domingo, 26 de maio de 2013

O que é idealismo?

O sentido habitual em que se emprega o termo "idealismo" remete à busca de condições ótimas para realizar um projeto de vida considerado o melhor possível. Quando se diz que uma pessoa tem um ideal, significa que ela pretende atingir esse objetivo, mesmo que difícil, até mesmo próximo de um sonho impossível.

O sentido filosófico do termo remete a ideia, isto é, o pensável, portanto, oposto a real, a material, a sensível.

Platão foi o primeiro filósofo idealista. Os seres reais, sensíveis e materiais podem ser destruídos, se decompõem e essas mudanças impedem que se chegue à pureza da essência, à permanência, àquilo que nossa alma inteligível, e apenas ela tem acesso. Mas como são as ideias, quer dizer, de que elas são feitas, qual é seu ser, como podem elas existirem se são ideias?
São concebíveis pelo intelecto, em um mundo à parte, o mundo inteligível. Sem ideia de cada coisa seria impossível o saber, a própria filosofia. Sem ideias os seres não passariam de um emaranhado tosco, impossível pensar, conhecer e, portanto, comunicar. O sensível é cópia do inteligível, mas o comum das pessoas se engana, toma aquilo que vê e sente como ser verdadeiro, quando não passa de sombra do mundo das ideias: "os que contemplam a essência imortal das coisas têm conhecimento nítido e não opiniões", escreveu Platão.
Platão celebrou a Verdade, o Bem e o Belo
Do século IV a. C. vamos a Kant (1724-1804), cujo idealismo é transcendental. Enquanto o mundo perfeito platônico é transcendente, acima do sensível, apenas inteligível - para Kant o inteligível depende do sensível. Sem o material da sensibilidade organizado por meio de sua obrigatória inserção no tempo e no espaço, o conhecimento seria vazio. Tempo e espaço formatam o material sensível a fim de poder representá-lo, pois de outro modo seria caótico. As categorias e conceitos do entendimento são o nível seguinte, permitem formular juízos. Todo ser humano é dotado dessa capacidade ou dessas propriedades formais de sua subjetividade e isso não é algo pessoal nem sentimental, não pertence à nossa vida prática, território da moralidade. Pertence ao entendimento puro e a priori, quer dizer, os objetos que se conhece passam por um tipo de regulação para representar todos os fenômenos, dentro dos limites da razão pura. Ao contrário de Platão, é impossível chegar ao ser em si ideal, nossa capacidade de conhecer depende do que é concebível, e o concebível depende de formas, de regras, de leis como o princípio de causalidade. "O pensamento é o conhecimento mediante conceitos", diz Kant, e "transcendental" é o conhecimento que "não se ocupa tanto com objetos, mas de nosso modo de conhecer objetos na medida em que este deve ser possível a priori".
Kant celebrou a razão
O idealismo de Hegel (1770-1831) é objetivo. As ideias não estão no mundo inteligível de Platão, nem no modo como as conhecemos, na pureza da razão kantiana. Elas foram forjadas pela história. Sem as transformações a que estão sujeitas por meio da cultura, do espírito humano em suas obras (arte, filosofia, religião), não haveria ideias nem humanidade, não haveriam os resultados da ação do espírito encarnado em realizações, não haveria sequer sentido (entenda-se por "sentido" tanto as significações da linguagem como caminho, rumo, progressão). O evoluir dialético das ideias culmina no Espírito Absoluto, sua realização nesse itinerário da consciência: a realidade do mundo humano é feita de saber, há lógica e saber em todas as obras humanas, desde a cultura antiga, passando pelo cristianismo até a conciliação do espírito consigo mesmo com a liberdade outorgada a todos nos Estados constitucionais modernos.
Hegel celebrou a cultura
As críticas a esses pensadores idealistas vieram do realismo, do ceticismo, do materialismo e de pragmatismo. Ficam para próximo (s) post (s).

terça-feira, 14 de maio de 2013

As críticas de Habermas ao marxismo

O método dialético de Hegel foi aplicado por Marx à história dos modos de produção, que foram: escravagista, asiático, feudal, mercantilista, até chegar ao capitalismo. Essas transformações ocorreram pelo esgotamento do modelo, as contradições a eles inerentes levariam aos chamados "saltos de qualidade". Para o marxismo, isso significa que o capitalismo, tal como os anteriores, contém nele mesmo contradições que são o germe de sua própria destruição. Marx se referia ao capitalismo que nascera em sua época, o século 19.
As condições do capitalismo e da classe dos trabalhadores eram aviltantes. A solução seria uma revolução, uma classe revolucionária conduziria a mudança para o socialismo, e futuramente o comunismo com a abolição da propriedade privada dos meios de produção. 
Alguns países passaram por essa revolução com alto custo, perda de vidas, de liberdade, de representação social e política. E outras mudanças viriam: crise financeira (1919), duas guerras mundiais, a explosão da bomba atômica, a guerra fria, a descolonização da África; e, na segunda metade Europa e EUA expandiram a indústria com sofisticação crescente da tecnologia. As revoltas operárias e a revolução comunista ficaram para trás, o muro de Berlim caiu, a China ressurgiu como segunda potência mundial. A pobreza, principalmente no hemisfério sul não cedeu, pelo contrário. Esses países passaram a depender do mundo desenvolvido, o qual passa por nova crise financeira. 
O que aconteceu com a revolução dos trabalhadores, com a revolução comunista? Cada vez mais restritas às bandeiras de esquerda em alguns poucos países. E ainda persistente no discurso acadêmico, no Brasil apadrinhada pelo discurso pedagógico, pela cartilha do MST, presente nos livros didáticos de história que insistem em ideologizar. Sintomático que esse discurso tenha desaparecido da CUT e do PT tão logo o partido assumiu o governo. Há uma evidente incompatibilidade entre governar e levar a sério as lições do marxismo. 

"Hoje em dia, escreveu Habermas, certamente o portador de uma transformação, à qual Marx deu tanta ênfase, não é mais a burguesia de 1848, nem determinada classe social que domina o quadro nacional, mas um sistema econômico anônimo que opera em nível mundial e que não está ligado a estruturas de classes identificáveis facilmente" (Diagnósticos do Tempo, p. 137).

Ao se comparar a situação de operários de Manchester na Inglaterra do século 19, a exploração e o sofrimento deles nos primórdios do capitalismo com as condições atuais, notam-se inúmeras transformações. Entre elas a aplicação mais equânime da justiça, condições melhores de trabalho e outros tipos de reivindicação: no lugar de uma revolução socialista, acesso aos bens de consumo, conforto, saúde, escolas de qualidade e gratuitas para os filhos, melhor salário, participação nos lucros das empresas, habitação digna, transporte, e mesmo lazer. É verdade que grande parte da população mundial não tem acesso a esses bens e a condições mínimas de sobrevivência. Expandir a riqueza e ao mesmo tempo distribuí-la cabe a governos e não a banqueiros ou financistas! Isso ficou evidente com a crise desencadeada em 2008 pelo capitalismo financeiro e pela ganância, o lucro alto, imediato e fácil. No lugar de "dissolver" o capitalismo (ele é dissolúvel?!), a questão tem sido até que ponto o Estado e governos devem e podem intervir na economia de um país.

Para refletir: a ideologia marxista, a pregação de uma revolução de classe, a própria noção de classe social, esconde modificações históricas sistematicamente ignoradas. O que é exatamente "ter consciência de classe"? Se as representações sociais fossem influenciadas por essa consciência, como poderia surgir no seio da sociedade de classes, a classe revolucionária? A consciência revolucionária teria que nascer fora da própria sociedade. E mais: os países socialistas foram forjados por uma classe revolucionária? O que aconteceu quando essa classe assumiu o poder na ex-URSS, na China, em Cuba?

A esquerda marxista "tem um conceito estreito de práxis", diz Habermas. Se a prática social se limitasse às relações econômicas de produção, a vida em sociedade seria pautada apenas pelo mercado. Por mais poder que este tenha, há o outro lado, outros tipos de práticas sociais. As sociedades modernas asseguram direitos e deveres de cidadãos, as obrigações valem para todos; o racismo passou a ser crime; surgiram novas representações políticas. As demandas são pelo acesso à educação e à informação, a valorização da produção cultural, das artes; as reivindicações das minorias; a liberdade de credo e culto. Nada disso pode ser reduzido à "consciência de classe".
E mais, os aspectos de realização pessoal, a busca por uma vida satisfatória e plena, a ética em nossas ações. Nada disso lembra ou depende da práxis de uma classe revolucionária.

sábado, 4 de maio de 2013

O que Foucault diria sobre o casamento gay?

É provável que ele seria contra o casamento gay, mas evidentemente que não pelas razões do pastor Feliciano!
O pastor se baseia em um credo pentecostal que condena o homossexualismo. Inclusive, pasmem, a última proposta da Comissão de Direitos Humanos e Minorias é excluir do código dos profissionais de psicologia cláusulas sobre o homossexualismo. Uma dessas cláusulas diz que não se trata de doença, portanto, longe de precisar de cura. Isso foi um grande avanço, significa respeito pela pessoa, justamente o que a Comissão de Direitos joga no lixo.
Deputado da discriminação de minoria na Comissão de Direitos Humanos e de Minorias, mais um subproduto gerado no Congresso Nacional

Voltando a Foucault, o filósofo da história da sexualidade, o filósofo que enfrentou pessoalmente preconceito por ser gay, morreu com aids, a chamada "doença gay" na década de 80; o filósofo que denunciou a violência dos hospitais psiquiátricos e da prisão; o filósofo que destrinchou o poder do saber médico, psiquiátrico, psicológico com seus "tratamentos"; o filósofo que viu nesses discursos, práticas e políticas das quais nasce um tipo de subjetividade passível de correção, de disciplina, de normalização, de punição; o filósofo que viu na sexualidade não uma pulsão reprimida (como em geral a vê a psicanálise), mas sim resultado de dispositivos para encaixar desejos, comportamentos, prazeres, em um esquema de verdade; o filósofo para o qual a verdade não é a descoberta de fatos, a verdade é constituída por discursos, por normas, por práticas do cotidiano; a verdade também se instala mesmo em instituições, como o hospital psiquiátrico, justamente o caso do homossexualismo tratado e tratável por ser doença (física, mental, psíquica!?), e mesmo aberração. Enfim, Foucault foi um dos primeiros e principais pensadores a defender publicamente a causa gay.
Foucault (1926-1984) em seu gabinete de trabalho

Pois bem, poderia então Foucault ser contra o casamento gay, como estamos especulando?
Sim, em nome da liberdade de optar por estilos de vida alternativos, por políticas de afirmação não do sexo, nem da sexualidade, e sim de viver com mais liberdade, estilos de vida em que importam mais o prazer, a amizade, as relações afetivas, do que analisar que tipo de desejo seria esse ou institucionalizar a relação

A avaliação moral, médica, jurídica ainda é responsável pelo exame, pelo escrutínio desse "tipo de vida". O homossexual tem sido condenado por credos, e até mesmo por leis, seu comportamento é condenável pela moral burguesa, execrado pelo moralismo de certas religiões, perseguido e exposto à violência de fanáticos. Ele ainda é classificado como se classificam doenças e animais... 

Sendo assim, o casamento gay realmente levaria a superar ou pelo menos enfrentar todos esses problemas? Dificilmente.
Casamento é uma instituição, ele surge com o que Foucault chamou de "dispositivo de aliança". A família moderna ainda sustenta esse dispositivo, que cerca de cuidado seus membros e restringe o sexo ao leito conjugal, à procriação. 
Ou seja, casar implica em institucionalizar uma relação que, segundo Foucault deveria representar, pelo contrário, certa rebeldia, até mesmo beirar certo anarquismo. "Segundo Paul Veyne, nos últimos meses de vida Foucault costumava conversar sobre essas estilizações da vida, esses trabalhos de si para consigo mesmo para constituir um eu fora dos modelos e dos códigos impostos" (ARAÚJO, 2008, p. 179).

Assim, o argumento de que o casamento gay confere direitos como herança, igualdade, reconhecimento social, etc.,  não seria ceder à uma pressão da sociedade? Talvez Foucault respondesse afirmativamente.