sábado, 19 de agosto de 2023

Eu e os outros

 O sentimento que se tem é o de que somos nós mesmos. Cada qual tem sua própria identidade. É como se cada um habitasse o seu corpo. Em nossa percepção temos certeza de sermos esta pessoa, com tais e tais  vivências, experiências, reconhecemos nossos desejos, planejamos e seguimos nosso caminho.

Será que essa identidade assim constituída não esconde da própria pessoa aquilo que a incomoda, será que o esquecimento não está cheio de medos, perturbações, cada qual com um "lá dentro" que bate mas não vem à tona?

E mais, não enxergamos o que somos e nem o espelho revela como gostaríamos que fôssemos. Quem nos vê, quem nos enxerga são os outros. De passagem ou durante a vida toda, há sempre alguém que nos enxerga. "Um homem pode ver o que ele tem, mas não o que ele é" (Wittgenstein, 1946, in Culture and Value), pois o que ele é passa pelo como o outro o vê.

Habitamos, vivemos em nosso corpo, e é impossível sair de nós mesmo para nos enxergarmos. Ainda assim, o misterioso na condição humana é perguntar o que somos e o que representamos para os outros e preocupar-se com isso, até mesmo dedicar-se a isso.

O tempo todo estamos atribuindo a uma pessoa de pronto: você é demais, você é lindo (a), você acertou, parabéns. Mas também, você não presta, você é fraco (a), você erra sempre, e muitos outros tipos de julgamento e avaliação. E o mais intrigante é que o outro também nos está julgando, e esse juízo do outro pode tanto aprisionar como libertar.

Vejo um miserável, um morador de rua, sujo e maltrapilho e o julgo.

Vejo alguém que dirige um carro esportivo e o julgo. 

Como ambos se veem faz parte de como são e de como querem ou podem ser vistos. Ao olhar do outro, a roupa, o perfume, o penteado, e toda a aparência é oferecida.



O maltrapilho sob o olhar do outro

Como então entrar em si, em nossa identidade sem depender do olhar do outro? O que é legitimamente nosso eu? 

A memória possibilita isso: buscar no passado, nas lembranças e reviver situações, alegrias, medos, reconstituir um lugar especial, um passeio, um jardim, um animal de estimação, o prato favorito, o calor da cama, uma canção antiga. Talvez por isso seja tão grave, tão desumanizador perder a memória.

O que a memória nos traz vem a nós sem o olhar do outro, sem o obstáculo do que precisamos representar para sermos nós mesmos.

Problema: essa vitória do eu precisa enfrentar ainda o obstáculo do esquecimento.

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

O ideal e o real

 Temos uma noção bem simples do que sejam o ideal e o real. Ideal é supostamente o melhor, o que gostaríamos de obter, o que projetamos como modelo, alcançável ou não. Real é tudo o que pertence à nossa lida cotidiana, palpável, que exige certa reação, impossível ficar indiferente.

Vejamos pelo prisma filosófico. Ideal para Platão é, verdadeiramente, a própria realidade, o real decorre do ideal. Como é possível?! A realidade com a qual nos deparamos é instável, mutável, aquilo que agora é, no minuto seguinte pode não ser mais. Para que possamos entender algo, para que possamos nos certificar de algo, é preciso que haja um modelo, uma ideia que não mude. A verdadeira realidade é ideal, a ideia de cada coisa permanece, é perfeita, não tem brechas, não é instável, pois se tivesse brechas e fosse instável seria impossível pensar, apreender as coisas em sua essência. Este nosso mundo é feito de cópias a partir de um modelo ideal, metafísico, essencial. Exemplo: não podemos conceber certo cavalo sem a ideia de cavalo.

Chamamos esse modo de conceber de "idealista". Interessante que a concepção de ideal, de eterno e de perfeito se encontra em nossas visões de mundo, na concepção de um além, de um mundo transcendente, espiritual, ao mesmo tempo desejável e temível.

A partir do século 19, e mesmo antes com Kant, houve uma revolução no pensamento filosófico. O verdadeiro não é mais o ideal e sim o real, o real que habita nossas cabeças, a razão pensante, não podemos ir além daquilo que nossa razão com seus conceitos nos permite conceber. O ponto de partida para acesso ao real é situar tudo em um tempo e em um espaço. O céu ideal de Platão desabou, se transformou em conceitos, em noções, em valores, em medidas.


Instrumentos de medida, perfeitos, exatos, utilizáveis.

E esses conceitos, noções e valores são nossos, completa Nietzsche, invenções. Nós somos os inventores das ideias, inclusive as de bem e de mal. 

Wittgenstein considerou que os ideais de exatidão da lógica e da matemática seriam nucleares, fórmulas e conceitos que possibilitariam espelhar a realidade, trazê-la para a forma inteligível de uma sentença. Mas, esse ideal de exatidão, que preside a todo pensamento inteligível, onde ele habita? Em nossas próprias formas de vida. Quando pensamos em algo exato, ideal, não precisamos de um mundo perfeito, além no nosso.

Pelo contrário, o ideal pertence ao nosso cotidiano, tem diversos usos. Há para Wittgenstein diversos tipos de exatidão. Pense em uma régua, ela é exata, tem um tipo de aplicação que é diferente da medida em jardas. Ambas são perfeitas, foram concebidas para tomar medidas. E cumprem essa função. 

Conclusão: nós humanos somos construtores, damos sentido às nossas vidas, e por vezes consideramos que esse sentido seja ideal, inalcançável. Outras vezes entendemos e acedemos às nossas necessidades bem concretas, bem reais, ora fáceis, ora difíceis de realizar. 

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

O que é dogma?

O termo "dogma" vem do grego, e significa aquilo que se pensa ser verdade, e é justamente esse o sentido com o qual é empregado. Dogma funciona como se fosse uma parede intransponível, ou um freio que restringe toda e qualquer crítica ou opinião contrária.

A força do dogma reside nisso, nesse fardo obrigatório e irremovível. Uma pessoa, em seu íntimo, até pode controlar sua crença, mas expressar opinião em público é proibido. Além disso, os dogmáticos controlam e impedem a expressão dos inimigos. Sim, pois dogmas não podem ser confrontados, cada qual, como se diz popularmente, no seu quadrado. 

Dogmas são formas de expressão afirmativas, assertivas e impositivas, e por isso mesmo incontestáveis. É como se fosse um ponto final tanto da linguagem como do comportamento e do pensamento. Até aqui a pessoa pode ir, nunca além do que é obrigatório pensar e dizer. É preciso seguir o líder da seita cegamente.

Desse modo o risco de contestação é mínimo ou inexistente, a crença permanece num lugar fixado, imutável. Não há como se comunicar por meio de um dogma, pois mostrar evidências, comprovar, discutir e explicar são formas de se comunicar, quer dizer de dar razões, ouvir os outros, tentar entender outros pontos de vista. Por isso, quanto aos dogmas, que são verdades de crença, é em vão mostrar o que outras culturas ou grupos pensam. Todo dogma é indemonstrável. 

O dogma guia o(s) adepto(s) de forma fechada, "quase como se alguém atasse um peso nos seus pés que restringe sua liberdade de movimento" diz Wittgenstein (Culture and Value, p. 28).

Dogmas religiosos controlam a vida e o comportamento, como as obrigações doutrinais nas religiões, a reza em direção à Meca, a obrigatoriedade do véu islâmico, a circuncisão no judaísmo radical, a crença na alma imortal destinada ao castigo eterno ou ao gozo eterno, a Santíssima Trindade para o catolicismo. 

Dogmas políticos requerem e podem vir revestidos por ideologias. Ideologias são partidárias, movem líderes tirânicos, obrigam à adesão ou aqueles que aderem o fazem por crença, por exemplo, de que a propriedade é roubo, de que o capitalismo é intrinsecamente mau, ou, ao contrário, riqueza e dinheiro podem e devem ser absolutamente almejados. Em geral em política posições ideológicas acabam por se tornar dogmas.

Por fim, não há como e nem porque contestar, resta acatar ou se livrar do peso atado aos seus pés.

Entretanto, religião e política podem e devem servir para que se possa respirar o ar livremente, inspirar cabeças e corações, permitir a livre adesão, e dessa forma levar adiante aspirações pessoais em uma sociedade onde reina a autonomia.