quarta-feira, 25 de outubro de 2023

A magia da memória

 Evocar as diversas e incontáveis imagens que nossa memória armazena, é reviver alegrias, dores, sensações, experiências, algumas importantes, cruciais para nossa vida, outras irrelevantes mas, ainda assim, interessantes e curiosas.

 A enormidade de experiências e de vivências que são depositadas na memória podem ser elencadas, evocadas e nos alegrar, nos estimular, nos surpreender. Todo esse, digamos, arsenal, integra o que somos, nossa pessoa, nossos sentimentos, adesões e rejeições, algo vem à tona, algo fica retido e requer um estímulo, uma associação, uma ligação com o passado para ressurgir.

A casa, um quarto, a escola, a mala em que iam os cadernos, o uniforme, o sapato; as festas de aniversário, o natal, o ninho com chocolate da páscoa; as casas dos vizinhos, a casa dos parentes, o quintal dos avós; o carro da família, as viagens e passeios; cenas de filmes e impressões de leituras afloram, aqui e ali muitas vezes nem mais suspeitávamos de sua permanência dormente na memória. E, certamente, as brincadeiras. 



A evocação acontece com associações, em conversas, nos sonhos, com o modo de reagir a certa ocorrência, com estímulos visuais, auditivos, cheiros e gostos. Eles ressurgem como se fossem fotos que remetem a fatos, podem surpreender ou decepcionar, pois a rememoração pode vir carregada de emoções como as de alegria, de tristeza, de pesar, de arrependimento, de consolo.

A memória pode confirmar as inumeráveis vivências, mas pode igualmente confundir, florear, enganar, substituir, desprezar, fantasiar. Ora, essas atitudes de proteção são parte essencial dos truques e artimanhas da memória. São nossos desejos, medos, fraquezas que colocam uma tela, que pintam um quadro, digamos, aceitável. Entender, tolerar, reconhecer, são meios de evitar o esfacelamento, as quebras, os rompimentos. Por vezes sem volta.

Ainda assim, a memória consola. Mas pode ficar obscurecida, sensações e experiências apagadas, socadas, camufladas, escondidas, e de quem?! Da própria pessoa, acabam por fazer parte de sua vida, mas sem integração com essa vida, sem correspondência com o passado. 

A vivacidade e a multiplicidade do tecido da memória permite que se vá do presente ao passado e o passado fique integrado ao presente. A isso poderíamos chamar de vida completa.

A perda da memória, neste sentido, é a perda dessa vida completa.

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Chego aos campos e vastos palácios da memória onde estão tesouros de inumeráveis imagens trazidas por percepções de toda espécie. Aí está também escondido tudo o que pensamos, quer aumentado quer diminuído (...). Enfim, jaz aí tudo o que se lhes entregou e depositou, se é que o esquecimento ainda o não absorveu e sepultou. Santo Agostinho, Confissões, livro X, § 8.

domingo, 15 de outubro de 2023

Os impasses da guerra no Oriente Médio

 O rumo inesperado que os ataques do Hamas sobre território israelense tomou durante a semana (de 07 de outubro ao dia em que escrevo, 15 de outubro 2023), se agrava a cada dia. Tomar partido parece que se tornou a única obrigação, e análises minimamente coerentes, com visão histórica e de conjuntura se perdem em meio a controvérsias, exige-se tomar partido, condena-se um ou outro lado, sem considerar o que está em jogo.

E o que está em jogo? A soberania de dois povos, o direito ao território, o direito à vida, o direito a instituições legítimas, ao governo próprio, a sua autodeterminação.

Na guerra de Israel contra o Hamas, surgem impasses, parece que estamos num beco sem saída, difícil sair de um estado de dúvida diante de tantos fatores a serem considerados. Que lado tomar?



É possível considerar dois tipos de adesão: a participação às claras, com responsabilidade pelo que é afirmado e passível de comprovação. E o engajamento cego que obriga a tomar partido, sem examinar razões e fatos.

O modo digamos, "participativo" é guiado por argumentos, as decisões são guiadas pelas consequências que tanto podem ser positivas como prejudiciais. Há abertura para críticas, capacidade de revisão diante de novos acontecimentos, busca permanente por esclarecimento, e, em especial, ver e de entender o que está em jogo, o outro lado da moeda. Aceitar quando evidências mostram que você pode estar errado. 

O modo "engajamento" visa tomar partido e execrar o outro lado, agir e decidir achando que você  está sempre certo, mesmo diante de evidências em contrário. O objetivo dos engajados é convencer, eliminar o adversário, obstinar-se com sua particular doutrina e visão de mundo, impedir a circulação de ideias, ver o mundo através de um véu que obscurece a realidade.

Há o estado de Israel, reconhecido, pelo qual judeus ao redor do mundo lutaram, que foi legitimado e cujas fronteiras foram estabelecidas. Ora, tais fronteiras sofreram e sofrem ameaça, precisaram ser defendidas e, em nome dessa defesa, expandidas. A que custo?

Há o povo e um estado palestino que precisa de um território, de governo legítimo, de reconhecimento, de fronteiras, exatamente e tanto quanto Israel.

E, finalmente, há uma governança mundial fraca, sem poder de atuar, hesitante chamada ONU. O poder real é o de países democráticos, que deveriam olhar para os dois lados, não de forma engajada com bandeiras ideológicas, e sim de forma participativa. E nisso encontra a barreira de países muçulmanos radicais, que sustentam o terrorismo, que treinam e armam milícias como o Hamas. 

Esses são os impasses. Indiscutível a defesa  de Israel dos ataques do Hamas e seus fanáticos, o pior e mais extremo exemplo de engajados, a ponto de impedirem que os próprios palestinos se desloquem e possam se salvar. Se isso não é terror, o que então é terror?

O neoliberalismo segundo Foucault

O modo de Foucault abordar o neoliberalismo surpreende, difere da maioria das críticas, e sugere um impasse. 

As críticas martelam na mesma tecla, condenação a priori, sem um exame mais sério da história política e econômica do Ocidente desde fins do século 19. A base teórica dessas críticas é o marxismo e sua doutrinação, especialmente em universidades, talvez mais do que por meio de partidos políticos. Para esses setores da sempre vigilante "intelligentsia", os países capitalistas, (China inclusive?) exploram, concentram a riqueza nas mãos dos poderosos, dos bancos e instituições financeiras que operam em seu próprio interesse, e oprimem os países pobres, o terceiro mundo, que se endivida, empobrece, estende as mãos e recebe migalhas. Fora FMI, Wall Street, abaixo o neoliberalismo e o capitalismo opressor "estadunidense".




Pois bem, a análise de Foucault não se baseia em ideologia. E Foucault não é e nunca foi adepto de socialismo ou comunismo (ver postagem neste blog).

A pergunta, como é possível analisar o neoliberalismo fora dos quadros teóricos do marxismo, que pregam socialismo/comunismo? Em aulas no Collège de France, nos cursos sobre governo e governabilidade, Foucault apresenta sob a forma de uma história do pensamento, algo diverso. Não de um ponto de vista político, sociológico e nem como uma teoria econômica que apenas reativa o liberalismo clássico. Diferentemente da crítica de teor marxista, sua análise não parte do pressuposto de que a sociedade de mercado seria uma forma insidiosa de capitalismo. Na leitura de Foucault, o neoliberalismo refere e projeta sobre uma arte de governar os princípios de uma economia de mercado, não pelo “laissez-faire” e sim pela vigilância, por uma atividade de permanente concorrência entre monopólios, o que requer uma política ativa. O governo intervém para regular, mas quem dá as regras é o mercado, no sentido de aumentar a produção e o lucro, de estabilizar os preços. O desemprego fica contornável com atividades mais rentáveis.

A política social equilibra os efeitos da desigualdade, com o surgimento da medicina coletiva e serviços que a melhoria na economia possibilita transferir para esses benefícios sociais. A desigualdade afeta a todos, e a única e verdadeira política social é o crescimento econômico. Não mais o homem da troca, e sim o empreendedor, não é a mercadoria que está em jogo, como pensara Marx e sim uma ética social de empresa, cuja forma se estende à cidade e à família. O sistema jurídico se adapta a esse crescimento e diferenciação das empresas.

O capitalismo tem papel político, as leis de mercado são amparadas e regulamentadas juridicamente com medidas “corretivas e inovações institucionais que permitirão instaurar, enfim, uma ordem social economicamente regrada sobre a economia de mercado" ao aplicar as regras de um Estado de direito, diz Foucault.

Não mais a soberania de um rei, nem Estado coercitivo e policialesco. O pressuposto do neoliberalismo são instituições concretas e públicas, tribunais administrativos que introduzem uma legislação formal no capitalismo. Isso é decisivo para haver crescimento, investimento, ações corretivas. Ao Estado de direito cabe fornecer as regras que garantem o jogo entre as empresas. A justiça se torna presente como mais um serviço público para dirimir conflitos.

Essa é a governabilidade moderna, seus mecanismos são os de mercado, empresariais. Assim, socialismo e com mais razão, comunismo, são regimes ingovernáveis, é que governar exige atualmente  regras institucionais regidas pela economia tal como descrita acima. Daí o impasse, impossível fugir das regras de tipo empresarial. As palavras de ordem da esquerda marxista contra o neoliberalismo, nem de longe o atingem. Falta-lhes visão histórica.