terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

1o curso de Foucault: proveniência da vontade de verdade

A questão primordial da teoria do conhecimento é a da relação entre sujeito e objeto. Foucault inaugura outra questão, fazer uma história do conhecimento (à qual chamará de "genealogia") dirigida aos acontecimentos do saber nos quais o conhecimento produz certos efeitos. Um exemplo de acontecimento na ordem do saber foi a exclusão dos sofistas. Um exemplo, e dos mais efetivos de teoria do conhecimento, é a de Aristóteles, filosofia e verdade se tornam interdependentes, desejo de conhecer se fundamenta na lógica, que expõe o sofisma, com aparência de raciocínio, mas que usa palavras para convencer, uma espécie de tática; é diferente dos erros e dos falsos raciocínios. O silogismo, raciocínio correto, remete às coisas significadas, aos referentes, e, portanto, à verdade das proposições confirmáveis pela realidade.
Já os sofistas, defende Foucault, sustentam o próprio enunciado em sua materialidade de discurso, como coisa, e não como palavras que remetem a coisas. O discurso dos sofistas leva a acordo ou desacordo com o que diz e não com a verdade ou falsidade, com a verificação, com o discurso apofântico, isto é, a relação entre este ser que se diz e o ser ele mesmo, se a coisa é, a proposição tem que dizer isso.
Assim, a filosofia ocidental busca a verdade nas coisas, é apofântica. E Foucault trabalha não com esse tipo de verdade e sim com os enunciados do discurso e seus diferentes níveis e inserções. A questão deste primeiro curso é:
Como, nas relações de dominação dos discursos filosóficos os sofistas foram "esquecidos e reprimidos para dar lugar a um discurso apofântico que pretende se ordenar ao ser sob o o modo da verdade?" (p. 67)
E antes, o que havia?
Verdade em sua relação com o discurso jurídico, na idade arcaica (Grécia homérica), os deuses e o cosmo presidem as decisões. Isso muda na idade clássica, legisladores invocam as regras do costume, o que é justo para os cidadãos e a cidade, pergunta-se pelo prejuízos, não mais se invoca a fúria de Zeus, justiça ligada à medida das coisas (cultivo da terra, dívidas, sistema de medidas, a moeda). A verdade não é mais atributo divino, deve ser buscada nas coisas, a verdade de tipo saber, da memória, do exercício da soberania, características estas que adentram a época platônica e vêm até nós. A noção de nomos, regra, norma é introduzida. O criminoso passa a ser excluído da cidade, ele é impuro, é preciso saber quem ele é, ele representa perigo ao espaço do nomos, não segue as leis, é anomos, anormal. 
"Toda uma ética da verdade está em vias de se desdobrar", a figura do sábio, puro, formulador das leis, fundador do poder político torna-se proeminente, o conhecimento das leis se entrelaça com o conhecimento filosófico do mundo, nasce uma moral da virtude. Testemunhas, constatação, verdade estabelecida, distribuição do poder sobre o saber da ordem das coisas, ao qual tem acesso apenas a sabedoria.
Nesse sentido, Édipo tem a ver com o discurso verdadeiro e não com impulso universal do desejo, como interpretou Freud.
Conclusão:
No primeiro curso são dados os passos para a compreensão do uso da verdade, da anormalidade, da exclusão, da confissão, do exame, para mostrar a proveniência do discurso filosófico, político e científico. 
E eles nasceram de práticas "humildes", papel da moeda, dos ritos de purificação, do modo como se lidou com a dívida dos camponeses, lá atrás, nos séculos 6 e 5 a. C.

domingo, 15 de fevereiro de 2015

O primeiro curso de Foucault no Collège de France

Chama-se "Leçons sur la Volonté de Savoir", "Lições sobre a Vontade de Saber", o curso que começou no dia 09 de dezembro de 1970 e foi até 17 de março de 1971, publicado em 2011 pela Seuil/Gallimard, que eu saiba ainda sem tradução.
Nele Foucault lança as questões que o ocuparam em suas investigações históricas sobre a loucura, a prisão, a sexualidade (sim, ele já estava preocupado com estas últimas bem antes de publicar "Vigiar e Punir" e "História da Sexualidade, Vontade de Saber", note-se que a noção de vontade de saber é o tema do curso de 1971).

A própria filosofia não lhe fornece instrumento teórico para analisar a vontade de saber, os filósofos, e ele inicia com a metafísica de Aristóteles, sempre se voltaram para o conhecimento, visto como natural, faz parte da natureza humana desejar conhecer, indo da sensação até o conhecimento das causas gerais do cosmo e dos seres. Exceções são Spinoza e, principalmente, Nietzsche. Para este a vontade é o elemento decisivo na busca da verdade, a verdade e o erro, juntamente com o desejo, as lutas, as discórdias, são parte da vida, não pertencem ao conhecimento, nem requerem a unidade de um sujeito pensante e  soberano como é o caso dos filósofos de Platão, passando por Descartes, até a fenomenologia no século 20.

Importante a distinção de Foucault entre saber e conhecimento, este sendo "o sistema que permite dar uma unidade prévia, um pertencimento recíproco e uma conaturalidade ao desejo e ao saber", e "chamaremos saber o que se deve arrancar na exterioridade do conhecimento para nele encontrar o objeto de um querer, o fim de um desejo, o instrumento de uma dominação, o local de uma luta".
Assim, "Arqueologia do Saber" liga-se ao primeiro curso, que se liga às questões centrais do seu pensamento: como o discurso com pretensão científica (o da medicina, da psiquiatria, da patologia, da sociologia) se insere no sistema penal, que de prescritivo passa a ser investido por uma vontade de verdade. E essa vontade de verdade opera a distinção loucura/desrazão, possui raízes históricas, sua arbitrariedade e modificações em um série de redes institucionais, isso tudo forma um sistema que influencia outros discursos e outras práticas. 
Há relações de dominação engajadas na vontade de verdade, conhecimento surge dessa necessidade, e também saberes, disciplinas e acontecimentos. Como a epistemologia não fornece os instrumentos para essa análise, nem a história da ciência, Foucault os buscou na vontade de saber e suas relações com as formas de conhecimento, em termos teóricos e históricos, com a crucial pergunta de se a vontade de saber dispensa um sujeito fundador ou se ela o reintroduz.
Original e difícil esse caminho, não é o da história do pensamento, nem o da história da cultura, pois estes não chegam a suspeitar de que na história das sociedades, a vontade de saber se articula com processos de luta, violência e dominação. Ao invés de submeter desejo e vontade ao conhecimento, mostrar que no surgimento do conhecimento há desejo, há vontade, que não têm nada a ver com conhecimento, mas com luta, instintos, paixões.
(a ser continuado)