O sentimento que se tem é o de que somos nós mesmos. Cada qual tem sua própria identidade. É como se cada um habitasse o seu corpo. Em nossa percepção temos certeza de sermos esta pessoa, com tais e tais vivências, experiências, reconhecemos nossos desejos, planejamos e seguimos nosso caminho.
Será que essa identidade assim constituída não esconde da própria pessoa aquilo que a incomoda, será que o esquecimento não está cheio de medos, perturbações, cada qual com um "lá dentro" que bate mas não vem à tona?
E mais, não enxergamos o que somos e nem o espelho revela como gostaríamos que fôssemos. Quem nos vê, quem nos enxerga são os outros. De passagem ou durante a vida toda, há sempre alguém que nos enxerga. "Um homem pode ver o que ele tem, mas não o que ele é" (Wittgenstein, 1946, in Culture and Value), pois o que ele é passa pelo como o outro o vê.
Habitamos, vivemos em nosso corpo, e é impossível sair de nós mesmo para nos enxergarmos. Ainda assim, o misterioso na condição humana é perguntar o que somos e o que representamos para os outros e preocupar-se com isso, até mesmo dedicar-se a isso.
O tempo todo estamos atribuindo a uma pessoa de pronto: você é demais, você é lindo (a), você acertou, parabéns. Mas também, você não presta, você é fraco (a), você erra sempre, e muitos outros tipos de julgamento e avaliação. E o mais intrigante é que o outro também nos está julgando, e esse juízo do outro pode tanto aprisionar como libertar.
Vejo um miserável, um morador de rua, sujo e maltrapilho e o julgo.
Vejo alguém que dirige um carro esportivo e o julgo.
Como ambos se veem faz parte de como são e de como querem ou podem ser vistos. Ao olhar do outro, a roupa, o perfume, o penteado, e toda a aparência é oferecida.
O maltrapilho sob o olhar do outro
Como então entrar em si, em nossa identidade sem depender do olhar do outro? O que é legitimamente nosso eu?
A memória possibilita isso: buscar no passado, nas lembranças e reviver situações, alegrias, medos, reconstituir um lugar especial, um passeio, um jardim, um animal de estimação, o prato favorito, o calor da cama, uma canção antiga. Talvez por isso seja tão grave, tão desumanizador perder a memória.
O que a memória nos traz vem a nós sem o olhar do outro, sem o obstáculo do que precisamos representar para sermos nós mesmos.
Problema: essa vitória do eu precisa enfrentar ainda o obstáculo do esquecimento.