quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

O que é o ateísmo para os filósofos?

 Diferentemente dos dogmas de fé e das crenças religiosas, o filósofo reflete, indaga, usa de sua própria cultura filosófica para entrar no domínio de Deus como criador.

A consequência deste tipo de abordagem, é chegar ao limite do que são todas as coisas supondo que deve haver um ser superior que as tenha criado. Exemplo: as provas da existência de Deus de São Tomás (ver neste blog).

Há o outro modo de ver o todo, a pergunta pela existência de todos os seres abordada pelo ângulo do que nos limita, de nossa impossibilidade de atinar sobre uma origem transcendente, superior, incognoscível por nossos meios que são a razão, a experiência, o raciocínio lógico, e desse modo vem a aceitação de que nossa capacidade intelectual não tem como pressupor o que faria parte do mistério. É o caso de Wittgenstein, sobre aquilo de que não se pode falar (uso da linguagem, dos signos, das sentenças que afirmam estados de coisa no mundo), deve-se calar. O místico e o silêncio em contraposição ao verificável e dizível.

Se tomarmos um filósofo mais radical no sentido de seu ateísmo, um ateísmo confesso, praticado e explicado, teremos Nietzsche. O fenômeno histórico, cultural, a invencionice humana, enfim, a nossa fraqueza são os responsáveis pela "mitologia das ideias", não há sentido e nem necessidade de explicações causais para chegar à causa primeira; em seu lugar a força que a tudo configura é a da vontade de potência, o devir e a transfiguração criadora de todas as coisas, apenas elas, as próprias coisas. O ideal pregado pelo cristianismo nega a vida, a potência criadora do homem, e prega a aceitação pacata e submissa do rebanho. "Quanto menos alguém sabe mandar, mais quer alguém que mande, um Deus, um príncipe, uma classe, um médico, um confessor, um dogma, uma consciência partidária". Em outras palavras, Nietzsche pretende inspirar o nosso próprio auto comando, livre do sentimento de culpa.

Digamos que o ateísmo de Nietzsche tem um cunho psicológico, e o de Wittgenstein se baseia na limitação humana.

Mais um exemplo de ateísmo filosófico é o de Heidegger: a existência humana é a do ser aí no tempo, impossível sairmos de nossa temporalidade, nossa essência é a dessa existência aí, resta-nos agir em meio a essa temporalidade da qual só a morte nos tira.

Assim, por meio do raciocínio filosófico tanto é possível chegar a Deus, como chegar ao ateísmo. As pedras estão lançadas, cabe a cada um de nós jogar e chegar às suas próprias conclusões. 


segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

O que é metafísica para Kant?

 Kant faz uma crítica à metafísica tradicional (Platão, Aristóteles, Descartes), que se baseia em noções como ideia, forma, pensamento, e propõe uma crítica rigorosa por meio de uma ciência entendida não no sentido de ciência natural, como a Física e sim uma ciência com princípios, determinação clara de conceitos, rigor metodológico, conclusões seguras. Esta ciência seria a metafísica. Seguiu Hume em sua crítica ao princípio de causalidade, quer dizer, a ligação entre causa e efeito decorre de nossos hábitos, as deduções que fazemos por meio da observação de fatos, o de que fogo queima, de que se afoga aquele que não sabe nadar, de que tal planta é comestível, etc.

Então, podemos e devemos desconfiar da razão, ela tem limites. Por outro lado, sem a razão seria impossível fundar princípios metafísicos, seguros e rigorosos. Para haver conhecimento seguro não se pode basear nos sentidos, eles podem nos enganar como Platão demonstrara. Mas, diferentemente deste, para Kant o ser em si mesmo, absoluto, independente daquele que o conhece, é inacessível.

Conhecer o que nos cerca requer o trabalho do intelecto, do entendimento, que digamos assim, é o fiel escudeiro da razão. Ele monta e desmonta o mundo das coisas sensíveis para nós, e isso sem cair na subjetividade, quer dizer, sem que o sujeito seja um tipo de ilha a captar o mundo por suas lentes pessoais e subjetivas. É que o subjetivismo impede a certeza, impede que o conhecimento do mundo seja compartilhado e assegurado.

A alternativa kantiana foi apostar tanto na razão como nos sentidos. O intelecto ou entendimento se "compõe" de conceitos que não dependem das impressões dos sentidos e por isso é capaz de organizar o mundo perceptível, ao mesmo tempo esse mesmo mundo perceptível entra no conhecimento como seu conteúdo. E mais, Kant acrescenta o fator transcendental e a priori. Digamos que a formatação do conteúdo sensível se dê pelos instrumentos do entendimento, e estes não podem ter origem na experiência pois seriam múltiplos e inconstantes, terão portanto, origem na própria razão humana. É esse o sentido de "transcendental", não confundir com transcendente que é tudo que está acima e além de nós. Exemplos: Deus, ideia platônica, o místico de Wittgenstein, o absoluto de Hegel.

Então, "transcendental" é a forma pela qual o entendimento põe ordem nas nossas experiências, por exemplo, localizando acontecimentos, dando a eles a forma temporal, a própria noção de causalidade passa a ser entendida como propriedade formal, nosso modo de conhecer os objetos que é um modo a priori.

E o que seria a "ilusão transcendental"? Se dependêssemos apenas da razão, se não tivéssemos as propriedades e conceitos do nosso entendimento, então a razão produziria a ilusão de que poderíamos ir além da experiência e chegar a uma causa geral de tudo. Kant confia nos predicados do entendimento e são esses os operadores, por assim dizer, da razão. A razão não corre solta, ela usa os princípios da sensibilidade e do entendimento. 

Mas, e quanto à necessidade que os seres humanos têm de postular um ser superior, causa de tudo, Deus? Isso é um abismo inescrutável para a razão humana. O Ser Transcendente e Absoluto não é acessível pelos nossos meios transcendentais. Há outros meios? Sim, os da razão prática. Tema para outra postagem.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Sobre a morte, Montaigne

 "A morte não nos afeta, nem mortos e nem vivos: vivos porque existis; morto porque não existis. Além disso, nada morre até que chega a hora, e o tempo que deixais tão pouco vosso, é como aquele que transcorreu antes de vosso nascimento e não nos diz respeito em nada. Ali onde vossa vida acaba, tudo acabou. A utilidade de viver não consiste no espaço, senão no uso da vida, e há quem vive bastante tempo e viveu pouco. O que viveis está em vossa vontade e não no número dos anos" (Michel de Montaigne, Ensaios, século 16).

                                     


         

Alguns parágrafos antes deste ensaio "De como filosofar é aprender a morrer", Montaigne relembra o dito Sócrates perante seus algozes quando trinta tiranos o condenaram, o filósofo observa que os trinta que o condenaram, serão condenados também, pela natureza.

De um jeito ou de outro, todos morreremos, a questão é que esse pensamento fica afastado, longínquo, a morte é quase sempre a alheia. A de nossos próximos e, principalmente a nossa, fica de escanteio. Lembremos que o tempo de todas as coisas transcorre lenta ou rapidamente. Compare a quase eternidade das estrelas, do movimento e do próprio tempo/espaço com a duração de um frágil inseto e a nossa, a vida dos homens, cuja consciência de estar num aqui e num agora fica absorvida no dia a dia pelas nossas tarefas, afazeres, preocupações, deveres, prazeres, cobranças, amores, relacionamentos, enfrentamentos...

E ainda, dispersão no corriqueiro, diversão sem limites, recusa da responsabilidade.

E o contraponto, na vida adulta a dedicação, o empenho e o total cuidado consigo e com os outros, saber-se frágil e dotar-se de atitude de compromisso, de busca por realizações. 

Sair dessa vida, o que pode acontecer a qualquer momento, com a consciência do dever cumprido. É por isso que a morte prematura, especialmente a de crianças e jovens afeta tanto as pessoas. Não tiveram esse tempo de realizações. E, como disse Montaigne, há os que têm esse tempo e não o utilizam.