sexta-feira, 20 de julho de 2012

O jovem Kant: desmanchando alguns pré-juízos

 Atualmente há nada menos do que 483 biografias de Kant. Mas não é exagero afirmar a necessidade de ler a biografia escrita com primor de estilo e seriedade de pesquisa de Manfred Kuehn (2001), "Kant, a biography". Ele recorre a biógrafos, a cartas, a uma extensa pesquisa histórica e sociológica para reconstituir em detalhes a vida de Kant, seu modo de viver, sua educação, sua família, sua cidade natal, Königsberg, a Prússia, enfim, a evolução pessoal e intelectual de Kant.
Kant tinha uma constitução franzina (1.57 de altura), louro, com penetrantes olhos azuis; provavelmente sofria de angina.


(1724-1804)

Seu pai fabricava arreios, a infância decorreu sem dificuldades financeiras, que vieram mais tarde quando da morte de seu pai. Kant tinha apenas 22 anos. Com a morte da mãe, aos 40 anos, Kant que era o filho mais velho, teve que assumir a responsabilidade pelos seus irmãos. Teve ajuda financeira de um tio. Os estudos foram feitos em colégio que seguia a ortodoxia da teologia pietista e cuja disciplina era extremamente rígida.
Todos conhecem episódios até mesmo anedóticos sobre a vida metódica e a influência da religião pietista (os pietistas faziam seu próprio estudo e leitura da Bíblia, importava a devoção pessoal, caridade, desprendimento e a salvação viria após arrependimento e conversão).
Mas Kuehn considera que a teologia pietista não teve o efeito poderoso na filosofia madura de Kant. Ele admirava as ações dos pietistas, não suas teorias teológicas. Que ações eram essas? Respeito, cumprimento dos deveres não pelo medo de punição, evitar excessos, a sinceridade, ter confiança em si, separação entre moralidade e religião.
"Se o pietismo teve absolutamente alguma influência em Kant, então essa foi negativa" afirma o biógrafo (p. 54). Basta pensar em teses fundamentais, como a da autonomia da vontade, a moralidade racional e não sentimental, a separação entre religião e moral para concordar com Kuehn.
Kant era solitário, metódico ao extremo, misógeno, nunca saiu de Königsberg?
Em geral é assim que Kant é conhecido, o que não passa de uma caricatura. 
Sua vida era modesta, tinha hábitos frugais, mas não vivia isolado, teve amigos, alguns dos quais bem próximos, se interessou por algumas mulheres, pensou até em pedir uma delas em casamento, desistiu por não ter como sustentar uma família.
Quando passou a dar conferências na universidade e ser pago por elas, se tornou um "elegante professor" entre os anos 1755-1764, participando ativamente do debate intelectual entre os influentes professores da universidade. Dos 36 aos 39 anos foi figura central nos círculos sociais de Königsberg.
Enfim, há todo um conjunto de circunstâncias que pesaram na constituição do pensamento maduro de Kant e que são desconhecidas ou menosprezadas.

Com relação à amizade, quando da morte de seu amigo Funk, assim ele reflete em carta escrita à mãe do amigo morto prematuramente:

Todo ser humano faz planos sobre seu próprio destino no mundo. Há habilidades que ele quer aprender, há a honra e a paz que ele espera assim alcançar, felicidade duradoura na vida conjugal e uma longa lista de prazeres ou projetos compõem as figuras da lanterna mágica, que ele imagina para si mesmo e que passam continuamente em seus devaneiios. A morte, que põe um fim a este jogo de sombras, se mostra apenas a uma grande distância e é obscurecida e tornada estranha pela luz que envolve os locais mais aprazíveis. Enquanto sonhamos, nosso verdadeiro destino nos conduz de um modo inteiramente diferente. A parte que esperamos raramente aparece do jeito que gostaríamos e vemos nossa esperança ser arremessada a cada passo nosso ... até que a morte, que sempre pareceu distante, de repente acaba com todo o jogo (1760).

PS: sobre Kant na maturidade e na velhice, escreverei oportunamente.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Bóson de Higgs, Deus e a metafísica

A Física teórica, que usa cálculos e comprova suas hipóteses pela experiência e/ou pelos produtos técnicos e tecnológicos, é de certo ponto de vista, recente. Surgiu nos século 16, com Galileu, foi aperfeiçoada por Newton no século 17 e deu enormes saltos no século 20 com o modelo atômico.

Partículas já foram pressupostas pela filosofia natural com Demócrito, século 6 a. C., mas a intenção dos primeiros filósofos era dar uma resposta metafísica sobre a causa natural e primeira da existência de corpos e de seu movimento.

Há diferenças importantes entre a fé em Deus (monoteísmo cristão), a ciência natural e a indagação filosófica. Essa diferença reside em métodos, propósitos, perspectivas, resultados e visões de mundo.A religião e a crença em Deus dispensam provas, não requerem experiência sensível, muito menos resultados aplicáveis.

É muito estranho e mesmo absurdo, paradoxal, que a comprovação da existência de uma partícula, por mais essencial que ela seja para entender a relação entre matéria e energia, seja "a partícula de Deus", como tem sido chamado o bóson de Higgs.
bóson de Higgs

Nesse caso Deus ou seria materializado ou então teria que fazer parte de sua própria criação. Então, não seria Deus como os cristãos o concebem, e como pressupõe a fé em um ser absoluto, transcendente, que tudo sabe e que não está em lugar ou espaço algum. Criar algo, a tal partícula que decifraria todo o universo, significa que o próprio Deus seria perfeitamente inteligível pelos humanos. Mas como Deus criou, precisou sair de si? E partir do que, como? De sua vontade?

Faz parte da religião e mesmo da ciência e da filosofia, o desconhecido, o misterioso. Nossa mente, nossa inteligência e o modo como significamos e nos comunicamos resultou de uma evolução histórica; o modo como produzimos conhecimento depende de teorias, cálculos, fórmulas, instrumentos. A ciência progride com esses recursos. E todos eles são produtos de nossa história e de nossa evolução. Não há como sair dessas situações e circunstâncias. Quer dizer, o modo como indagamos e as razões que nos incitam dependem dos tipos de conhecimento, da curiosidade, da linguagem e dos signos. São eles que permitem fazer essas perguntas. Respondê-las pode abrir caminhos, ou não...
E essas são reflexões filosóficas.

A metafísica é aquela parte da filosofia que indaga pelas causas primeiras de todas as coisas, os princípios do ser, como é possível que haja ser e não nada. É um pouco difícil entender essas perguntas em torno do ser, do nada, do vir a ser, se os seres são determinados, como identificá-los, se todos têm uma finalidade ou não, se são fruto do acaso ou de um princípio superior.

A ciência até pode ser reflexiva e mesmo crítica quando os cientistas se perguntam sobre os limites de seu conhecimento e os objetivos mais gerais da ciência, sobre seus fundamentos e modelos (matemático, empírico, lógico, tecnológico).
Mas a ciência não deve e nem pode pretender ter a verdade última ou ter descoberto e decifrado a origem do universo.
Certa dose de ceticismo é uma precaução contra a risível pretensão de, com nossos instrumentos e recursos, responder a todas as nossas dúvidas.
Inclusive porque o tipo de pergunta que fazemos, pela causa ou origem, é característica de nosso humano modo de ser.