domingo, 28 de novembro de 2010

Do banal ao extraordinário

Revi na TV um filme de Woody Allen Igual a tudo na vida (2003), que os críticos classificaram como repetitivo e fraco. Os comentários na internet são em sua maioria também desfavoráveis, filme sem graça, não diverte, não acrescenta nada à filmografia do cineasta.
David Dobel é professor (personagem de Allen) que aconselha Jerry Falk (personagem de Jason Biggs). Acho que o filme reconduz a perplexidade diante da questão maior ou da dúvida maior, à perplexidade diante do menor de nossos atos e das situações que enfrentamos.
Como entender as questões mais cruciais que incomodam e deixam perplexos aqueles que filosofam, que refletem um pouquinho que seja sobre o sentido das coisas, da vida, de ser, de tudo ser? O mistério que nos assombra, como tudo veio a ser, há uma causa mais geral para tudo, pergunta o professor Dobel.
Ao mesmo tempo a vida segue, é preciso ter uma profissão, amar alguém, ser bem-sucedido, enfrentar o dia a dia de uma grande cidade, trânsito, onde estacionar (em uma cena muito engraçada o professor disputa uma vaga para seu carro conversível e perde a vaga), em outras cenas critica o aconselhamento psicanalítico (o psicanalista só ouve e cobra, caro, certamente...), pessoas fracassam, pessoas não sabem o que fazer com seus destinos, bebem, se drogam.
É um motorista de taxi que usa a expressão, "like anything else" para se referir a que tudo na vida é assim mesmo, banal e, ao mesmo tempo complicado.
Perguntar pela origem ou causa de tudo, a pergunta filosófica mais intrigante, mais antiga, mais extraordinária, pode e deve ser levada ao ordinário, ao dia a dia, o que faz sentido fazer, qual lance de nossa vida marca, decide?
E o inverso, se você parar para pensar, verá que o cotidiano é incrível, é extraordinário. Embutida, imersa e escondida em cada detalhe e em cada ato, "a insustentável leveza do ser", como se expressa Kundera.
As respostas na história da humanidade tomaram rumos e consequências: religiões e credos defendidos a ferro e fogo, ideologias que cegaram povos e culturas, líderes que mataram e matam em nome do poder (deles, é claro...).
Mas também a vida pessoal e as circunstâncias banais podem servir para pensar: é complicado, sim, mas tudo é mesmo assim, banal por um ângulo, extraordinário por outro ângulo.
O mistério das cousas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?
E eu, que não sou mais do que eles, que sei eu disso?
Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
Por que o único sentido oculto das cousas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que todos os sonhos de todos os poetas
E o pensamento de todos os filósofos
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E que não haja nada que compreender
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos:
As cousas não têm significação: têm existência.
As cousas são o único sentido oculto das cousas.
(Fernando Pessoa - 1888- 1935)

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

A realidade "existe"?

A pergunta acima pode parecer descabida. É claro que o real existe, as pessoas dirão.
Mas em filosofia, na área da teoria do conhecimento, a questão é pertinente. Para conhecer algo, é preciso um sujeito com certo grau de aprendizado e desenvolvimento de suas capacidades psíquicas, com um mínimo de recursos para se comunicar e para enfrentar situações às quais precisa responder. Será que conhecemos o real tal como ele é, ou tal como essas capacidades nos fazem pensar que ele é?
Se todos os homens subitamente morressem, o real permaneceria o mesmo? Aquela árvore naquela ilha do Pacífico permaneceria tal e qual?
Os filósofos assumem posições diferentes quando tentam compreender o conhecimento. A realidade é permanente, identificável e é possível se certificar disso afirmam os realistas. Pedra é pedra, árvore é árvore. Basta abrir os olhos e ver, constatar. Para eles, o mundo seria o mesmo sem a presença do homem.
Para os empiristas, são nossos sentidos e a nossa percepção que fazem a experiência e verificam os objetos e suas características.
Mas não é assim tão simples, argumentam os idealistas, se o sujeito não dispuser de um aparato para ir da imagem que ele vê, para a identificação do que há fora dele, não há conhecimento. Para os idealistas, o real depende do sujeito, mortos os homens, morre também nosso modo de conhecer o mundo. Se há ou não tal ilha com tal árvore, é uma pergunta que cai no vazio.
Para os céticos, ainda que batam sua cabeça na árvore e sintam dor, isso não elimina duvidar de tudo, nossas impressões são fugidias, tudo muda, nós inclusive, o tempo todo.

Como se vê, a pergunta filosófica feita no título acima não é tão estapafúrdia.

Cabe ainda refletir sobre o conceito de "existir", de "existência". Você diria que uma pedra é tal e tal, ou que uma pedra existe? Pedras não existem, apenas seres vivos, como cães e homens, têm uma existência. Logo, a realidade não existe!?
A argúcia filosófica nos conduziu a um beco sem saída?

Não para Wittgenstein (cf. Investigações Filosóficas - 1953).

Para ele há diferentes usos de expressões e de jogos de linguagem em situações de fala. Alguém quer dizer algo para outro e este, em geral, o compreende. Exemplos:
"Essa realidade, à qual você se apega, não existe". Esse jogo de linguagem pode ser dito para persuadir alguém a mudar seu ponto de vista.
Outro jogo de linguagem bem comum: "na realidade, acho que fulano não presta". Aqui o termo recebe outro significado, o de uma convicção.
Em outras palavras, a linguagem cotidiana, as circunstâncias vividas em nossa existência diária é que decidem quanto ao significado que se dá a "real", "realidade", "existência".

Wittgenstein deflaciona os conceitos filosóficos, faz terapia filosófica.
Duas pessoas discutem:
"Isso é uma árvore" diz um. "Não sei, diz o outro, tenho apenas impressões de algo duro, rugoso, marrom, etc.". Wittgenstein replicaria: "São dois filósofos discutindo"...

sábado, 6 de novembro de 2010

Educação infantil e literatura

O Conselho Nacional de Educação tentou, felizmente sem sucesso, recomendar a retirada da obra Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato (publicada em 1933) do rol de livros recomendados pelo MEC. Motivo: duas frases que ofendem a igualdade de raças. Na primeira, a comparação de Tia Nastácia com uma "macaca de carvão" e na segunda a pergunta da Emília (engraçada e espevitada boneca de pano, confeccionada pela própria Tia Nastácia, e que virou gente, pois é...) sobre se Tia Nastácia tinha sangue preto.
Relendo a história, que me encantou quando criança e que reli para minhas filhas, se compreende que se Tia Nastácia não subisse imediatamente no mastro de São Pedro, seria devorada pelas onças. A história é sobre uma caçada em que, encarapitados em uma árvore para fugir de uma onça, Pedrinho, Narizinho e cia. limitada, conseguem matá-la. Pedrinho joga pólvora nos olhos da dita cuja. Resultado: revolta da bicharada. Para se salvarem, os habitantes do sítio devem ficar no alto, em pernas de pau. Mas nem Dona Benta e nem Tia Nastácia conseguem. Na hora do ataque da "onçarada", Tia Nastácia sobe apavorada no mastro super liso, com a agilidade de uma macaca de carvão.
Monteiro Lobato se refere à Tia Nastácia, em inúmeras passagens e em todas suas obras como "negra", "preta", "beiçuda". Ela é a cozinheira (seus bolinhos são inigualáveis), conta histórias, protege as crianças, é amiga e companheira de Dona Benta.
Pois bem, uma coisa é resgatar para os negros oportunidade, proteger com legislação direitos iguais, punir o insulto racial. Isso é indispensável! Mostrar a violência do tráfico de escravos e como seus descendentes até hoje estão entre os mais pobres e com maior dificuldade de ascenção social, é, repito, indispensável.
Considerar que adotar um vocabulário politicamente correto, vetar literatura que na época estava a milhas de distância do policiamento exigido pelo "politicamente correto", é absurdo.
Um caso sui generis para que se reflita a esse respeito: a poesia de Cruz e Souza (1861-1998). Poeta negro, nascido de pais escravos alforriados, cuja obra faz parte do currículo escolar, é um dos expoentes da escola simbolista. Seu vocabulário poético faz referência a anjos, louro trigo, claras estrelas, puro, clarão sidério, luz, estrela, etc.
Hoje seria um poeta discriminado, pois não proclama sua negritude, sua origem, sua cor?!
Que tal pensar que igualdade talvez não seja o mais desejável e sim permitir em nossa sociedade a manifestação das várias vozes, das diferentes e diversas cores, produção artística, contribuições para a cultura que enriqueçam nosso vocabulário ao invés de policiá-lo?
Que tal proclamar a diversidade, lugares próprios de grupos e crenças, noções e valores que ressaltam essas diferenças?

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Foucault revoluciona a noção de sujeito, de história e de governo


A noção de sujeito para Descartes é a de pessoa com uma mente autoconsciente e a de um corpo como uma máquina; a de Kant é a de pessoa dotada de liberdade de decidar, absoluta, incondicional, e também de capacidade racional para pensar o real por meio de formas invariáveis, que possibilitam conhecer tudo o que está no tempo e no espaço, que tem uma causa e pode ser determinado.
Pois bem, Foucault tem outra noção de sujeito. Ele pensa um pouco como Nietzsche, nada além de atos e práticas que pertencem à história pode nos constituir, seja para pensar, seja para agir, seja para valorar. Sujeito e história se constituem um ao outro. Como?
Foucault, sem negar que é possível entender a história humana pelas guerras, nações que nascem e morrem, grandes líderes, grandes descobertas -, inaugura outro modo de olhar a história. Ele analisa acontecimentos que passam batido, como a história da loucura, história do surgimento da clínica médica, do nascimento das ciências humanas, da sexualidade, dos modos de constituição do sujeito, da violência nas prisões, do hospital psiquiátrico, das modificações no governo de si mesmo e no governo dos outros.
O modo de abordar tudo isso também é inédito:
- Pelas práticas discursivas, por exemplo: a produção de verdade de tipo classificatória, que põe os seres em um quadro geral como a história natural de Lineu, século 17; isso sofreu uma mutação com Darwin: não mais um quadro estático, mas evolução natural. No século 18, novas práticas discursivas fazem surgir novos objetos de saber: a vida que evolui, as gramáticas e suas regras para que haja línguas, e os modos de produção pelo trabalho.
- Pelas práticas não discursivas, exemplos: o hospital psiquiátrico que encerra o louco e permite um saber sobre a loucura que se torna objeto médico; a forma prisão de punir, que reúne saber sobre o delinquente e um tipo ágil e rápido de poder, que requer o exame, a vigilância, o isolamente celular. Não mais o corpo orgânico, mas dobrar, corrigir, modificar o comportamento individual (fins do século 18);
- Pelas práticas de governo dos outros: o antigo soberano governa súditos e tem o poder sobre território; o Estado moderno surgiu de práticas de governo sobre populações, é necessário atuar sobre a saúde, o meio, a produção, o mercado. Deixar o mercado agir livremente numa ponta e na outra manter a população governável, cuidando de cada um e de todos como o pastor cuida de suas ovelhas. Poder governar na modernidade exige mecanismos de segurança da vida (biopoder).
-Pelas práticas de governo de si: desde o conhece-te a ti mesmo de Sócrates, até o divã freudiano, passando pela confissão dos pecados cristã. Essas práticas nos levam ao domínio de si, ao prazer de escarafunchar o inconsciente, à invenção de uma alma a ser salva.
Enfim, somos pensados, punidos, governados, objeto de saberes, alvo de poderes. Ainda assim, mais livres do que sonhamos, pois somos capazes de enfrentar, denunciar e às vezes até de modificar aquelas práticas!