quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

O ser humano como doador de sentido

O cérebro humano nos capacita para atividades da memória, organização, inteligência, visualização e muitas outras que não menciono mesmo porque não tenho suficiente conhecimento técnico.

Isto posto, vejamos o lado da ação, da interação, da relação do aparato cerebral e de todo o ser humano, desde o nascimento (alguns asseguram que isso se dá na gestação) até o gradual desenvolvimento das capacidades humanas. Sem lesões importantes, o uso da inteligência, das sensações, da memória se dá sempre como resposta a sinais, signos, certa linguagem que são os estímulos que podem ser lidos. Um ruído, uma forma, um imagem, a luminosidade, a presença especial da mãe, de pessoas, impressões táteis, sensações de calor e frio, enfim, há todo um conjunto de estímulos e situações que vão formar a ação humana e suas respostas inteligentes. E não se trata daquela inteligência intelectual, e sim de tudo o que faz sentido.

Para que as coisas e situações façam sentido é essencial o uso de sinais, signos e percepção usados para as distinções e que são fundamentais para que a ação ocorra.  

Em nossa vida tudo passa a ter sentido. Objetos familiares, as ações diárias, as tomadas de decisão, todas as nossas ações são permeadas por tudo o que faz sentido. Até no sono, no sonho, mas são as atividades do dia a dia que mais exigem essa percepção de sentido. Com a arte podemos ter uma noção de como seria inverter ou subverter o sentido normal e cotidiano. A fim de conseguir sentido para um Picasso, usamos nossas alternativas, o impacto da transformação, das formas que deformam, do inusitado, do surpreendente tem por efeito nos acordar e buscar um formato mais próximo ao que sabemos ou podemos distinguir e assim, as coisas mais uma vez, passam a fazer sentido...

E quando dizemos, "isso não faz nenhum sentido!", justamente porque estamos sempre em busca ou encontrando o que faz sentido. Não confundir com o real, que, ironicamente precisa da "intervenção" das significações para ser real. Um desenho animado é real? Não faz sentido, essa pergunta não cabe. Um acidente de carro é real, um acontecimento, mas que só faz sentido porque sabemos detectar a situação, quer dizer, a situação forma um quadro coerente, que "lemos" como acidente. 

E assim, o tempo todo. O próprio escoar do tempo, das horas, sabermos que é manhã, tarde ou noite, se estamos adiantados, atrasados, o "quando" e o "onde" são doadores essenciais de sentido. 

Os sentidos e as significações são renováveis, combináveis, traduzíveis, transmissíveis. São nossas redes configuradas e configuráveis. 

Trata-se de um processo exclusivamente humano, banal e essencial ao mesmo tempo. Como isso que acabei de escrever.

Somos eternos poetas e nem sabemos disso...


sábado, 18 de dezembro de 2021

Os principais conceitos filosóficos, sua compreensão e uso em sala de aula

Ser professor (a) de Filosofia muitas vezes é ver-se diante da  dificuldade de expor de forma clara e compreensível temas e filósofos que parecem não fazer sentido algum.

A primeira atitude seria mostrar que a Filosofia não é como tantos a consideram, pura elucubração, pura abstração, pura teoria. A Filosofia foi considerada e mesmo chamada de "Filosofia Pura", e que esse tipo de qualificação seria o correto para distingui-la dos demais saberes, disciplinas e ciências. Daí a conclusão de que, ao contrário dos outros tipos de conhecimento, o conhecimento filosófico seria pura abstração e, portanto, estaria fora da realidade, e assim inútil e incompreensível. 

Se formos considerar a linguagem hermética, os conceitos metafísicos e mesmo o pensamento da maioria dos filósofos, é possível concordar com os juízos acima. Exemplos não faltam, a lógica de Hegel, a ontologia de Heidegger, o eterno retorno de Nietzsche, e quem se aventura pelas investigações de Wittgenstein ou de Husserl?!

E dizer que houve um longo caminho atrás da formação do professor nos cursos de Filosofia, com paciência e muitos estudos, ler e reler e ao final do espinhoso trabalho perguntar-se, "Para quê?" O hermetismo pode ser frustrante: alguém irá ler seu artigo super especializado, sua dissertação de mestrado cujo destino pode ser apenas a gaveta, ou aquela tese doutoral que talvez nem os participantes da banca leram até o fim?

Tempo perdido?

A alternativa, recolher lições, em especial trabalhar com os conceitos, compreender seu sentido, a mensagem, o que tal ou tal filósofo quis dizer, suas ideias principais, as diferenças entre seus pensamentos. E mais, percorrer os caminhos da ética, da filosofia política, da epistemologia, da metafísica sempre buscando a compreensão das diversas escolas de pensamento.

A pergunta principal, o guia nesses meandros pode ser bem simples, a busca pelos conceitos e seu significado. 

Vejamos alguns deles: ideal e real; teórico e empírico; verdade e dúvida; razão e sensação; subjetivo e objetivo; determinado e indeterminado; abstrato e concreto; forma e conteúdo; essência e existência; transcendental e imanente; fenômeno e "noumenon"; a priori e a posteriori; ser e não-ser; ser e vir a ser; necessidade e contingência; experiência e intelecção. Melhor parar por aqui!

Dado este passo, o professor poderia escolher alguns destes pares de conceitos e pedir aos seus alunos que escrevam frases em que se usam tais conceitos, tais palavras, e algo extraordinário surge: a linguagem que os significa, o sentido que aquelas palavras adquirem quando são usadas em frases que expressam um pensamento, um enunciado, um tipo de comunicação, um querer dizer algo a alguém.

E aquela antinomia tola, ensinar filósofos ou ensinar a filosofar, desaparece. Trabalhar com conceitos passa a fazer sentido. Exemplos: qual é o sentido da busca de Platão pelas essências eternas? Qual é o sentido da afirmação de Aristóteles de que todos nós temos por natureza o desejo de conhecer? E assim por diante, qual o sentido do pensar e ser de Descartes? Qual o sentido da crítica da razão para Kant?

Isso mesmo: os mestres da Filosofia são os nossos mestres em sala de aula. 

domingo, 12 de dezembro de 2021

A "Parêsia" e seu significado para Foucault

 No Collège de France, mas especificamente no curso de 1983, o tema de Foucault gira em torno da noção de "parêsia", o dizer verdadeiro, isto é, com convicção e séria intenção de propósito, é igualmente uma demonstração de coragem. A verdade neste caso não é a da proposição lógica, a da sentença verdadeira, a verdade que pode ser verificada. 

No caso da "parêsia" a verdade é aquela que a própria pessoa é levada a dizer, não só dizer, mas também agir de acordo com essa verdade, a da vida autêntica, a verdade ousada, aquela que a pessoa cultiva em seu íntimo, em sua vida, em seus projetos e ações. 

Foucault expõe a diferença entre o conhecer-se a si mesmo e o cuidar de si mesmo. O primeiro modo é representado pelos conselhos de Sócrates ao jovem Alcebíades, futuro governante. Sem o autoconhecimento o jovem não estaria preparado para conhecer os outros, e por isso mesmo, governá-los. O segundo modo é exposto por Platão nas Cartas, em especial na Carta VII, nos conselhos ao Jovem Dionísio, tirano de Siracusa. 

Enquanto em A República e em As Leis o bom governo se estabelece com leis justas, com uma forma ideal de governo, o governo dos sábios, do rei filósofo (ver postagem anterior), Platão mais velho, calejado com democracias que falham, oligarquias que falham, não recorre às constituições e nem à melhor forma de governar e sim a algo inusitado: o olhar para dentro de si, buscar em si mesmo o melhor caminho, ouvir o conselheiro como se ouve e se seguem os cuidados médicos. A busca da temperança, do comedimento, da transformação de seu modo de vida, de seu regime de vida seria o caminho para um bom e justo governo. 

O curioso é tentar saber por que razões Foucault extrai desses poucos e quase desconhecidos escritos de Platão, como se estivesse tirando leite de pedra, um novo conceito, uma nova concepção, ousaria dizer, ético/política. O curso de 1983 consta de longas aulas, com muita repetição, com bastante insistência nesse tema da busca da verdade em si, em seu modo de viver, no cuidado de si, no dizer-verdadeiro. Afinal, qual é a importância desse tema antigo, cujo exemplo mais notório Foucault buscou na importância dos conselhos de Platão a um governante cujo pai, Dionísio o Velho, o exilou? 

Parece que Foucault está menos interessado em decifrar um tipo de verdade pouco estudado no que toca à filosofia antiga, particularmente a Platão, e mais interessado em explorar como seria a governabilidade de si, um tipo de ética do total desvendamento da própria pessoa. Como seria esse desvelamento corajoso, de dizer a verdade que absolutamente não está ligada à comprovação empírica, que não está ligada aos meandros do inconsciente que a escuta analítica traz à tona. Essa verdade deve ser dita para chegar à transformação de si, e quando ela é exposta ao outro, dirá respeito aos seus atos, hábitos, valores. 

Seria como iluminar-se, seguir um caminho, transformar-se por meio de conselhos, nada a ver com a verdade de tipo cartesiano, do penso logo sou. Ao contrário, não é a verdade intelectualizada, é um dizer verdadeiro, o caminho aconselhável, preferível, que realiza, que proporciona bem-estar interior. A condição, entretanto, é de que a pessoa esteja aberta ao autoconhecimento, à corajosa verdade que supera o egoísmo, o achar-se sempre com a razão de uma postura autocentrada. 

Interessante como um filósofo enverada por diferentes caminhos. Essa trajetória final de Foucault acrescenta-se às trajetórias antes percorridas, como: a crítica ao saber das ciências humanas ignorantes de seu nascimento e de seu uso histórico, à constituição do sujeito em certo tipo de discurso, os de saber e os de poder, à forma como o poder se institucionaliza e é distribuído, ao surgimento de modos de governar populações, quais seriam as diferentes "normalidades". 

                                           ***

Um exercício de imaginação: como seria aconselhar nosso atual Presidente em termos éticos e políticos? Impossível...