar representação com representado, seria preciso alguém ou algo de fora para "juntar" os dois momentos, os recursos para conhecer e o que é conhecido.
Para Hegel não há essa distância, a realidade em si pode ser apreendida, sensações que se tem e ideias ou conceitos são momentos que não se justapõem e nem se excluem, mas se complementam. Não por força do sujeito com sínteses transcendentais, mas do sujeito em relação permanente com as coisas em recíproca influência e modificação pelo uso da linguagem em proposições nas quais entram categorias e conceitos.
As proposições não são pura síntese, pois foram forjadas pelo próprio movimento histórico que pretendem explicar. Isto é, a história é o espírito humano se manifestando. Conceitos são criados e modificados. Quando se formula um juízo a respeito de algo há um uso, há a responsabilidade por conferir a apropriação ou não desse uso em um contexto. Em suma, há a preocupação pela correção do uso de uma proposição. As coisas são como o juízo afirma que elas são? Podemos conferir se sim ou não.
Como se vê, Hegel não se resume ao "método" dialético.

Se Kant não tivesse feito a mais radical crítica à metafísica (não se pode conhecer o noumeno ou algo em si mesmo e enquanto tal, só os fenômenos, o que se apresenta e como se apresenta ao conhecimento), Hegel não precisaria ter se esforçado tanto para recuperá-la. O em si e o para si não podem se divorciar, do contrário não haveria formas culturais de vida, a vida social e a construção do conhecimento da realidade são formas de o espírito operar sobre as coisas e de estas serem percebidas, ditas e usadas.
Esse duelo de gigantes, Kant X Hegel, é retomado por Habermas. Isso fica para a próxima postagem.