quarta-feira, 23 de junho de 2010

Sobre cigarras, formigas e leões

Na fábula a cigarra aproveita ao máximo o calor, o dolce far niente, canta até não poder mais, enquanto a formiga não para sua faina. Quando chega o frio, formigas sobrevivem e cigarras padecem.
Em nossa vida fazemos um pouco como uma e como a outra, gozamos e acumulamos. A luta diária pela sobrevivência tem sido acompanhada ao longo de nossa evolução por rituais de comemoração, festas, celebrações.
O que o leão tem a ver com isso? Ele devora e segue sua natureza absolutamente selvagem. É indomável. Ser bom, ser o bonzinho não cria, não produz, não enobrece. "Criar novos valores - disso nem mesmo o leão ainda é capaz: mas criar liberdade para nova criação - disso é capaz a potência do leão", diz Nietzsche em Assim Falou Zaratustra.
Quer dizer, além de diversão e produção, é preciso arte, criação, novos valores, novos modos de ver, de viver. Mexer ainda que um pouco no já feito, nos hábitos, no automatismo a que muitas vezes reduzimos a condição humana.
Heidegger, filósofo alemão que muitas vezes é lembrado como colaborador do regime nazista, felizmente produziu filosofia da melhor qualidade. Admirava Nietzsche, de quem reteve a crítica à filosofia de tipo platônica por esta preconizar a contemplação das formas ideais e essenciais como o único modo de ascender à verdade. Verdade para Nietzsche e Heidegger pertence a este mundo, é produção nossa, algo com que se lida. E o que Heidegger diria sobre cigarras, formigas e leões?
Há existências limitadas a ir de flor em flor, borboleteiam (borboletas, mais um animal para compor a metáfora) que não se detêm em nada, que só se abastecem, e, portanto, nunca estão plenas. Vivem na insatisfação, reclamam, atingem no máximo a profundidade de um espelho d'água. Outros, pelo contrário, são autênticos, corajosos, seguem um rumo, mesmo sabendo ser ele difícil. E, principalmente, ao contrário da cigarra com seu canto vazio, ao contrário da formiga trabalhadora e submissa, sabem enfrentar sua condição de finitude. Sabem que vão morrer. Ser para a morte não significa desistir da vida, e sim penetrar em nossa existência levando em conta a temporalidade. Para isso é preciso mais do que coragem leonina, é preciso ser.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Felicidade por decreto

Há um movimento na Câmara dos Deputados em Brasília para aprovar legislação sobre o direito à felicidade como dever do estado.
Ora, nem os filósofos têm uma noção aproximada ou unânime sobre o que seja felicidade, nem se a cada pessoa do mundo for perguntado sobre o que entendem por felicidade daria uma resposta satisfatória para si e para os demais.
Pode-se chegar a algumas definições, nas quais certamente entram os conceitos de bem-estar, de saúde, de realização profissional, seguir uma vocação, gostar daquilo que faz, paz de consciência, estabilidade emocional, sólidos laços de família e de amizade. É provável que incluam a noção de que as alegrias são passageiras e de que a felicidade é duradoura.
Nada disso, a meu ver, pode ser garantido por legislação!
O estado provedor vem se transformando em estado arrecadador. Os brasileiros trabalham mais de três meses ao ano apenas para pagar impostos e recebem muito pouco em retorno, como todos sabem.
Imagine a burocracia para fazer funcionar o decreto da felicidade. Quem cuidará disso? Uma secretaria especial da presidência da república? As assembléias estaduais teriam um auditor para medir o grau de felicidade de seus diletos eleitores? Ou quem sabe a felicidade seria monitorada a partir das câmaras de vereadores ou pelas prefeituras, e haveria em cada município um responsável pela felicidade de seus cidadãos.
Cartazes seriam espalhados pela cidade, dentro dos ônibus, nos espaços públicos: "Todos têm direito à felicidade"; "A felicidade ao seu alcance"; "Programa 'Cidadão feliz'", e outras sandices do gênero.
Vejamos o que os filósofos dizem. A boa vida, a vida conforme a virtude, o equilíbrio traz felicidade, segundo Aristóteles. Para isso é preciso esforço, hábitos que vêm da educação.
Para Sêneca, basta a tranquilidade da alma, "caminhar numa conduta sempre igual e firme, sem se afastar da calma, sem se exaltar, sem se deprimir".
Sobre a busca da felicidade, diz Sto Agostinho: "Como procurar a vida feliz? Não a alcançarei enquanto não exclamar: 'Basta, ei-la'. Mas onde poderei dizer estas palavras? Como procurar essa felicidade?... Feliz é aquela vida que todos desejam, não há absolutamente ninguém que não a queira? Onde a conheceram para assim a desejarem? Que possuímos tal desejo, é certo. Agora, o modo é que eu não sei. Há uma maneira de ser feliz, quando cada um possui a felicidade em concreto. Mesmo aqueles que não têm a felicidade e nem sua esperança, devem experimentá-la, pois, do contrário não desejariam ser felizes".

segunda-feira, 7 de junho de 2010

A sexualidade como dispositivo histórico para Foucault


A subjetividade na modernidade ocidental se constitui em larga escala pelo saber de si, pela vontade de saber. Essa vontade de saber é conduzida pelo dispositivo histórico de sexualidade. Esta não é uma pulsão, uma realidade profunda, subterrânea, mas uma rede de estímulo a prazeres, de incitação dos corpos, de intervenções médicas, de discursos, de práticas de normalização que se apoiam uns nos outros e são conduzidos por estratégias de saber e poder. No lugar da sexualidade/pulsão, o biopoder cria uma sexualidade na qual se pode e deve intervir, que é induzida por discursos produzidos em geral na área médica (psiquiatria) e na área da psicanálise. O poder, tal como Foucault o analisa, produz discursos de verdade pelos quais "somos julgados, condenados, classificados, obrigados a tarefas, destinados a certa maneira de viver ou a uma certa maneira de morrer". As ciências da vida, as ciências humanas, as ciências "cartográficas", a estatística, permitem dominar e controlar a vida, a saúde, a sexualidade. O biopoder se constituiu no século 19 em função da necessidade política de moldar e conservar a vida através de tecnologias que criam algo novo para gerenciar, a população; esta é governável, pode ser transformada e regulada. Ao biopoder importam taxa de natalidade, taxa de mortalidade, modos e níveis de reprodução, a fecundidade. O que exige a formação de saberes rigorosos e um controle político cerrado. É preciso examinar, analisar, cuidar e estabelecer os custos das doenças que incidem sobre a população. É nesse campo que o dispositivo de sexualidade tem a função de regular o sexo, restrito ao leito conjugal, vigiado pela família, que, por sua vez é controlada pelos mecanismos do biopoder. Vem daí a novidade na história ocidental, considerar que nossa verdade está escondida num ponto de difícil acesso, a sexualidade, que pode e/ou precisa ser dita, confessada. Por isso a sexualidade é aquilo de que mais se fala, para o ouvido "certo", na hora "certa". A tese de Foucault é a de que há muito mais uma "explosão discursiva" do que repressão. O próprio fato de esconder, de velar, implica revelá-la, tanto faz se é um especialista ou o amigo(a), namorado (a). Sequer percebemos que isso nos prende, nos controla ao invés de libertar. Seríamos muito mais livres fora desse esquema da vontade de saber, novos prazeres, novos estilos de vida nos tornariam mais criativos, menos sujeitos ao controle pelo exame do desejo, mais abertos para o prazer.