sábado, 25 de junho de 2022

Ética dos atos de existência, o último suspiro de Foucault

 Em seu derradeiro curso no Collège de France, Foucault elabora aquela que seria a sua ética, em tudo contrária, por exemplo, à rigidez formal da ética kantiana do dever. Enquanto Kant lança mão da razão, da razão prática com suas exigências de seguir procedimentos impossíveis de não serem seguidos, como o de tornar sua vida um modelo universal, em clara oposição, Foucault defende a particularização, a modulação dos atos impulsionados pela coragem de dizer a verdade.  

                                                


O curso de 1984 A coragem da verdade, 2o. tomo, "O governo de si e dos outros", é uma proposta de seguir outro caminho além daquele da filosofia tradicional, a filosofia tal como a conhecemos em sua busca de princípios que podem ser convalidados, para uma filosofia voltada para os atos de existência autênticos, que rompem com os princípios do logos e da razão para outro modo, o das manifestações da vida. Nisso reside a novidade apresentada no curso, com os exemplos do cinismo. Foucault ressuscita o cinismo de seu limbo histórico e mostra que, apesar de raros textos, mais narrativas de outros filósofos, a vida cínica tem algo a dizer, ou melhor, a mostrar. A vida verdadeira, a do cinismo na visão de Foucault.

Problema: mas que verdade seria essa? cuidar de si, a exemplo de Sócrates e ir além, levar uma vida de cão, quer dizer, de autenticidade, despojamento, crua, com sua existência inteiramente exposta, sem vergonha no sentido de sem falso pudor, sem falsa modéstia, sem esconder-se. 

A vida filosófica tradicional se fundamenta na busca da verdade cuja fonte é a razão, com seus argumentos, com a exposição à crítica, bastante impessoal, de estilo cartesiano, kantiano, formal, que pode e deve passar pelo crivo da verdade racional.

Para a outra vertente, a da vida no modelo socrático, a vida filosófica requer preparação, ocupar-se com as coisas essenciais, com o cuidar de si mesmo, praticar aquilo que se prega (a exemplo de Sócrates) e algo mais, que Foucault afirma encontrar-se apenas nos filósofos cínicos, que é mudar a moeda, seguir o ensinamento oracular. O que significa falsificar a moeda ou mudar seu valor. Dão-se mal os que falsificam, e dão bem aqueles que transformam, que mudam o valor da moeda em algo proveitoso, uma reavaliação (Nietzsche ?), conhecer-se a si mesmo vale para poder mudar, quebrar regras, satisfazer-se com o básico tal como Diógenes que se considerava como um cão. O termo "cinismo" é relativo a cão.

Seria uma ética de enfrentamento, de coragem, vida que se joga, independente: 

...ela é também a continuação e o retorno desta vida tranquila, senhora de si mesma, desta vida soberana que caracteriza a verdadeira vida (p. 225).

Os princípios filosóficos tradicionais seriam transpostos para novas vidas, o dizer-verdadeiro levado para a vida cínica que dá à moeda outro valor; este seria um ponto importante na história do cinismo, na história da filosofia e certamente na história da ética ocidental (p. 226).

segunda-feira, 6 de junho de 2022

A importância da autonomia

 Vivemos um tempo de certezas absolutas compartilhadas nas redes sociais. Não se admite o contraditório, todos e cada um querem ter razão, há uma total ausência de diálogo, de argumentação fundamentada, ninguém pesquisa fontes, não se dá a justificação de suas afirmações ou negações, sempre peremptórias, e isso tudo passa a valer como se fosse válido, verdadeiro. Há todo tipo de perseguição, de anulação, castração moral. A fama é baseada nos likes, e ainda há os influenciadores, os tutores por excelência das mídias. Mas o que influenciam eles ou elas? A colocar cílios, unhas, o último modelo de vestuário? Qual música curtir?

O que lhes falta? Faltam valores, entre eles o sustentáculo dos valores, a autonomia, o livre pensar, a vontade de ser si próprio, educação consistente, franqueza, ousar ser a pessoa característica, quer dizer, que se assume como tal, com suas escolhas e sabedora das consequências de suas escolhas.

Ser autônomo é justamente o inverso de ser autômato, responder apenas a estímulos como se fosse um robô prestador de serviços.

Perguntas a se fazer:

O que eu quero, o que eu posso, o que eu faço, como eu faço, onde quero chegar, quais são as minhas motivações, o que me levou a ter tal ou tal atitude, quais são as razões alegadas para minhas escolhas, não estaria me enganando? O autoengano leva a passar uma borracha nas perguntas que deveríamos fazer a nós mesmos e vestirmos máscaras, andarmos na superfície, irmos de um ponto a outro por mero impulso, buscarmos satisfação no que adquirimos, no que acumulamos como se o copo ou o prato pela metade estivessem sempre vazios. Sente-se a falta, o vácuo, e isso precisa ser preenchido rapidamente e com banalidades.

A falta de autonomia é igualmente a falta de questionamento, de aprofundamento do que realmente importa. Não enxergar-se, ou melhor enxergar apenas o manto que encobre seu próprio ser.

O cuidado de si, essa é a mensagem socrática do cuidar do que realmente importa, sua alma, sua psuchê, seu interior. Cultivar essas possibilidades que a busca interior proporciona é tarefa árdua, difícil especialmente para aqueles que não entendem o significado e quais são as implicações da autonomia. Auto=si mesmo; nomos=lei, regra. Você como senhor (a) de si.