quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

O que é o ateísmo para os filósofos?

 Diferentemente dos dogmas de fé e das crenças religiosas, o filósofo reflete, indaga, usa de sua própria cultura filosófica para entrar no domínio de Deus como criador.

A consequência deste tipo de abordagem, é chegar ao limite do que são todas as coisas supondo que deve haver um ser superior que as tenha criado. Exemplo: as provas da existência de Deus de São Tomás (ver neste blog).

Há o outro modo de ver o todo, a pergunta pela existência de todos os seres abordada pelo ângulo do que nos limita, de nossa impossibilidade de atinar sobre uma origem transcendente, superior, incognoscível por nossos meios que são a razão, a experiência, o raciocínio lógico, e desse modo vem a aceitação de que nossa capacidade intelectual não tem como pressupor o que faria parte do mistério. É o caso de Wittgenstein, sobre aquilo de que não se pode falar (uso da linguagem, dos signos, das sentenças que afirmam estados de coisa no mundo), deve-se calar. O místico e o silêncio em contraposição ao verificável e dizível.

Se tomarmos um filósofo mais radical no sentido de seu ateísmo, um ateísmo confesso, praticado e explicado, teremos Nietzsche. O fenômeno histórico, cultural, a invencionice humana, enfim, a nossa fraqueza são os responsáveis pela "mitologia das ideias", não há sentido e nem necessidade de explicações causais para chegar à causa primeira; em seu lugar a força que a tudo configura é a da vontade de potência, o devir e a transfiguração criadora de todas as coisas, apenas elas, as próprias coisas. O ideal pregado pelo cristianismo nega a vida, a potência criadora do homem, e prega a aceitação pacata e submissa do rebanho. "Quanto menos alguém sabe mandar, mais quer alguém que mande, um Deus, um príncipe, uma classe, um médico, um confessor, um dogma, uma consciência partidária". Em outras palavras, Nietzsche pretende inspirar o nosso próprio auto comando, livre do sentimento de culpa.

Digamos que o ateísmo de Nietzsche tem um cunho psicológico, e o de Wittgenstein se baseia na limitação humana.

Mais um exemplo de ateísmo filosófico é o de Heidegger: a existência humana é a do ser aí no tempo, impossível sairmos de nossa temporalidade, nossa essência é a dessa existência aí, resta-nos agir em meio a essa temporalidade da qual só a morte nos tira.

Assim, por meio do raciocínio filosófico tanto é possível chegar a Deus, como chegar ao ateísmo. As pedras estão lançadas, cabe a cada um de nós jogar e chegar às suas próprias conclusões. 


segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

O que é metafísica para Kant?

 Kant faz uma crítica à metafísica tradicional (Platão, Aristóteles, Descartes), que se baseia em noções como ideia, forma, pensamento, e propõe uma crítica rigorosa por meio de uma ciência entendida não no sentido de ciência natural, como a Física e sim uma ciência com princípios, determinação clara de conceitos, rigor metodológico, conclusões seguras. Esta ciência seria a metafísica. Seguiu Hume em sua crítica ao princípio de causalidade, quer dizer, a ligação entre causa e efeito decorre de nossos hábitos, as deduções que fazemos por meio da observação de fatos, o de que fogo queima, de que se afoga aquele que não sabe nadar, de que tal planta é comestível, etc.

Então, podemos e devemos desconfiar da razão, ela tem limites. Por outro lado, sem a razão seria impossível fundar princípios metafísicos, seguros e rigorosos. Para haver conhecimento seguro não se pode basear nos sentidos, eles podem nos enganar como Platão demonstrara. Mas, diferentemente deste, para Kant o ser em si mesmo, absoluto, independente daquele que o conhece, é inacessível.

Conhecer o que nos cerca requer o trabalho do intelecto, do entendimento, que digamos assim, é o fiel escudeiro da razão. Ele monta e desmonta o mundo das coisas sensíveis para nós, e isso sem cair na subjetividade, quer dizer, sem que o sujeito seja um tipo de ilha a captar o mundo por suas lentes pessoais e subjetivas. É que o subjetivismo impede a certeza, impede que o conhecimento do mundo seja compartilhado e assegurado.

A alternativa kantiana foi apostar tanto na razão como nos sentidos. O intelecto ou entendimento se "compõe" de conceitos que não dependem das impressões dos sentidos e por isso é capaz de organizar o mundo perceptível, ao mesmo tempo esse mesmo mundo perceptível entra no conhecimento como seu conteúdo. E mais, Kant acrescenta o fator transcendental e a priori. Digamos que a formatação do conteúdo sensível se dê pelos instrumentos do entendimento, e estes não podem ter origem na experiência pois seriam múltiplos e inconstantes, terão portanto, origem na própria razão humana. É esse o sentido de "transcendental", não confundir com transcendente que é tudo que está acima e além de nós. Exemplos: Deus, ideia platônica, o místico de Wittgenstein, o absoluto de Hegel.

Então, "transcendental" é a forma pela qual o entendimento põe ordem nas nossas experiências, por exemplo, localizando acontecimentos, dando a eles a forma temporal, a própria noção de causalidade passa a ser entendida como propriedade formal, nosso modo de conhecer os objetos que é um modo a priori.

E o que seria a "ilusão transcendental"? Se dependêssemos apenas da razão, se não tivéssemos as propriedades e conceitos do nosso entendimento, então a razão produziria a ilusão de que poderíamos ir além da experiência e chegar a uma causa geral de tudo. Kant confia nos predicados do entendimento e são esses os operadores, por assim dizer, da razão. A razão não corre solta, ela usa os princípios da sensibilidade e do entendimento. 

Mas, e quanto à necessidade que os seres humanos têm de postular um ser superior, causa de tudo, Deus? Isso é um abismo inescrutável para a razão humana. O Ser Transcendente e Absoluto não é acessível pelos nossos meios transcendentais. Há outros meios? Sim, os da razão prática. Tema para outra postagem.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Sobre a morte, Montaigne

 "A morte não nos afeta, nem mortos e nem vivos: vivos porque existis; morto porque não existis. Além disso, nada morre até que chega a hora, e o tempo que deixais tão pouco vosso, é como aquele que transcorreu antes de vosso nascimento e não nos diz respeito em nada. Ali onde vossa vida acaba, tudo acabou. A utilidade de viver não consiste no espaço, senão no uso da vida, e há quem vive bastante tempo e viveu pouco. O que viveis está em vossa vontade e não no número dos anos" (Michel de Montaigne, Ensaios, século 16).

                                     


         

Alguns parágrafos antes deste ensaio "De como filosofar é aprender a morrer", Montaigne relembra o dito Sócrates perante seus algozes quando trinta tiranos o condenaram, o filósofo observa que os trinta que o condenaram, serão condenados também, pela natureza.

De um jeito ou de outro, todos morreremos, a questão é que esse pensamento fica afastado, longínquo, a morte é quase sempre a alheia. A de nossos próximos e, principalmente a nossa, fica de escanteio. Lembremos que o tempo de todas as coisas transcorre lenta ou rapidamente. Compare a quase eternidade das estrelas, do movimento e do próprio tempo/espaço com a duração de um frágil inseto e a nossa, a vida dos homens, cuja consciência de estar num aqui e num agora fica absorvida no dia a dia pelas nossas tarefas, afazeres, preocupações, deveres, prazeres, cobranças, amores, relacionamentos, enfrentamentos...

E ainda, dispersão no corriqueiro, diversão sem limites, recusa da responsabilidade.

E o contraponto, na vida adulta a dedicação, o empenho e o total cuidado consigo e com os outros, saber-se frágil e dotar-se de atitude de compromisso, de busca por realizações. 

Sair dessa vida, o que pode acontecer a qualquer momento, com a consciência do dever cumprido. É por isso que a morte prematura, especialmente a de crianças e jovens afeta tanto as pessoas. Não tiveram esse tempo de realizações. E, como disse Montaigne, há os que têm esse tempo e não o utilizam. 

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Hobbes, um pensador para a atualidade

 Thomas Hobbes (1588-1679), um dos principais representantes da Filosofia Política, contribuiu com noções e propostas que nos fazem pensar sobre a condição humana em sociedade.

Contra a corrente de sua época, a das lutas liberais e em prol do poder do parlamento, Hobbes defendeu o poder soberano, um poder que nada tinha de divino e sim de útil. Eis aí sua marca e sua originalidade.

Poder temporal, conhecimento com base na realidade empírica, importância da linguagem, apoio na natureza material do homem e de seus interesses, o recurso será sempre o de um método que emprega provas, que se detém nas causas e efeitos e que analisa a condição humana como naturalmente egoísta.

Ao ressaltar o papel da linguagem, põe em lugar do pensamento abstrato que é o núcleo do conhecimento para os racionalistas (Descartes), os nomes que são convencionais e conectados pelo verbo ser.

As necessidades e impulsos naturais conduzem o comportamento humano, que, por isso mesmo, precisa ser "domado" e isso só pode se dar por um governo forte, o poder soberano é o único capaz de submeter a todos e fazer com que contratos sejam respeitados e que se mantenha a paz na sociedade.

Os impulsos são conhecidos pelos nomes de coragem, esperança, amor, medo, curiosidade, típicas paixões que conduzem os interesses e invenções humanas. Por exemplo, as religiões nascem do medo de poderes invisíveis frutos da imaginação conduzidos por discursos aceitos publicamente, e os discursos que ficam à sombra são as superstições.

Impulsos de um lado e de outro saber usar sua força, beleza, capacidade de atos nobres, que não são poderes com valor em si, pois que reforçam os poderes naturais. Belo, forte e nobre valem mais do que fraco, feio e subalterno. Interessante observar como em nossos dias as pessoas se valem desses recursos, produzem e correm atrás deles custe o que custar para aparecer, influenciar, chamar a atenção. Basta pensar nas redes sociais e suas tramas na sociedade atual... Hobbes, muito antes de Freud, enxergava a natureza humana em suas condições as mais primárias, aquelas que precisam ser satisfeitas.

Saímos do estado de natureza pela necessidade de submeter a força, o instinto, as lutas, voluntariamente, por um poder que a todos submete e assim preserva a paz. Essa noção do Leviatã que serve para a preservar a vida em sociedade passou a ser condenada pelos ideais de poder consensual, legitimado por parlamento, eleições livres, enfim, os princípios democráticos. Mas, basta uma olhada na história dos últimos séculos, para concluir que violência, poder ditatorial, submissão à vontade de um soberano, em lugar de trazer a paz e o respeito a tratados, manipula, fere, impõe a ideologia do único pensar, fome, pobreza e dizimação resultam desse poder despótico: 

Hobbes às avessas na Alemanha de Hitler, na URSS de Stálin, na China de Mao, na Coreia do Norte de Kim Jong-un, na Venezuela de Maduro, na Cuba de Fidel, nas ditaduras violentas da África subsaariana. 

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

O compromisso da ética do discurso de Habermas em meio às fake news

Quando os comandos da vida cotidiana se pautam por interesses, pelos poderes social, político e econômico, pela luta para sobreviver, pelas exigências em torno ao cuidado com saúde em tempos de pandemia, o que fica relegado a segundo plano são as questões éticas.

A meu ver a ética do discurso de Habermas tem muito a oferecer para o atual momento: "Ela não dita regras, mas filtra pelo discurso aquilo que será acatado por todos e legitimado pelo diálogo aberto à participação de todos aqueles que se sentem responsáveis diante de problemas prementes que a sociedade enfrenta. O desafio é conciliar as condições de correção normativa que são idealizadoras - na medida em que almejam o que se considera como melhor, como válido, justo e aceitável - com as condições de objetivas de aplicação que em geral são difíceis de obter. Vive-se em uma sociedade mundial, com graves injustiças sociais, problemas ambientais, violência urbana, falhas na educação" (ARAÚJO, "Apel e Habermas: a ética do discurso in: Ética em Movimento, Paulus: 2009), e, eu acrescentaria, pobreza, doenças, a epidemia do Covid19, a informação rápida, as redes sociais, as falsas notícias.

                                                        

                                                                  Filósofo alemão - 1929---            

Como se pode constatar, são muitos os problemas e invocar a ética do discurso é o mesmo que apelar para a responsabilidade do que se diz, da chamada razão comunicativa. Ela tem um pé em Kant, com os pilares da autonomia da vontade em seguir a obrigação moral que diz respeito a todos; e outro pé nos atos de fala, no uso da fala visando acordo, entendimento e isso se alcança pela relação com o relação mundo objetivo de situações constatáveis, com o mundo social que nos insta a atos que comprometem a todos, uns com os outros, e ao mundo pessoal, o de cada um com suas circunstâncias, intenções, o engajamento sincero, o empenho com seus compromissos.

Difícil? Sim! Necessário? Sim!

E o maior obstáculo para esse tipo de engajamento e responsabilização é justamente o meio de comunicação diluído, impessoal e, muitas vezes prejudicial. A postagem de selfies vale mais do que buscar informação constatável e confiável. Vale tudo nas redes sociais.

Se o discurso é o meio e o fim do compromisso moral, isso se deve a que ele deve ser filtrado pela responsabilidade, pelo engajamento com os três mundos acima mencionados, com o conhecimento calcado em abertura, possibilidade de confirmação e igualmente de falseamento, e isso tudo suscetível de passar pelo filtro de todos os envolvidos.

Julgamento imparcial e possibilidade de abrir as ações de fala para o diálogo, esse é o meio essencial para a comunicação e para a responsabilização, mas que se torna a cada dia mais desprezado, desgastado, e mesmo ridicularizado...

Entretanto, se a comunidade local e internacional conseguir atores cujas ações visem o entendimento, a inclusão por meio de educação universal e de qualidade, é sempre possível recuperar credibilidade. Basta para tal seguir princípios de veracidade, justificação, normatividade e sinceridade.

Vivemos a encruzilhada da manipulação travestida em verdade, e da verdade em meio à difícil missão de abrir-se, revelar-se, ser ajuizável e engajadora.

sábado, 31 de outubro de 2020

"Livre Pensar é só Pensar" (Millôr Fernandes)

O título acima é o dos artigos semanais que Millôr Fernandes publicou até sua morte (2012). Por que razão dele me recordei?

Foram os últimos fatos da violência dos radicais islâmicos na França.

Por que livre pensar é só pensar?

Não acho que Millôr quisesse dizer com isso que o pensamento voa à toa, que basta dar asas ao pensamento, assim sem mais nem menos. "Só pensar" a meu ver significa usar o pensamento, o raciocínio, a razão, pesar as consequências, ser responsável, em suma, é preciso pensar, pensar duas vezes como se costuma dizer.


Antes de soltar a bobagem, o insulto, antes de publicar lixo nas redes sociais, antes de ofender, antes de prejudicar com suas palavras a autonomia e a liberdade dos outros, colocar-se no lugar do próximo e tentar entender a situação em seu todo, em seu contexto, e, principalmente o que a frase, a publicação, a foto implicam. Como afirmei acima, as consequências.

Não é livre pensar provocar, insuflar, incitar, cutucar a onça com vara curta. A onça morde...

Ao assumir que o profeta islâmico é risível, que a crença é totalitária e que não admite controvérsia, ao sustentar que a publicação da charge é satírica, antes de considerar a tal charge como liberdade de pensamento, tanto o jornal como o professor, deveriam pensar e muito, nas consequências.

Liberdade de expressão é igualmente responsabilidade de expressar ideias e conceitos. É perfeitamente possível expor seu pensamento e suas ideais e explicar o que e por que se diz. Qual a fonte? Qual a intenção? Qual o contexto? E isso sem ofender, sem incitar, sem provocar o outro lado...

O outro lado, o dos radicais doutrinados para a resposta violenta e descabida é muito pior, inclui matar, incendiar, destruir e isso em um país exemplo de democracia e sim, de liberdade de opinião!

Os radicais islâmicos são instruídos a eliminar a voz do diferente, não suportam a crítica, como se suas crenças fossem únicas e todos devessem se curvar diante do seu deus/profeta, sem respeito algum pelo outro, pelas outras crenças. E isso devido ao fechamento doutrinal, nada de liberdade para pensar, para se situar em outra cultura, em outros países. Nada de respeito a outras tradições. 

Por quais razões e premidos por quais circunstâncias, saíram de seus países de origem?!

Não teria sido em busca de uma vida melhor? Educação de qualidade, liberdade de opinião, possibilidades de usufruir de bens e serviços? Se isso não serve, se os empregos são subalternos e mal remunerados (o que de fato ocorre), por que não retornar ao mundo e à cultura de origem?

Pensar livre é responsabilizar-se pelas consequências, o que requer educação, ampla visão, conhecimento, inteligência e coragem.

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Critério para escolha de professor universitário de Filosofia é ser marxista?!

 Algumas semanas atrás recebi e-mail de um ex-colega do Departamento de Filosofia da UFPR, com pedido para que o CAFIL (Centro Acadêmico de Filosofia) sugerisse ao departamento que a escolha do candidato fosse baseada em sua expertise em marxismo.

Ignoro qual fosse a área em que seria aberto o concurso. Seria este o critério justo para a escolha do candidato?!

Candidato algum deveria ser escolhido com base em sua ideologia ou em determinada tendência nem em determinada adesão a tal ou tal "filosofia" política.

Senão vejamos: ser marxista ou ser cristão ou ser positivista ou ser adepto de uma seita ou partido, jamais foi ou será critério para acolher ou não certo professor candidato a uma vaga no Ensino Superior.

A formação acadêmica, a produção científica, os títulos, enfim, os critérios que se encontram facilmente no currículo Lattes, esses são os requisitos justos e apropriados. Isso porque, evidentemente, a depender da área ou da disciplina nas quais se abre a vaga para o concurso, leva-se em conta o currículo para a prova de títulos e a capacidade de preencher os requisitos profissionais para o exercício da área ou disciplina que se encontram vagas, na prova didática.

No caso da Filosofia Moderna, campo no qual Marx se encaixa, há nomes essenciais como Locke, Berkeley, Hume, Kant, Hegel, Rousseau, Nietzsche... Por acaso é necessário ser kantiano ou nietzschiano para ser chamado a participar do concurso? Que eu saiba, não.

Marx, em meio a todos esses pensadores, sequer se destaca por sua contribuição à Filosofia propriamente dita. Com exceção de Filosofia Política, seu nome pouco acrescenta em matéria filosófica. Foi um grande economista? Creio que sim, muito mais do que filósofo. Um influente ideólogo da esquerda, do socialismo e do comunismo? Sem dúvida alguma. Deixou uma herança enorme no quesito político e ideológico? Sim! E paramos por aqui.

A clara e evidente intenção é perpetuar a "marxização" especialmente nos cursos de ciências humanas e por extensão na formação de professores, futuros propagadores da corrente política e ideológica marxista, que é uma das mais pobres de espírito, nula em renovação, esquemática e inculcadora de premissas falsas, a mais corrente, contra o liberalismo. Nem sequer demonstram o que é ser liberal para que se faça o justo contraponto. Locke foi um liberal, Rousseau quando criticou a sociedade desigual não propôs uma marcha ideológica ou política mesmo sendo um crítico da propriedade privada. 

Enfim, a história da filosofia se fez e se faz com nomes ilustres, pensadores abertos que fazem a crítica conceitual, essa sim imprescindível quando se faz ou se ensina Filosofia.


segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Nietzsche e a cultura filisteia.

 Como você definiria "cultura"? Qual sua importância? Arte e cultura são a mesma coisa?

Cultura e sociedade nascem e se sustentam mutuamente de um ponto de vista sociológico. As artes fazem parte da cultura, mas mesmo os costumes, a língua, a política, as religiões, os hábitos, a formação educacional, as normas e regras de convivência, enfim, o modo de ser de uma sociedade, suas características, seu envolvimento com certas políticas. Exemplo: cultura de tolerância e acolhimento em contraste com cultura de preconceitos e rejeição; cultura de respeito à convivência em contraste com o pouco caso e falta de consideração pelo outro.

Mas pode-se levar o conceito de cultura para outro âmbito, o estritamente filosófico. E Nietzsche foi um expoente em sua crítica à cultura filisteia, aquela cultura que se banalizou, se "mundanizou", se vulgarizou, é uma cultura vendável. Por detrás dessa crítica e desse estilo demolidor, sua visão de força, energia, rejeição de conceitos acabados, estreitos, taxativos. Nietzsche rejeita igualmente aquele espírito sombrio, os imperativos categóricos à la Kant com suas exigências e restrições em lugar do livre espírito. O cultivo da vida e sua resplandecência se anulam com as demandas da religião que anulam a vontade de viver.

Procura-se alguém com estilo direto, claro, que não engane, não floreie, não despiste. Alguém dionisíaco, criador, alguém que até mesmo sofra ao criar, que enfrente a tragédia, que viva a tragédia no sentido daquele que sorve a mudança, a mutação, a luta, a transposição, a recuperação dos primeiros filósofos em contraste com a herança socrática para a qual importam o raciocínio e o bom mocismo, a perda de força vital. A imagem da dança no alto da montanha ilustra o que pensava Nietzsche sobre essa força e como ela se derrete, se afrouxa, decai com o que ele chamou de socratismo, satisfazer-se com o dar razão, com a busca da serenidade. 

Difícil entender como essa procura pela serenidade possa ser desvalorizada, nossa cultura justamente valoriza essa espécie de apaziguamento, de ataraxia estoica. É que para Nietzsche vale o embate, a busca errante dos espíritos livres que se banham à luz do meio dia e conseguem ver e dar sentido ao que se pode determinar e não a um projeto geral e inespecífico.

Novamente, difícil de entender e muito mais de praticar. É que o livre pensador agrega sentido ao que faz, às coisas que vivencia. Daí seu ateísmo, não o sacrifício da cruz, e sim à vida, à alegria da dança, do lançar-se, sem precisar do porto seguro do mundo verdadeiro e ideal de filósofos como Platão.

E hoje?

Essa noção de cultura se opõe a tudo que vemos como cultura em nossos dias. A retaliação ao que não concorda com nossas ideias (que podem ser tão pobres e frouxas quanto às do adversário), pobreza da linguagem e das representações, a personificação dos famosos como exemplos, e seus seguidores em rebanho. Nações inteiras com seus guias geniais (Stalin, Mao, Fidel), o fanatismo que cega, os governos vigilantes e tutelares, os espíritos de porco (Trump e cia. ltda.), aqueles que deveriam resgatar honestidade e compromisso com a seriedade com o trato dos bens públicos e que se tornam ídolos. "Observai, pois esses adquirem riquezas e se tornam mais pobres. Almejam o poder, esses incapazes e antes de tudo o estrado do poder: muito dinheiro" proclamou Nietzsche (Lula, Bolsonaro e filhos de ambos).

Alguma chance para a luz do meio dia solar em plena escuridão da massa e seus valores decadentes?

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

O que é "liberdade de expressão"?

Em recente episódio que se tornou rapidamente espalhado pelas mídias, o presidente Jair Bolsonaro respondeu à pergunta de um jornalista sobre depósitos nas contas de sua esposa com: "Tenho vontade de encher a sua boca de porrada!".

Pronto, o alarde era previsto. Quero me deter na análise de uma correspondente da rede Globo na Suíça, de que fora bloqueado o direito à liberdade de expressão do jornalista. Claro que imediatamente vem à mente que também o presidente teria usado de sua liberdade de expressão, mesmo sendo grosso e muito imprudente, como é sabido. Evidentemente há o outro lado da moeda: o jornalista claramente provocou, o objetivo não era o propriamente jornalístico, ou seja, informar e comunicar ao público por meio de fontes as informações que, aliás, já estavam disponíveis e acessíveis ao público, sem censura.

Então, o que é liberdade de expressão? Aparentemente dizer o que vem na telha a qualquer um em qualquer circunstância? ou não?

Em uma sociedade plural, em situações as mais variadas, o que mais ocorre são as comunicações imediatas, impensadas, exploradas por quem as transmite, interpretadas pelo tipo de poder em jogo, geralmente o poder econômico, político e midiático. Quem fala mais alto? A partir de que canal de comunicação? Qual a reverberação da mensagem? Quem diz o que para quem?

A diferença crucial para entender que liberdade de expressão não é agredir, insultar e muito menos provocar para ver a reação e resultá-la contra ou a favor do interlocutor. Em outras palavras, há uma distinção entre afirmar, proferir juízos, declarar, informar e, na outra ponta, sugerir, provocar, falsear, interpretar pró ou contra certa ideologia, credo político ou religioso, defender o ponto de vista dos adeptos ou contrários a certa política, ou a tudo o que se abrigar sob o selo do que convém ou não defender em público. Camuflagens...

Procurar argumentos sólidos, deixar cair o véu ideológico, e, ao invés de distorcer fatos e circunstâncias, esclarecer, isso foi o que buscou Kant, o esclarecimento à luz da razão. Ora, parece que é justamente a luz da razão que vem se apagando em nossa sociedade. Responsabilizar-se pelo que se diz, essa seria propriamente "liberdade de expressão". Fundamentar os argumentos, buscar uma intersubjetividade intacta, como diria Habermas, fundamentos buscados em ciências reconstrutivas, aquelas ciências que mostram as vias de acesso à compreensão, à reformulação, às tomadas de decisão inteligente de cientistas que podem ser sociólogos, biólogos, estatísticos, enfim, aquelas ciências que iluminam "as situações nas quais nos encontramos", juntamente com a filosofia, para aprendermos "a interpretar as ambivalências que nos atingem como sendo outros tantos apelos a uma responsabilidade crescente em meio a espaços de ação em vias de se encolherem cada vez mais", escreveu Habermas em "A unidade da razão na multiplicidade de suas vozes".

O entendimento não é entendimento se for coagido, se for provocador, se instigar o ódio, o preconceito, se mentir ou enganar. Entendimento requer responsabilidade, busca de conteúdo, no caso do jornalismo, conteúdo relevante, fidedignidade das fontes, levantamento de fatos que iluminem e esclareçam. Entendimento é a capacidade de ouvir, compreender, e não de insuflar, deteriorar propositadamente a situação e as circunstâncias que envolvem pessoas e ações. 

Portanto, o conceito de liberdade de expressão precisa ser equacionado e reconstruído. De per si, ele é um conceito fugidio, ambíguo, pode ser usado contra ou a favor de certa pessoa, em geral com poder e/ou prestígio. Nas sociedades modernas é fácil influenciar e conduzir massas e multidões, convencer, usar de todos os meios em proveito de si, dos seus, de sua empresa, de seus meios de comunicação. A comunicação se torna pulverizada e imediata nas redes sociais, com sua habitual banalidade e ao mesmo tempo capacidade de ferir, de destruir, de manipular. 

Caminhos estreitos e cheios de percalços os da comunicação responsável e verídica, a qual, num mundo ideal, seria a autêntica liberdade de expressão. 

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Questões fundamentais da Filosofia

 A Filosofia nasceu ocidental, ou mais exatamente, helenística. Diferentemente do mito e das religiões e cultos, nela predomina o exercício da razão, do argumento, da reflexão, da busca por fundamentos do cosmo, da vida, da sociedade, do ser mesmo enquanto tal.

Fundamental é que o pensamento filosófico se difunde e se fixa por meio da escrita. Todos os filósofos liam, escreviam, muitos foram mestres. Os ensinamentos por vezes eram anotações de seus discípulos, caso mais evidente o de Platão.

Há assim a transmissão do saber, e seu permanente acesso no acervo da história.

Um dos fundamentos da Filosofia é essa conservação, quer dizer, o que certo filósofo ou certa escola escreveram e transmitiram, não morre. Os filósofos e suas lições podem ser reescritas, elucidadas, explicadas e levadas adiante. O que não pode acontecer com a Filosofia é o descarte, a superação motivada por falha ou erro, ou por novas descobertas, como é o caso da ciência.

Esse é um princípio filosófico, a possibilidade de aprender e usufruir de cada filósofo e de cada escola de pensamento, seja ele Aristóteles, a filosofia cristã, um estoicista, um racionalista, Kant, Hegel, Nietzsche...

Essa riqueza e diversidade ensina que a História da Filosofia precisa ser levada em conta como princípio fundamental da própria Filosofia, principalmente se pensarmos em seu ensino.

Uma base sólida e necessária é a possibilidade de questionar e aprofundar reflexões, levar adiante os ensinamentos filosóficos e com essa base talvez começar a pensar por si, alargar os horizontes do saber, explorar as nuances e o sentido dos conceitos e ideias.

Desse modo se constrói o edifício do saber, e ao mesmo tempo se evita o inverso desses princípios fundamentais, ou seja, a estagnação doutrinária, exatamente o inverso e a morte da filosofia. O apego a um filósofo como se ele fosse a resposta única e final, como se ele fosse o mestre absoluto, o "dono da verdade", como se costuma dizer é morte da filosofia.

Isso não significa que não devamos aprofundar a leitura e a reflexão que certo filósofo ou corrente filosófica ensejam. Pelo contrário, todo filósofo digno do nome possibilita essa condição de ir adiante, dar novos passos. A preocupação em defender obstinadamente o "seu" filósofo é esclerosadora...

O verdadeiro obstáculo são as dificuldades de compreensão, o pensamento filosófico é sempre profundo, os conceitos e ideias são em geral abstratos demais para uma primeira e mesmo segunda leitura. Mas faz parte, é um princípio filosófico o aprofundar, o levar adiante até onde o pensamento alcança.

O voo, o lançar-se, o mergulho, o olhar em perspectiva são as dádivas do saber filosófico.

Imortalidade e mortalidade se cruzam como princípio fundamental na Filosofia. Isso dá a pensar, isso é filosofar...


quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Qual o sentido da vida?

 Impossível uma resposta única, essa é uma questão absolutamente pessoal, ou, pelo menos, deveria ser.

Como a maioria delega a resposta e a responsabilidade a um credo, a um líder, a alguém próximo ou superior, a uma seita, a um partido, ao acaso, ao além, ao divino - , em todas essas situações há uma resposta pronta e satisfatória.

Mas viver para um ideal não é o mesmo que viver segundo um credo ou partido. Isso porque credos e partidos comprometem de modo
cego e irrestrito, assim, o ideal deixa de ser pessoal. Por sua vez, se a pessoa é um criador de valores, se suas tarefas e objetivos os mais banais e cotidianos são permeados de um significado pleno, atento a si, aos outros, seus familiares, aos que se foram, aos que dependem de você, de sua dedicação, afeto e compreensão, então essa abertura para o outro, essa visão do todo, esse estar no mundo, o compartilhamento de sentimentos, e porque não de amor, enraíza, dá frutos, enriquece, enfim, faz sentido, dá sentido à vida.

E, de onde surge essa valorização da vida?

Do aprendizado, do simples olhar ao seu redor, da fé que não cega e sim daquela fé capaz de acender uma luz interior, e chegar àquilo que os estoicos almejavam, a tranquilidade da alma.

Alma? Sim, não aquela predestinada a gozar o céu ou a penar no inferno, e sim a alma cultivada como se cultiva um jardim, com cuidado, com constância, com a capacidade de esperar que o grão germine, que se possa colher as flores e admirá-las.

Somos grãos de poeira no universo. Somos igualmente responsáveis pela brutalidade que explode cidades e as transforma em grãos de poeira.

Onde então o sentido no rosto sofrido de uma criança refugiada? A questão do injustificável sofrimento, do mal, da dor? A inescapável dupla face da vida,  ruína e reconstrução, egolatria e desprendimento, ignorância e sabedoria, queda e ressurgimento. Essas oscilações nos mantêm por tênues fios, por busca e por decepções, essa nossa marcha requer cuidado, esforço como se fossem sopros, os sopros vitais.

As viagens, os viajantes - tantas espécies deles!

Tanta nacionalidade sobre o mundo! tanta profissão! tanta gente!

Tanto destino diverso que se pode dar à vida,

À vida, afinal, no fundo sempre, sempre a mesma!

Tantas caras curiosas! Todas as caras são curiosas

(...)

Tão complicadamente simples, tão metafisicamente tristes!

A vida flutuante, diversa, acaba por nos educar no humano.

Pobre gente! pobre gente toda a gente!

(Fernando Pessoa)

sexta-feira, 31 de julho de 2020

O revolucionário Francis Bacon e a crise pandêmica

Francis Bacon (Inglaterra, 1561-1626), pouco valorizado entre os filósofos, colaborou, entretanto, com ideias originais que mostram o poder da ciência, do método indutivo e do combate a preconceitos.
À sua época reinava Elizabeth e a Inglaterra experimentava um grande progresso no comércio marítimo e nas indústria manufatureiras. Embora a cultura e a mentalidade medievais ainda deixassem resquícios com mitos, fábulas e magia em meio à nascente ciência, com a astronomia e pesquisas sobre a natureza da matéria, estas últimas prevaleceram.
O interessante é que o saber científico e o saber técnico se tornaram codependentes, por exemplo, nas instalações de maquinário nas manufaturas, como a da lã, no desenvolvimento da indústria naval e seus diversos instrumentos.
Na obra "Novum Organum" Bacon expõe as regras, métodos e objetivos da ciência, passando em revista crítica noções metafísicas tradicionais gregas e medievais, pois estas travam a pesquisa, a prática científica, a investigação da natureza por meio de um método em tudo diverso das deduções lógicas, do silogismo, das ideias, da pura retórica.
Entendia Bacon que o Estado e as ciências deveriam buscar resultados práticos para todos os homens, e isso por meio da investigação da natureza, da observação e do compilamento dos fatos observados.
Conhecimento é poder, e ater-se à natureza permite comandar a natureza, quer dizer, observar, registrar, induzir significam poder usar tais conhecimentos para a prática humana e seu progresso.
A lógica dedutiva aristotélica e escolástica se parecem com a aranha e a teia que sai dela mesma, fica-se enleado a ela. Já a lógica indutiva, de observação e de intervenção na natureza, assemelha-se à abelha que age, ataca, constrói, e de seu trabalho resultam cera e mel.
O novo método deveria igualmente afastar-se da religião, das inúteis disputas retóricas, de conceitos abstratos como substância, qualidades como leve, pesado, raro, seco, etc., que permeavam a cultura medieval.
Ir às coisas e delas retirar algo prático, começar com as experiências sensíveis e prosseguir para as generalizações, introduzindo ordem e evitando fantasiar ou imaginar. Na ciência se usam a observação, a coleta e organização de dados. Evitar preconceitos é o outro lado do método indutivo.

Evocar F. Bacon em nossos dias pandêmicos vale a pena! Nunca se viu tanta controvérsia a respeito de medicamentos e procedimentos de cura de uma doença, em parte pelo excesso de informação e por toda sorte de preconceitos, entre eles o de que a ciência pode tudo e tem a palavra final.
Mas e quando nem entre os cientistas (ligados ou não a laboratórios poderosos) existe consenso, e quando parece que o socrático "nada sei" prevalece, esse não saber infelizmente não tem a ver com a douta ignorância do sábio filósofo e sim com o fato de que sabe-se pouco mesmo, comunica-se mal, tratamentos e remédios entram e saem da berlinda, e, principalmente entra em cena o jogo do poder.
Poder econômico, poder político, poder midiático e social. 
É frequente ouvirmos declarações de médico fulano de tal, que aplicou tais medicamentos e nenhum paciente morreu de Covid-19...
Então por que esse tratamento não se tornou obrigatório?
Interesse de grandes laboratórios, que, diz-se, já teriam a vacina pronta mas não divulgam em nome do lucro!
Impressionante, mas basta ler ensinamentos como os de Bacon para entender que o poder em jogo, o único poder em jogo, é o do conhecimento, com seus métodos e seus resultados, e a humildade de reconhecer que se sabe pouco. A ciência não é absoluta, mas é necessária!
Releiam os parágrafos acima com o pensamento de Francis Bacon e tirem suas conclusões...

sábado, 11 de julho de 2020

O que é paradoxo?

Paradoxo em linguagem simples é a condução de uma argumentação para demonstrar que a opção por um lado da questão ou pelo lado oposto simultaneamente, invalida a ambos.

Recorro mais uma vez a Thomas Mann em "A Montanha Mágica", cujo tema principal é o tempo, a descrição pormenorizada de cada dia do personagem, a divisão do dia em repartições especialmente a das refeições, a rotina, a permanência de Hans Castorp por duas semanas na cama para iniciar o tratamento da tuberculose, como ele enfrenta o vazio das horas e se apega a ocorrências como a visita do primo, a medição da temperatura, a chegada da comida, melhor, da sopa, da "eterna sopa" . Assim reflete Thomas Mann sobre o paradoxo:
"O tempo dos verbos fica confuso, eles se misturam e o que agora se revela para você como real tempo de toda a existência é o 'presente inelástico', o tempo no qual eles trazem para você sopa por toda a eternidade. Mas não se pode falar de monotonia, pois monotonia advém da passagem do tempo, o que seria bastante paradoxal com relação à eternidade. E queremos evitar paradoxos se quisermos conviver com nosso herói" (p. 260).
O importante a ressaltar é que eternidade e passagem do tempo não "combinam", quer dizer, é um paradoxo que uma rotina seja eterna. O eterno exclui momentos, pois momentos se sucedem, podem ser estreitados ou delongados, e eternidade é atemporal.
Impossível conceber que eterno esteja "dentro" de um tempo mensurável, em que um acontecimento sucede a outro.

Paradoxos podem ser dissolvidos com a explanação dos casos ou acontecimentos cada um por sua vez. É que o paradoxal seria reunir, tomar um pelo outro, considerar que ambos os casos sejam válidos.
Pela mútua exclusão tem-se casos de paradoxo? Em "se ficar o bicho come, se correr o bicho pega", temos um caso de impossibilidade de decisão sem que se possa evitar ser capturado.
Não saber o que fazer não é paradoxal, paradoxo tem a ver com conceito, com a natureza essencial de algo, com ser e não ser.
Então é o mesmo que contradição?
Aristóteles expôs contradição como algo não podendo ser e não ser ao mesmo tempo sob o mesmo aspecto.
Já o paradoxo é o encontro de duas possibilidades cuja ocorrência simultânea expõe duas situações incompatíveis, inconciliáveis, mas que, isoladamente fazem pleno sentido.

Algo paradoxal envolve atualmente o mundo todo, em tempos de pandemia é preciso restringir e ao mesmo tempo permitir. Ora, restringir e permitir é paradoxal! Logo, a perplexidade toma conta de tudo e de todos...

domingo, 28 de junho de 2020

"Serotonina" de Michel Houellebecq

O proclamado como um dos melhores escritores e poetas da França na atualidade em "Serotonina" reafirma conceitos e ideias de sempre, insiste em ser o novo "enfant terrible" da literatura talvez mundial.

Há trechos no início que beiram a pornografia, o personagem não se dá bem com ao menos três mulheres, uma delas o serve como se fosse concubina (uma japonesa), o amor por uma moça linda e bem mais jovem que ele, é uma paixão doce e forte mas apesar de amá-la acaba por trai-la e o relacionamento acaba. Um terceiro amor também é frustrado.
O personagem é empregado da Monsanto, o que dá à narrativa aquele tom caro ao autor de politicamente incorreto, e mencionar poetas malditos, expressar seu desprezo por eles vai na mesma direção.
Basicamente o personagem que passou dos 40 é depressivo e o medicamento o deixa impotente. Resta a solidão auto-infligida, o cigarro, a visita a um amigo no interior da Normandia que revela a condição difícil do agricultor diante da abertura ao comércio da União Europeia.
Enfim, o autor aborda temas contemporâneos, até mesmo pornografia infantil, a possibilidade de comprar armas, algumas situações é um binóculo super potente que revela, o tudo isso me parece forçado, artificial, como se Houellebecq passasse em revista temas polêmicos e os inserisse na narrativa.
Quando em extrema solidão após ter se desvencilhado da amante japonesa e de todos os demais laços com sua vida, vai morar em um hotel (é preciso que o hotel aceite fumantes, algo bem raro e alvo de mais uma de suas críticas) do qual mal sai, apenas para comer. Munido de antidepressivos, passa a ler "A Montanha Mágica" de T. Mann e Marcel Proust. Logo se aborrece com ambos, acha que o longo romance do autor alemão apenas repete, nada acrescenta a "Morte em Veneza", e considera Proust pelo ângulo da sexualidade.
Evitar a unanimidade e o lugar comum parece ser uma das intenções não só do personagem mas do próprio autor. Chama a atenção, provoca polêmica, induz às críticas e ao debate. 
Evidente que isso atrai leitores mais "descolados" como se diz e igualmente certa rejeição...
O ponto alto da obra é retratar o sofrimento dos depressivos, a tendência suicida, a terrível e irremediável paixão frustrada. Continuar com os antidepressivos e permanecer impotente, ou matar-se?
A redenção e a razão pela qual o autor que se qualifica para pertencer aos melhores fica por conta das páginas finais, reflexivas, profundas e poéticas.
Vale ler? Sim.

quinta-feira, 18 de junho de 2020

O filósofo enquanto educador

Impossível separar filosofia de educação e educação de filosofia. 
Não é necessário aprender os conceitos filosóficos mais elaborados, importa isso sim, o modo como aprofundamos as questões, como abordamos os problemas, como vamos às raízes das dificuldades e, ao mesmo tempo, sabemos o que esperar no processo educacional.
As perguntas: o que é mais importante, com quem lidamos, quais são os objetivos, o que significa aprender, como alcançar patamares de qualidade e superar dificuldades? Em todas essa abordagens o educador trabalha com princípios e metas, com valores e resultados, com conteúdos e com avaliações, com processos de formação/qualificação e com integração social.
As escolas, os professores, os formadores e os alunos são vidas, são pessoas, são entes sociais que se qualificam para todo o conjunto das atividades de uma sociedade.
Qualidade de currículo é incompatível com treinamento cego, com ideologização, com doutrinação, com militância. 
No dia de hoje, 18 de junho, o governo decide finalmente substituir o Ministro da Educação (enquanto escrevo ainda não ocorreu...) infelizmente não pelas razões mais profundas, isto é, de princípios, justamente de acordo com a relação que deveria haver entre filosofia e educação.
Quero me referir à proclamação feita por Weintraub na reunião de 22 de abril, a de que ele é um militante. Aprendeu com Olavo de Carvalho que precisava introduzir um novo mote, o da escola sem partido. Ora, não só não atingiu o objetivo de peneirar o ensino da ideologia igualmente deletéria dos marxistas que se instalaram nas faculdades de educação, como falhou em inúmeros aspectos.
O que faltou?
Equilíbrio, reflexão, pensar na finalidade do processo educacional, seguir metas de aperfeiçoamento, melhorar a qualidade dos conteúdos e currículos, adotar perspectivas inovadoras, conseguir que os mestres e dirigentes se voltassem para o aluno, sua formação, sua inserção social, derrotar o analfabetismo, melhorar a qualidade do ensino.
Enfim, é um erro acreditar que um lado do perfil de esquerda precisa ser urgentemente confrontado e por quais razões, impor outro perfil de direita.
Ser liberal não é ser escravo do mercado de trabalho como pensam os marxistas. O liberal acolhe abertamente sugestões, esclarece no bom sentido iluminista, até mesmo kantiano, não sufoca, não impõe e trabalha por resultados, melhoria do ensino que no Brasil, ainda mais com escolas fechadas, só piora.
Equilíbrio, olhar o todo, aprofundar, examinar as questões pelos seus diversos ângulos, propor sugestões. Por que isso não é uma prática, em especial no ensino público?!

sábado, 23 de maio de 2020

O que é ideia?

Poderíamos dizer que ideia é a marca, a essência, a característica inerente aos seres humanos.
No filme "Ad Astra", um astronauta obcecado por encontrar vida inteligente em algum ponto do universo, permanece sozinho em uma estação espacial em Saturno. Sua missão falha, e o filho astronauta teria que trazê-lo de volta à Terra, mas não o convence. Ele consola o pai argumentando que afinal nós somos a vida inteligente no universo conhecido.
Ora, o filme envolve uma ideia, uma dúvida, o pai era possuído por uma única ideia, o filho é incumbido de um projeto, em todo projeto há uma ideia.
Algum extra-terrestre teria ideias? A ideia de buscar vida inteligente? Por quais razões?!

A ideia de desvendar mistérios do cosmo e de si mesmo

Os primeiros traços de humanidade provavelmente surgiram ao solucionar problemas, e isso não se faz com atos simplesmente. Os atos precisam de ideias.
As grandes ideias da humanidade produziram efeitos decisivos e permanentes. 
A ideia de que há um Deus ou deuses levou à noção do além do homem, divindades podem premiar, castigar, requerem sacrifícios, templos, a noção de pecado e redenção. Na implantação de religiões houve paradoxalmente imposição e violência.

Com as ideias de mente, de consciência, de espírito/alma, de cogito, de razão, surgiram grandes nomes da Filosofia Ocidental.
Exemplos: considerar a ideia superior ao corpo, o inefável oposto ao material, ao carnal, que somos feitos de corpo e alma, que o mais interior, nosso cogito, nos assegura sermos alguém que pensa, portanto existe. Que a razão produz ideias, quer dizer, conceitos, formas puras que filtram o pensar, e, consequentemente, o agir.

Jordan Peterson resume a essencial importância da ideia de ideia, com o Logos no qual os cristãos transformaram o "Eu", esse Logos gera a palavra que ordena o Ser, até a noção moderna de consciência e pensamento.
O eu, o si produziu horrores (nazismo, estalinismo), a contrapartida, o bem, é a própria capacidade do Logos de sair de si, decidir, de responder desde os primevos de nossa história, às demandas do que o cerca. Se não o fizer, morre. Produzimos ideias, conferimos essas ideias com as de outros, com o próprio mundo. 
O criador de ideias que indicam ação, liberdade, nobreza, este pode prosseguir, ao passo que o erro não pode. Uma dessas ideias de sucesso é a de ter fé, acreditar faz parte do próprio processo de pensar.
Freud e Jung viram isso, o campo de batalha das ideias, elas conduzem, elas visam algo, uma ideia é motivadora. Já os fatos, estão aí simplesmente. As ideias, em contraposição, são condutoras, por elas se luta, e se preciso for, até a morte.

Convido o leitor a fazer a seguinte experiência:
Quais foram e quais são as ideias que me moveram e que me movem?

segunda-feira, 11 de maio de 2020

O que é a atitude filosófica?

Trata-se de atitude perante a vida, e, por consequência, perante a morte.
A atitude filosófica não diz respeito a estilos de vida semelhantes aos da lista abaixo:
- Conformistas: baixam a cabeça e preferem seguir normas e regras prontas, sem discussão; o chefe, o pastor, o líder político são obedecidos, basta pertencer a um rebanho e com ele marchar, de preferência repetindo palavras de ordem.
- Interesseiros: seu lema é aproveitar ao máximo, sugar seja o que for, seja de quem for. Vale bajular, vale postar sua imagem, de sua família e amigos, todos prontos em atender requisitos de sobrevivência social e econômica. Fingir, ocultar, escamotear sempre que isso for útil a sua sobrevivência.
- Revolucionários: se revestem com a crença de que sua bandeira, seu lema, seu líder político, seu partido devem não só vencer como dominar  os inimigos, ou seja, todos os adeptos de outras vertentes ideológicas ou doutrinárias. A tática é a do convencimento.
- Gênios iluminados: trazem a ciência e a especialização como único caminho, verdade é a prova científica, os laboratórios são como que templos, fora deles reina a ignorância. Eles teriam sempre razão, gráficos, tabelas, demonstrações filtram todo tipo de ação e pensamento.

Esses são estilos de vida que centram seus valores em atitudes unilaterais. Ora, não há um único modo de ver e enfrentar questões e problemas.
A atitude filosófica requer abertura, amplos horizontes, uma visão do todo, questionar. O que não significa ficar o tempo todo com dúvidas e com um pé atrás, nem cético e nem dogmático.
E isso se consegue com conteúdo, com leitura, com informação de fontes fidedignas, com a firmeza de caráter, de que não há resposta para tudo, mas que, ainda assim, vale perguntar. Mas perguntar com embasamento, e para isso não é preciso ter estudado um ou mais filósofos.
A atitude filosófica é calma, sábia sem ostentação, ouve argumentos, usa argumentos e mostra conclusões possíveis.
A forma dessa argumentação é o diálogo, o estranhamento diante do mistério, entender que não sabemos tudo, que a arrogância do que diz tudo saber deve ser combatida com a humildade do que é possível e devido saber.
Subimos escadas do conhecimento, da ética, dos valores, sem a pretensão de que essas escaladas terão um fim. A não ser o fim de cada um de nós, a morte em nosso horizonte.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

O que são valores?

Em nosso cotidiano, comunicações, atividades, decisões, somos instados a fazer escolhas. Impossível o imobilismo, talvez com exceção de certas doenças graves ou quando inteiramente subjugados.
Ao escolhermos nos pautamos por valores, como bom, mau; bem, mal; certo, errado; saudável, doentio; útil, inútil; proveitoso, prejudicial; inofensivo, perigoso... Valores se apresentam como polos opostos e em hierarquia, do mais alto e nobre ao menos valorado.
Não faltam adjetivos para qualificar nossos atos. 
Valores são impalpáveis, a situação é real, mas o modo como a consideramos é pessoal, cultural, político, social.
Entram em jogo a consciência moral, a formação pessoal, pelo menos é o que se espera de adultos responsáveis.

Quando Habermas se refere a consciência moral no agir comunicativo, adota a linha de Piaget, ao mostrar que a forma de vida social surgiu com o uso da linguagem para comunicação que se dá em um espaço lógico no qual se formam estruturas responsáveis pelas várias formas de acesso à realidade e à interação, com o progressivo domínio de símbolos.
Ainda segundo Habermas, que adota a classificação de Kohlberg para a evolução dos níveis de consciência moral, há três níveis:
- o pré-convencional, com obediência a um poder superior, que confere responsabilidade objetiva à ação;
- o convencional, que corresponde ao nível de responsabilidade da faixa jovem, cumpre-se o que a lei ou a autoridade estabelecem;
- o pós-convencional, em que o padrão é a ordem institucional, as leis, os direitos, e os valores que podem ser julgados e apreciados pelos sujeitos cujos direitos individuais, liberdade e igualdade são os guias. A orientação ética da ação segue princípios universais, acolhidos de forma autônoma, compreensíveis e criticáveis. Forma-se a dignidade do indivíduo.
Creio que esse último nível em raras sociedades e em poucos indivíduos é atingido.
Mas é nesse nível de responsabilidade que as escolhas de valores deveriam ser feitas.

Então vem a pergunta, como se dá que uma ação siga normas, entre elas a do dever?
Quando a escolha de valores é guiada por valores! E isso não é um jogo de palavras...
Dignidade, respeito, autonomia entram em cena.
Como escolher entre valores, o que nos motiva?
Se for o lado da moeda do orgulho, da mistificação, da covardia, prevalece o polo negativo, o que caracterizaria sociedades hobbesianas, o homem lobo do homem.
Na sociedade de integração, com nível  moral pós convencional, a autonomia e a formação ético/moral fazem pender para o lado do bem social, da liberdade, da saúde, do bom uso de valores, cujo critério é a consideração pelo outro.
Na hierarquia de valores em geral considera-se o valor moral/espiritual superior aos valores da arte (belo, prazeroso) saúde (cuidados com o corpo e a mente), da utilidade (produção e consumo de bens).
Essa hierarquia pode mudar conforme a situação pessoal e/ou social.

No momento atual (abril de 2020) importa a vida individual e coletiva, sua preservação, a valorização das ciências de ponta, as estatísticas, as projeções, em última análise, o local, o nacional e o universal estão em total co-dependência.
Como sairemos dessa nova e surpreendente condição?!
Que valores nos guiarão?!

segunda-feira, 13 de abril de 2020

O que é a alma de um ponto de vista filosófico

Uma das metáforas mais interessantes e esclarecedoras sobre a alma, é a do sopro, sopro vital, respirar, inalar e sentir que o corpo se encheu com algo inefável, essencial, imaterial, invisível.
Assim com os pensadores da antiguidade, entre as três almas de Platão, há uma que é superior e que comanda as da coragem e da nutrição: trata-se da alma intelectual. O corpo é a prisão da alma imortal, esta quer se libertar, reencontrar a si no mundo das ideias.
Para Aristóteles somos substância com componentes materiais e formais, atuais e potenciais. A forma essencial do ser racional, a que não sofre alterações físicas, seria a alma.
Os pensadores cristãos concebem alma como puro espírito, imortal, nela são marcados indelevelmente pensamentos, desejos, intuições, na alma está alojada a consciência intelectual e moral, daí receber prêmio ou castigo na vida eterna.
Descartes insubordinou-se contra o conceito de alma cristão, para ele a alma é puro cogito, pensamento, portanto algo intelectual, imaterial, mas não habitáculo moral.
À medida em que avança o pensamento filosófico ocidental, a concepção de alma cede lugar à de mente, razão, o elemento racional se distingue do moral, a ação humana é impulsionada, motivada, movida por situações da vida humana em geral.
Quanto ao aspecto intelectual, não é próprio da alma no sentido de alma puro espírito, diversa da "carne". O aspecto racional ou intelectual tem a ver com o aprendizado, com a linguagem, com a comunicação, com a educação, com a cultura de cada  povo.
O conceito da alma encontra pouco terreno filosófico na modernidade. O sentido em que filósofos, literatos, poetas, artistas se referem a alma é sempre metafórico, ela flui, ela marca, ela assombra, ela sofre, ela encanta.
A alma prossegue sendo tema religioso, místico, a ela são imputadas virtudes incorporais, espirituais, e permanecem resquícios do pensamento antigo, como imortalidade, sujeição a prêmio ou castigo, em mundos do além, podendo usufruir de encontros com outras almas, ou mesmo receber tesouros e delícias do prazer.

Para refletir:
"A face é a alma do corpo" (Wittgenstein)

sábado, 4 de abril de 2020

O cuidado de um ponto de vista filosófico

Quando iniciei o blog, o fiz por sugestão de colegas de minha filha, quando ela lecionava em uma escola de inglês.
O ponto de partida foi uma reflexão sobre o cuidado, ação que é vital para todos nós, para toda a humanidade como essa que experimentamos nesses dias tormentosos a serem enfrentados. Dessa vez o inimigo não é um exército, a fome, a pobreza, o ditador, o terrorista - o inimigo é o contato, o contágio, a contaminação.
Deixando de lado disputas políticas absurdas, chefes de estado perplexos ou irresponsáveis, perdas colossais nas economias locais e global, vamos ao que me propus: pensar, ir mais longe do que urge, do que é imediato, mas, claro, não menos importante.

Cuidar significa manter, sustentar, guiar a atenção para ações e comportamentos, lançar um olhar para os que são próximos, cuidar de si, e isso tudo pode parecer simples e banal, mas é o que sustenta a vida. E a vida é a abertura para as possibilidades e escolhas, que para muitos inexiste. Famílias de refugiados, trabalhadores em perigo, pobreza e miséria,  doentes -, para todos esses as escolhas são poucas e o perigo é imediato e real.
Mesmo assim, de modo geral, é preciso ter cuidado, sempre.
Senão vejamos: nos atos do dia a dia, para um simples café da manhã, foi preciso ir à padaria, ou ao super-mercado, pagar, portanto, auferir renda, trabalhar, escolher, atravessar ruas, usar um meio de transporte, ou prevenir-se e ter à mão o necessário. Enfim, em todas as ações, foi preciso cuidado.
É o proverbial, "Quem ama cuida", e também quem trabalha cuida, quem aguarda cuida, quem fabrica cuida, quem transporta cuida.
E o que seria o contrário?
O interesse próprio, o egoísmo, uma pretensa neutralidade e abstenção da realidade, a negação, a violência, a irresponsabilidade, a cegueira ideológica, o deixar-se levar, ignorar as circunstâncias, recusar informação fidedigna, o véu da ignorância.
As consequências para os previdentes e cuidadosos são benéficas, para os irresponsáveis as consequências são danosas, acontece que não só para si, mas sim, e principalmente, para os outros.
Habitamos um planeta, bilhões de pessoas que precisaram interromper suas atividades banais e de repente, perplexos, acordar para a vida, que requer cuidado especial com algo que era inteiramente imprevisível, buscamos o sentido disso tudo, e acordamos para a fragilidade da vida. 
Essa situação pode ser simbolizada pela máscara, algo avesso ao relacionar-se e que se tornou imperioso para o próprio relacionar-se!
Cuidar se transformou em isolar

O que diz Heidegger sobre o cuidado?
Somos seres aí, usamos, fabricamos, perdemos, procuramos, indagamos, e nossa relação desse ser-aí que somos com o mundo implica cuidado, e num sentido existencial, o da abertura para o mundo, o do orientar-se, seguir um rumo, coexistir,  e essa coexistência se manisfesta como cuidado, como assistência. Uma condição ontológica que hoje se tornou evidente e urgente.

domingo, 22 de março de 2020

Doença, morte, corpo e alma segundo Thomas Mann

Aproveito as muitas horas, dias e provavelmente semanas de reclusão para adiantar a leitura da obra prima de Thomas Mann, Der Zauberberg (A Montanha Mágica).
1875-1955 (Prêmio Nobel de Literatura 1929)

Já havia lido há tempos em português, depois em inglês. Mas sempre quis lê-la no original. Assim, resolvi voltar a estudar alemão, curso que interrompi no longínquo 1972, no segundo ano.
Mas entre os atuais três anos da língua e ler Thomas Mann, ia uma distância...
Ainda assim me propus à tarefa, são 1005 páginas!
Aos poucos, com dicionário on-line, prazer e paciência, prossigo, mergulho nas experiências de Hans Castorp, 23 anos, em um sanatório para tratamento de tuberculose em Davos, por duas semanas.
Sanatório em Davos no qual se inspirou T. Mann

Cada hora e cada dia são descritos com minúcia, e nos levam a reflexões sobre a vida, e quem reflete sobre a vida, o faz necessariamente sobre a morte...
E o que leva à morte essencialmente são doenças. O personagem principal, ao chegar à estação e depois ao sanatório, experimenta nele mesmo a doença do seu primo, Joachim, a quem visitava.
Assim Hans Castorp se expressa sobre o mal estar que sente:
Na p. 102: Als ob der Körper seine eigene Wege ginge und keinen Zummenhang mir der Seele mehr hätte. "Como se o corpo tomasse seu próprio caminho e não tivesse mais relação com a alma". E um pouco adiante, o personagem sente que não faz nenhum sentido razoável isso que ele sente, um tipo de desgarramento do corpo, como se o corpo se "comportasse" com vontade própria, a despeito do que sua alma desejaria...
***
Nossas atividades normais e banais são repentinamente interrompidas, o corpo passa como que a ter vontade própria, não dominamos mais nossas sensações de bem-estar a respeito das quais normalmente nem atentaríamos. E ficamos à mercê da doença, procurando a cura, um hospital, um sanatório (caso de Hans), um remédio, por vezes um milagre.
A vida cotidiana escapa de nosso controle, somos ao invés de donos de si meros corpos controlados por um vírus. O invisível tomou conta do mundo todo. Perplexos assistimos a cenas de dor, sofrimento, isolamento e morte.
Mais uma vez a humanidade precisa com urgência da ciência, essa salvação que passa esquecida e desconhecida grande parte do tempo pela maioria das pessoas... 


segunda-feira, 9 de março de 2020

O QUE DIZ HEIDEGGER: SOBRE "VERDADE"?

O mínimo que se pode dizer sobre a concepção de Heidegger de verdade, é que ela é original. 
Em primeiro lugar porque ele dispensa critérios como o do empirismo, de que verdade depende de contato das sensações com o mundo; discorda dos conceitos científicos de verdade, como o de comprovação por testes e cálculos; discorda de que a verdade seja algo inefável, divino, inalcançável para nós, humanos; discorda do conceito aristotélico/tomista, de que verdade é o acordo entre o intelecto e a realidade dos fatos; discorda do conceito estético, verdade é a da arte, o que nos deleita. 
Evidentemente discorda do conceito transcendental, aquele em que a verdade passa pelos filtros dos recursos puros da razão.
1889-1976
O que é então a verdade? Qual é a sua essência?
Tal como os filósofos analíticos, a  verdade requer a linguagem, mas diferentemente deles, a linguagem não é formal ou lógica, não forma uma quadro da realidade suscetível de ser formalizado.
A linguagem para Heidegger enuncia algo, e a isso reagimos, damos uma resposta, abrimos caminho para certo ente, para certo modo como algo se apresenta para nós, naquele dizer, e isso denota liberdade.
Como assim? Então verdade e liberdade se condicionam mutuamente?
Sim, é que liberdade para Heidegger não significa ser solto, independente, e sim estar aberto para a recepção do mundo, para as situações da existência cujo sentido exige verdade como liberdade. O avesso da verdade como desvelar é o encobrir, o pôr um véu, e fazemos isso o tempo todo...
E qual é o limite desse livre apresentar do ente a nós?
O limite não é o impensado, o limite é não podermos sair de nossa condição humana e transcender a totalidade do mundo, dos entes, de tudo o que há. Estamos sempre imersos em nossas situações, nossos objetivos e projetos nos lançam para o aí no mundo.
O mistério do ente em sua totalidade acaba por ser ignorado, pois somos atraídos por nossos problemas, pelo dia a dia, pelas circunstâncias cotidianas.
Nosso modo de ser hoje em dia passa pelos instrumentos, pela tecnologia, pelas máquinas, pelos meios de transporte.
Estamos longe e esquecidos dessa verdade como liberdade, a essência nos foge. Não porque seja inacessível e sim porque nossa lida nos amarra, e a busca pela essência acaba por se confundir com misticismo, exercícios da mente, fé e apego a crenças e mitos.
Difícil retirar essas camadas que impedem chegar à essência, o nosso modo de ser aberto pela linguagem e o acesso à verdade.

domingo, 1 de março de 2020

O que é o cogito para Descartes?

Descartes (1596-1650) apreciava viajar, não só pela Europa, mas também e, principalmente, para dentro de si mesmo.
O si próprio, o seu interior, o seu eu foi a fonte para sua metafísica, base para o racionalismo. Isso quer dizer que para buscar os fundamentos do saber, para chegar à verdade, bastaria encontrar um porto seguro, algo sobre o que não restasse dúvida alguma.
Tudo o que nos cerca pode tanto ser, como deixar de ser. Então por aí não se chega à verdade. De início Descartes pressupôs que nem mesmo operações matemáticas estão a salvo, pois pode-se supor um Deus enganador. 

Foi então que o filósofo decidiu que o melhor caminho, ou seja, o método seguro, seria duvidar de tudo. Exceto de que ele próprio estivesse duvidando. Impossível duvidar de que se esteja praticando o ato de duvidar e tal ato implica necessariamente pensar. A atividade do pensamento é o porto seguro da metafísica, a base para todas as ciências e conhecimentos.
Cético algum pode abalar a certeza dessa verdade: "Penso, logo existo".
Descartes foi além, essa certeza permite deduzir outras evidências, a de que era impossível que ele nada fosse, e do que ele  consistiria?
"De uma substância cuja essência ou natureza era apenas a de pensar e que para existir não tem necessidade de lugar algum e não depende de nada material".
Esse racionalismo, a distinção radical entre corpo=matéria / alma=espírito não serviu para o filósofo resolver questões religiosas, místicas, e sim racionais, a busca da evidência, que é própria do ter ideias e culmina na certeza, que é um estado psicológico de satisfação interior.
O caminho para a metafísica vem das evidências, das ideias claras e distintas, que abrem caminho o método das demonstrações seguras, ou seja, a matemática.
E é por essa via que ele chega à certeza de que há um Deus não enganador, espírito, que existe, uma natureza a mais perfeita de todas, portanto, dotada da mais alta perfeição que é a da existência.
Tudo se conecta em Descartes com as noções de mente, ideia, certeza, verdade, de um lado, e do lado oposto, a matéria sensível, descartável, e tudo que for fruto da imaginação.
A reta razão só pode buscar fundamentos para a verdade, nunca a vontade nem os sentimentos.
Portanto, racionalismo, o pensamento, o cogito, o eu pensante.
Essa concepção nasceu juntamente com o mecanicismo, a doutrina de que a matéria se movimenta como um mecanismo com leis próprias. E, como o espírito ou cogito não segue leis mecânicas, entende-se como foi possível conceber o espírito independente do corpo.
Em contraste, pela concepção atual de evolução, de matéria como energia, a separação corpo/espírito está ausente da metafísica desde Hegel, Nietzsche, e tantos outros filósofos do século XX.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

O que ser ético?

O que se entende por princípios éticos?
Pelo lado sociológico, entram em cena os costumes e tradições de um povo, de uma cultura e de uma sociedade.
Pelo lado moral, entram em cena a educação recebida da família, da escola, dos credos religiosos, dos ensinamentos e exemplos de vida.
Pelo lado filosófico, entram em cena as bases de atos éticos diferentemente de ações e práticas que visam resultados imediatos. Ninguém faz perguntas sobre a ética de uma receita de bolo, mas pode e deve questionar sobre as intenções do confeiteiro ou da dona de casa (casos extremos como envenenar alguém, até os mais corriqueiros, como bajular o chefe de departamento...). Pode-se igualmente questionar eticamente o modo como os ingredientes foram produzidos (mais uma vez um caso extremo como o de trabalho escravo), transportados, embalados, comercializados (por exemplo, vender produtos com prazo de validade vencido).
Essas são questões éticas que envolvem a sociedade como um todo em especial a ética na política. Raros são os personagens íntegros, política e politicagem se confundem. Do lado da ética ambiental estão envolvidas desde a mudança climática até as pesquisas científicas, desde movimentos que se valem de financiamento e de repercussão na mídia, até a conscientização em escolas sobre o problema do lixo.
Por que pessoas que sabem perfeitamente do custo ambiental que é deixar lixo na praia, ainda assim desprezam o descarte correto?
Essa é uma questão ética, orientar suas ações pelo que é válido segundo um princípio da universalidade: vale para todos e eu, minha pessoa individualmente, faço parte dessa universalidade.
O antiético seria usar subterfúgios como "só hoje não", "por que vou fazer se outros não fazem?", "Eu jogo papel na rua e fico tranquilo pois sei que nem todos fazem", e assim por diante.
Não há desculpa possível pelo não conhecimento, pela não educação, pode-se dizer que toda a  sociedade é esclarecida, alertada, ignorar não é mais desculpa hoje em dia. E isso sem mencionar as infrações de trânsito! Sinalizar é obrigatório, mas é relegado por muitos.
O outro lado da moeda são os princípios éticos desprezados pelo poder público, e os exemplos são múltiplos, escandalosos, notórios e, ainda assim, justificados ou mesmo negados. 

Negar, ignorar, justificar, ou na linguagem popular, enrolar é fácil e uma das razões mais fortes é a das consequências desses atos antiéticos passar pela peneira da indiferença, e, claro, da impunidade. Alerta-se para essa última, mas passa-se por cima de algo impossível de punir e de avaliar. A indiferença, o dar de ombros, a falta de princípios éticos, ou seja, um grau de consciência do que é o bem geral e para cada indivíduo.

Vaidade e fama falam muito mais alto do que integridade e correção. 

Uma ressalva, quando escrevi acima "esclarecida", não foi no sentido kantiano de plena autonomia e responsabilidade, agir como se cada ato pudesse se tornar exemplo para todos. 
A falta de "esclarecimento" (Erklärung) parece ser estado permanente de nossa sociedade, mais grave em sociedades não democráticas. 

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Qual o sentido da Filosofia?

Recentemente publiquei livro sobre 15 filósofos, os que considero essenciais mesmo sabendo que nem  todos concordarão com a lista.
É uma publicação de Minha Editora, selo da Editora Manole, Barueri, São Paulo, 2020.
Considero que o livro é uma súmula de meus estudos e reflexões, e tudo começou com a conversa com um aluno, Claúdio (PUC PR), sobre por que filósofos não morrem, como eles ainda hoje iluminam nossas vidas e dão a ela sentido.
Na postagem de hoje escolhi trechos sobre a especificidade da Filosofia, cito as páginas 14, 15 e 16:

"A indagação filosófica começou no século VI a.C. e aos poucos foi se distinguindo do mito. O mito é uma narrativa que nasce do imaginário de uma cultura, ao passo que a filosofia nasce da razão, da busca de razões.
Ela se distingue também do senso comum, que é o guia prático da conduta cotidiana, nele estão embutidas certezas e noções aceitas a partir de uma tradição e de costumes. O senso comum atende expectativas de nosso comportamento e auxilia a resolver problemas habituais. Ele funciona como guia prático que raramente precisa de justificação ou explicação. Ao passo que filosofar é esclarecer, justificar, dar razões.
Por vezes, encontra-se a definição de Filosofia como ciência, mas não cabe no campo filosófico realizar testes e experiências. A ciência descreve, explica como se dão fatos e fenômenos, nas áreas das ciências exatas, das ciências naturais e das ciências humanas. Nelas se empregam teorias e experimentos para explicar de modo objetivo algo da realidade, constatar fatos e aplicar os resultados, por exemplo, em tecnologia, em saúde, em soluções ambientais.
A ciência se renova a cada teoria, a visão do cosmo de Aristóteles, por exemplo, foi superada pela de Galileu, mas o que Aristóteles escreveu sobre a causa dos seres, é pura reflexão filosófica, não está ultrapassado. Em Filosofia não há essa evolução e ultrapassagem: é como se todos os filósofos estivessem vivos. 
Outras vezes se confunde Filosofia com ideologia. Mas enquanto as ideologias são representações sociais e políticas, de natureza compromissória, engajadas em um tipo de luta ou de ideário, a Filosofia requer liberdade de pensamento. Por vezes, as ideologias massificam o pensar, exigem que seus partidários obedeçam a um líder, seus princípios são doutrinários, inquestionáveis. Já o filosofar pode ser até mesmo uma crítica às ideologias. Os partidários de ideologias, como o nome indica, seguem um ideário político ou partidário sem contestação. Uma ideologia pode ser inculcada, um modo filosófico de pensar, jamais pode ser inculcado. O ensino de Filosofia não é doutrinação política ou partidária. Se os ensinamentos filosóficos forem rígidos e direcionados, se forem doutrinários, a filosofia morre; se a Filosofia se tornar uma disciplina como as outras, com conteúdo pescado em manuais de baixa qualidade, morre também.
Há também quem considere Filosofia como saber superior, que chega à verdade, e seria capaz de julgar todas as ideologias e afirmar qual é a correta. Isso não é possível, pois o filósofo não detém a verdade última. Seu papel é o de colaborar com todos os saberes. Evita-se assim o dogmatismo, isto é, achar que há uma razão soberana e fundadora, que há formas racionais que se impõem de cima para baixo. Como os conceitos nascem de uma cultura e de uma história, a tarefa filosófica é a de pensar a diversidade das culturas em colaboração com a arte, a moral, o direito, as ciências.
Nesse sentido, a Filosofia é a mediadora entre os saberes. Impor um saber totalizador e único, que sistematize toda a realidade de modo certo e indubitável conduz à intolerância, condena à morte a reflexão filosófica.
Muito se fala hoje de “consciência crítica”. Ora, ensinar e aprender Filosofia vai muito além de proporcionar consciência crítica e cidadã, mesmo porque todas as disciplinas têm essa obrigação. A especificidade da Filosofia vem de um trabalho rigoroso com conceitos, é um mergulho na riqueza e na complexidade do pensamento, alarga e esclarece esses conceitos, reflete sobre seu sentido, enfim, exercita o pensamento. Não basta expor um tema e depois verificar ou avaliar se os alunos aprenderam.  O uso do raciocínio de tipo reflexivo, indagador, questionador, integra e proporciona comunidades de discussão. Desse modo, exerce-se a pedagogia da integração, do diálogo, da autonomia, da liberdade e do rigor do pensamento."