quarta-feira, 29 de abril de 2015

Sobre o uso inapropriado da Filosofia

Em recente artigo (Gazeta do Povo, 20 abril) o filósofo Luiz Felipe Pondé enaltece Lucrécio, autor de "Da Natureza das Coisas", século I a. C. Os pontos ressaltados são a concepção de cosmo com limite, o acaso, a natureza se compõe de átomos em livre movimento, e, como diz Pondé, "morreu, acabou". Tudo bem, expressa seu materialismo, o que é uma postura filosófica defensável e respeitável. O mau uso de seu materialismo vem de sua pura e simples condenação de se pensar em outra possibilidade. Liberdade, contingência, mas não como coisa de adolescente, defende ele; felicidade, mas não aquela proporcionada pela abertura de um shopping center. E prossegue, sempre na primeira pessoa, eu creio que tudo acaba, eu condeno quem acredita na vida eterna, eu condeno o prazer imediato, e eu digo que tudo é tão simples quanto cuidar bem das eventuais mulheres que compartilharem de sua cama.
Ops! Não estaria Pondé sendo moderno, bacana, de certa forma querendo se mostrar contestador e, talvez, chocando seus leitores?
Filosofar requer respeito às posições de outros filósofos que pensam diferentemente, requer olhar sempre para o outro lado, requer despojar-se de orgulho e de jactar-se como aquele que tem razão, que tem certeza, e isso apoiado em alguns conceitos retirados de outro filósofo, no caso Lucrécio, cujo pensamento é interessante, e, como todos os filósofos, leva a refletir, a clarear, a mostrar novos caminhos, outras visões, mas, certamente, sem a vaidade de pretender que sua posição elimina todas as outras. Em especial com argumentos que detonam o adversário ("são teenagers" adjetiva Pondé, o que pressupõe ser ele adulto...) em lugar de dialogar e expor razões, sempre com argumentos.
O uso inapropriado da filosofia, para o enaltecimento próprio e o desprezo pelo outro, leva a becos sem saída. Quer dizer, se você é tão sábio assim, eu humildemente me recolho à minha insignificância.
Pelo contrário, filosofar deve ampliar horizontes, mostrar que tais e tais filósofos, ao adotar tais e tais posições, abrem perspectivas, arejam o pensamento.
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Um exemplo de crítica aos que defendem a vida eterna, sem desprezar essa posição, se encontra na seguinte reflexão de Wittgenstein: "como seria uma vida eterna?" Imediatamente surgem questões, o inusitado, a beleza da Filosofia!
Desse modo, o público interessado em filosofia, especialmente os alunos de filosofia, aprenderiam algo mais, refletiriam com mais acerto, ficariam intrigados com a proposta de se pensar como seria "vida" que fosse também "eterna". Há nessa proposta um oximoro e são conceitos combináveis ou há um paradoxo? Quer dizer, como pode a vida que implica necessariamente em nascimento e morte, portanto, inteiramente imersa na temporalidade, ser eterna, durar para sempre?
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Filósofos não podem simplesmente afirmar terem razão e desprezarem seu oponente dialógico. Filosofar requer troca de ideias e conceitos.
Então, qual o sentido de filósofos adotarem uma corrente, defenderem suas noções e criarem escolas de pensamento?
Isso é próprio da Filosofia, mostrar que o pensamente filosófico não se esgota, que há diferentes modos de pensar, e, ao criticar outras posições, colaboram para a extensão e o aprofundamento da crítica mútua.
O contrário não é Filosofia e sim doutrinação, ideologia, é pretender convencer e mesmo vencer com seu ponto de vista exclusivo.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

"Penso que vai chover, logo existo" (!!!)

A frase acima foi pronunciada por Wittgenstein em um debate em Oxford em fins dos anos 40. O tema era o cogito de Descartes. Trata-se de usar seu método de mostrar o que faz e o que não faz sentido dizer, conforme o contexto, e mais, sua concepção de que problemas filosóficos podem e devem ser dissolvidos pelo uso da linguagem comum. Isso irritou o debatedor. Afinal, o que é o cogito?, indagou este. Ora, filósofos e seus problemas, como essência, mente, intenção, realidade, verdade, e tantos outros conceitos filosóficos, quando retirados da problematização que se faz em Filosofia, por meio de generalizações e abstrações, nada significam.
Assim, se alguém dissesse: "Penso que vai chover, logo existo", parodiando o famosíssimo e para lá de emblemático, "Penso, logo existo", base da filosofia racionalista, Wittgenstein diz que não se saberia do que tal pessoa estivesse falando.
Dissolução da linguagem privada, e também de mente, pensamento, consciência. São palavras que só significam quando usadas em formas de vida, quer dizer, em certos jogos de linguagem.
Tudo começou com a reflexão sobre lógica quando tinha apenas 19 anos. Como se relacionam linguagem e realidade? O mundo consistiria de fatos, eles constroem . Aos poucos o que faz sentido dizer não está mais inscrito nas proposições lógicas e Wittgenstein põe em dúvida o arcabouço lógico-linguístico do mundo, do dizível, do constatável, e estende sua análise para além da "pureza cristalina da lógica". No dia a dia, o uso normal da linguagem desautoriza o esquema de espelhamento entre proposições e estados de coisa.
Em meio aos problemas filosóficos, outros o atormentavam, como se lê em sua biografia (O dever do gênio, de Ray Monk) mais, muito mais. As dúvidas com relação a sua pessoa, sua integridade moral e emocional, seus dilemas de homossexual, como dominar e dar sentido aos seus atos, a necessidade de examinar as questões filosóficas, em especial a filosofia da matemática, a sensação ambígua de que mesmo com inequívoco interesse pela filosofia, a vida prática parecia-lhe mais convidativa, mas acolhedora e proveitosa.
Filósofos profissionais em sua arrogância e pretensão, eram abominados. A vida reclusa, ensinar crianças em aldeias remotas, cuidar de jardim, serviços militares na I Guerra, e mais tarde serviços em hospital com feridos da II Guerra, lhe era preferível, fazia sentido, ajudava muito mais do que suas aulas em Cambridge.
Russell foi amigo e protetor, o que não impediu de criticá-lo e mostrar-lhe que a teoria dos tipos não dava conta da lógica, que lógica e matemática eram dois terrenos distintos.
A construção da única obra publicada em vida, Tractatus Logico-Philosophicus, foi árdua, retirou-se para a Noruega a fim de dedicar-se à reflexão. A questão da igualdade não pode ser dita, "A" é o mesmo que "A", pode ser mostrada, exposta; "B" ser diferente de "x", "y", "z" pode ser mostrada, a lógica se constitui de conjuntos de signos; entre seus métodos, o das tabelas de verdade. A esfera mística, em que as dúvidas o perturbavam, só pode ser mostrada em ações. Ao mesmo tempo em que necessitava da solidão, necessitava também de amizades sinceras, e mesmo de amor. Riqueza, em especial a de sua família, foram dispensadas, gostava de levar uma vida restrita.
Ironizava tudo que era levado a sério, inclusive sua própria filosofia, e desconfiava da ciência, da cientificização da cultura e de como a sociedade cultuava a ciência e o cientista.
Isso não o impediu de inventar máquinas e instrumentos e isso tendo sempre em vista necessidades práticas.
"A ética, na medida em que brota do desejo de dizer algo sobre o sentido da vida, o bem absoluto, o valor absoluto, não pode ser ciência. O que a ciência afirma, nada acrescenta".
Excelente recado aos que pretendem que a ciência explique tudo, até mesmo o sentimento de crença religiosa.
Wittgenstein é desses filósofos revolucionários, não via problema em pisoteiar pilares da Filosofia para continuar respirando.