quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

O ser humano como doador de sentido

O cérebro humano nos capacita para atividades da memória, organização, inteligência, visualização e muitas outras que não menciono mesmo porque não tenho suficiente conhecimento técnico.

Isto posto, vejamos o lado da ação, da interação, da relação do aparato cerebral e de todo o ser humano, desde o nascimento (alguns asseguram que isso se dá na gestação) até o gradual desenvolvimento das capacidades humanas. Sem lesões importantes, o uso da inteligência, das sensações, da memória se dá sempre como resposta a sinais, signos, certa linguagem que são os estímulos que podem ser lidos. Um ruído, uma forma, um imagem, a luminosidade, a presença especial da mãe, de pessoas, impressões táteis, sensações de calor e frio, enfim, há todo um conjunto de estímulos e situações que vão formar a ação humana e suas respostas inteligentes. E não se trata daquela inteligência intelectual, e sim de tudo o que faz sentido.

Para que as coisas e situações façam sentido é essencial o uso de sinais, signos e percepção usados para as distinções e que são fundamentais para que a ação ocorra.  

Em nossa vida tudo passa a ter sentido. Objetos familiares, as ações diárias, as tomadas de decisão, todas as nossas ações são permeadas por tudo o que faz sentido. Até no sono, no sonho, mas são as atividades do dia a dia que mais exigem essa percepção de sentido. Com a arte podemos ter uma noção de como seria inverter ou subverter o sentido normal e cotidiano. A fim de conseguir sentido para um Picasso, usamos nossas alternativas, o impacto da transformação, das formas que deformam, do inusitado, do surpreendente tem por efeito nos acordar e buscar um formato mais próximo ao que sabemos ou podemos distinguir e assim, as coisas mais uma vez, passam a fazer sentido...

E quando dizemos, "isso não faz nenhum sentido!", justamente porque estamos sempre em busca ou encontrando o que faz sentido. Não confundir com o real, que, ironicamente precisa da "intervenção" das significações para ser real. Um desenho animado é real? Não faz sentido, essa pergunta não cabe. Um acidente de carro é real, um acontecimento, mas que só faz sentido porque sabemos detectar a situação, quer dizer, a situação forma um quadro coerente, que "lemos" como acidente. 

E assim, o tempo todo. O próprio escoar do tempo, das horas, sabermos que é manhã, tarde ou noite, se estamos adiantados, atrasados, o "quando" e o "onde" são doadores essenciais de sentido. 

Os sentidos e as significações são renováveis, combináveis, traduzíveis, transmissíveis. São nossas redes configuradas e configuráveis. 

Trata-se de um processo exclusivamente humano, banal e essencial ao mesmo tempo. Como isso que acabei de escrever.

Somos eternos poetas e nem sabemos disso...


sábado, 18 de dezembro de 2021

Os principais conceitos filosóficos, sua compreensão e uso em sala de aula

Ser professor (a) de Filosofia muitas vezes é ver-se diante da  dificuldade de expor de forma clara e compreensível temas e filósofos que parecem não fazer sentido algum.

A primeira atitude seria mostrar que a Filosofia não é como tantos a consideram, pura elucubração, pura abstração, pura teoria. A Filosofia foi considerada e mesmo chamada de "Filosofia Pura", e que esse tipo de qualificação seria o correto para distingui-la dos demais saberes, disciplinas e ciências. Daí a conclusão de que, ao contrário dos outros tipos de conhecimento, o conhecimento filosófico seria pura abstração e, portanto, estaria fora da realidade, e assim inútil e incompreensível. 

Se formos considerar a linguagem hermética, os conceitos metafísicos e mesmo o pensamento da maioria dos filósofos, é possível concordar com os juízos acima. Exemplos não faltam, a lógica de Hegel, a ontologia de Heidegger, o eterno retorno de Nietzsche, e quem se aventura pelas investigações de Wittgenstein ou de Husserl?!

E dizer que houve um longo caminho atrás da formação do professor nos cursos de Filosofia, com paciência e muitos estudos, ler e reler e ao final do espinhoso trabalho perguntar-se, "Para quê?" O hermetismo pode ser frustrante: alguém irá ler seu artigo super especializado, sua dissertação de mestrado cujo destino pode ser apenas a gaveta, ou aquela tese doutoral que talvez nem os participantes da banca leram até o fim?

Tempo perdido?

A alternativa, recolher lições, em especial trabalhar com os conceitos, compreender seu sentido, a mensagem, o que tal ou tal filósofo quis dizer, suas ideias principais, as diferenças entre seus pensamentos. E mais, percorrer os caminhos da ética, da filosofia política, da epistemologia, da metafísica sempre buscando a compreensão das diversas escolas de pensamento.

A pergunta principal, o guia nesses meandros pode ser bem simples, a busca pelos conceitos e seu significado. 

Vejamos alguns deles: ideal e real; teórico e empírico; verdade e dúvida; razão e sensação; subjetivo e objetivo; determinado e indeterminado; abstrato e concreto; forma e conteúdo; essência e existência; transcendental e imanente; fenômeno e "noumenon"; a priori e a posteriori; ser e não-ser; ser e vir a ser; necessidade e contingência; experiência e intelecção. Melhor parar por aqui!

Dado este passo, o professor poderia escolher alguns destes pares de conceitos e pedir aos seus alunos que escrevam frases em que se usam tais conceitos, tais palavras, e algo extraordinário surge: a linguagem que os significa, o sentido que aquelas palavras adquirem quando são usadas em frases que expressam um pensamento, um enunciado, um tipo de comunicação, um querer dizer algo a alguém.

E aquela antinomia tola, ensinar filósofos ou ensinar a filosofar, desaparece. Trabalhar com conceitos passa a fazer sentido. Exemplos: qual é o sentido da busca de Platão pelas essências eternas? Qual é o sentido da afirmação de Aristóteles de que todos nós temos por natureza o desejo de conhecer? E assim por diante, qual o sentido do pensar e ser de Descartes? Qual o sentido da crítica da razão para Kant?

Isso mesmo: os mestres da Filosofia são os nossos mestres em sala de aula. 

domingo, 12 de dezembro de 2021

A "Parêsia" e seu significado para Foucault

 No Collège de France, mas especificamente no curso de 1983, o tema de Foucault gira em torno da noção de "parêsia", o dizer verdadeiro, isto é, com convicção e séria intenção de propósito, é igualmente uma demonstração de coragem. A verdade neste caso não é a da proposição lógica, a da sentença verdadeira, a verdade que pode ser verificada. 

No caso da "parêsia" a verdade é aquela que a própria pessoa é levada a dizer, não só dizer, mas também agir de acordo com essa verdade, a da vida autêntica, a verdade ousada, aquela que a pessoa cultiva em seu íntimo, em sua vida, em seus projetos e ações. 

Foucault expõe a diferença entre o conhecer-se a si mesmo e o cuidar de si mesmo. O primeiro modo é representado pelos conselhos de Sócrates ao jovem Alcebíades, futuro governante. Sem o autoconhecimento o jovem não estaria preparado para conhecer os outros, e por isso mesmo, governá-los. O segundo modo é exposto por Platão nas Cartas, em especial na Carta VII, nos conselhos ao Jovem Dionísio, tirano de Siracusa. 

Enquanto em A República e em As Leis o bom governo se estabelece com leis justas, com uma forma ideal de governo, o governo dos sábios, do rei filósofo (ver postagem anterior), Platão mais velho, calejado com democracias que falham, oligarquias que falham, não recorre às constituições e nem à melhor forma de governar e sim a algo inusitado: o olhar para dentro de si, buscar em si mesmo o melhor caminho, ouvir o conselheiro como se ouve e se seguem os cuidados médicos. A busca da temperança, do comedimento, da transformação de seu modo de vida, de seu regime de vida seria o caminho para um bom e justo governo. 

O curioso é tentar saber por que razões Foucault extrai desses poucos e quase desconhecidos escritos de Platão, como se estivesse tirando leite de pedra, um novo conceito, uma nova concepção, ousaria dizer, ético/política. O curso de 1983 consta de longas aulas, com muita repetição, com bastante insistência nesse tema da busca da verdade em si, em seu modo de viver, no cuidado de si, no dizer-verdadeiro. Afinal, qual é a importância desse tema antigo, cujo exemplo mais notório Foucault buscou na importância dos conselhos de Platão a um governante cujo pai, Dionísio o Velho, o exilou? 

Parece que Foucault está menos interessado em decifrar um tipo de verdade pouco estudado no que toca à filosofia antiga, particularmente a Platão, e mais interessado em explorar como seria a governabilidade de si, um tipo de ética do total desvendamento da própria pessoa. Como seria esse desvelamento corajoso, de dizer a verdade que absolutamente não está ligada à comprovação empírica, que não está ligada aos meandros do inconsciente que a escuta analítica traz à tona. Essa verdade deve ser dita para chegar à transformação de si, e quando ela é exposta ao outro, dirá respeito aos seus atos, hábitos, valores. 

Seria como iluminar-se, seguir um caminho, transformar-se por meio de conselhos, nada a ver com a verdade de tipo cartesiano, do penso logo sou. Ao contrário, não é a verdade intelectualizada, é um dizer verdadeiro, o caminho aconselhável, preferível, que realiza, que proporciona bem-estar interior. A condição, entretanto, é de que a pessoa esteja aberta ao autoconhecimento, à corajosa verdade que supera o egoísmo, o achar-se sempre com a razão de uma postura autocentrada. 

Interessante como um filósofo enverada por diferentes caminhos. Essa trajetória final de Foucault acrescenta-se às trajetórias antes percorridas, como: a crítica ao saber das ciências humanas ignorantes de seu nascimento e de seu uso histórico, à constituição do sujeito em certo tipo de discurso, os de saber e os de poder, à forma como o poder se institucionaliza e é distribuído, ao surgimento de modos de governar populações, quais seriam as diferentes "normalidades". 

                                           ***

Um exercício de imaginação: como seria aconselhar nosso atual Presidente em termos éticos e políticos? Impossível... 



 

domingo, 28 de novembro de 2021

Platão e a proposta de um rei filósofo

 Os que regem os Estados, os chefes de Estado, no caso do Brasil, o presidente da República, deveriam ser educados para cumprir essa missão. Assim pensava Platão com relação à democracia e à oligarquia atenienses que à sua época haviam se corrompido. Os que governam deveriam ser preparados para exercerem um compromisso essencial à cidade e à política. Para tal o rei, isto é, o mandatário teria que ser educado por filósofos e ele igualmente seria um futuro filósofo, alguém capaz de usar da sabedoria e da justiça. E para ocupar essa posição que exige distribuição da justiça, comportamento ético e verídico, seus mestres filósofos o educariam desde a juventude.

Não há na concepção de Platão nada que lembre elitismo, glorificação ou superioridade de uns apenas e o não reconhecimento de outras funções. A função e o aprendizado devem ser adaptados um ao outro. Aquele que foi educado, preparado e tem a força é quem pode exercer a função de guardião da cidade, mas se esse guardião fosse incumbido de reger a cidade, sem que tenha sido educado para comandar cidadãos, seu governo será fracassado. 

"Ousemos dizer que se devem colocar os filósofos como os mais seguros guardiões do Estado. Pensa porém que eles são poucos" (A República, livro VI). Além de se submeterem a exercícios físicos como os soldados, deveriam ser educados com múltiplos estudos sem esmorecerem.

O próprio Platão fora chamado para instruir o futuro príncipe de Siracusa, sem sucesso, pois acabou por ser condenado e exilado.

Evidente que entre a boa teoria, entre o ideal de um governante justo e bem preparado, e a realidade de Atenas com sua democracia corrompida, a distância era grande. 

A História está repleta de governantes desastrosos, com poucas exceções. A ninguém ocorreria preparar com altos estudos o mandatário de uma nação. Com o voto universal, direito inalienável e justo, o problema são os meios diversos e suscetíveis de manobras, a propaganda paga, por vezes falsa. É muito fácil conduzir a massa, ela é manobrável, pode ser estimulada e incitada para um lado ou outro. O público educado e esclarecido de que falava Kant, além de ser reduzido, se encontra isolado e impotente em face dos recursos infinitos que as mídias e as redes detêm. O modo como se elegem os nossos representantes, e o pior, como eles surgem, como eles se candidatam, o que praticam, como escalam os degraus do poder, lisonja, corrupção, falsidades, são as condições que o poder impõe e dispõe.

Resta sempre a esperança...

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

"O ser humano se tornou coisa entre coisas"

Basta a leitura de algumas páginas de um jornal de algum canto do mundo, basta visitar um site de notícias, ou entrar redes de relacionamento, buscar informação, ler algumas páginas de um livro de História, pode ser da América, da Europa, da Ásia ou da África - e o que poderemos constatar, ao menos por meio de uma reflexão filosófica?

Que o ser humano se tornou coisa entre coisas, esqueceu do ser. Como assim? O ser humano precisa ocupar-se com as coisas, lidar com elas, transformá-las, utilizá-las do contrário ele perece. Sim, imprescindível a necessidade de sobrevivência, e é isso que se vê o tempo todo, em todo lugar. As necessidades não são satisfeitas pela busca do ser, talvez pela busca por liberdade e um pouco menos pela verdade.

Se a questão é a sobrevivência, qual é o sentido dessa afirmação, de termos esquecido do ser e nos tornarmos coisas?

O trabalho ao mesmo tempo em que sustenta, nos aliena. Um exemplo simples e notório: os entregadores que se multiplicaram com a pandemia e que precisam enfrentar o trânsito, lutar contra o tempo e chegar ao destino para ganhar alguns trocados. Faz sentido afirmar que o entregador esqueceu do ser? Nada mais estranho e absurdo, ele precisaria ser filósofo para não esquecer do ser?

Evidente que não. O entregador com sua moto ou bicicleta pertence ao mundo das coisas, dos negócios, do trabalho, da subsistência, faz parte da engrenagem social e econômica. É assim na modernidade muito mais do que em épocas pré-industriais. Nosso compasso é o da medida, da técnica, do consumo, da ultra especialização, do cálculo. Impossível a vida humana sem máquinas e tecnologia. 

Então, mais uma vez, faz algum sentido afirmar como Heidegger que esquecemos do ser? Qual o sentido da vida, ou, em termos conceituais, qual o sentido do ser? Seria a capacidade de ir além, algo como a busca do eterno no homem, esse eterno seria o ser que em meio às coisas nos desperta para a arte, o poético, o brilho nos olhos que vem da inspiração, da invenção, da abertura que deixa entrar certa luz, quando se é tomado pela sensação de uma presença, algum tipo de epifania, quando parece que tudo se ajusta, que o quebra-cabeças foi resolvido. A abertura para o ser é uma sintonia, uma sinfonia, uma revelação

A cada ser humano é dada a possibilidade de entender e de se fazer entender, como pelo grito de protesto, na tomada de uma difícil decisão, ao expor seu sofrimento, ou na explosão de alegria. 

São várias as maneiras de nos integrarmos ao ser, de comemorarmos a vida, de colocarmos o eterno em nossos corações e sair um pouco das engrenagens. Movimentos difíceis e raros. Os obstáculos são os de sempre: poder e cálculo de poder, mentira, violência, crueldade, falsidade, fanatismo. 

Urge abrir horizontes, essa é a questão do ser para Heidegger, é isso que precisa ser compreendido como uma música que soa ao longe e que apenas nós, seres humanos somos capazes de criar e de usufruir. 



domingo, 31 de outubro de 2021

Objetividade e subjetividade em nova versão

 A diferença entre objetividade e subjetividade parece evaporar nas redes de comunicação. A objetividade sofre pela falta de responsabilidade, pela preguiça mesmo de conferir quem diz o que, as fontes, e com isso respeito e consideração pelos outros se tornaram palavras vazias. Vale a autoridade, vale o prestígio, valem os likes, e valem as mentiras dos lobos fantasiados de cordeiros.

O nó da questão: aqueles que abrem as páginas buscam em geral apenas confirmar seus pontos de vista, a contestação é tida como desfavorável, desprezada, não é preciso que nesse tipo de "comunicação" haja retorno, que os argumentos prossigam, que se investiguem as bases, a fundamentação do que é dito que não passa em geral de recados e palavras de ordem e muitas vezes insultos. "Sigam-me!"

Quanto à subjetividade, essa então nem faz mais sentido, e isso porque a subjetividade vai ser a ré, será julgada como inapropriada, inconveniente, atrapalha o curso dos supostos fatos, um poço sem fundo de identidades perdidas. O sujeito que a pessoa é não conta, mesmo porque a busca de si mesmo, o mergulho no que se pensa, nos seus valores, nos seus julgamentos perdeu o sentido. 

A necessária objetividade é imposta pela realidade que permanece em aberto, conhecer o mundo sem objetividade acarretaria o caos, não haveria mais medida, compreensão e execução de um simples projeto, como o de construir casas, pontes, edifícios, estradas. Os critérios devem ser acordados, seguidos, praticados. Impossível ignorar sinais, signos, avisos, ordens, parâmetros sem consequências. Quando se desviam deles, quando evidências são desprezadas a própria vida em sociedade fica sob risco, até mesmo catástrofes...

Assim, importa e muito, é essencial conhecer o mundo. A ação humana, mesmo quando degradante, exige o mínimo de objetividade, de acordo, de verificação e do que disso resulta. A ação humana é inteligente, vai às consequências, mira nos projetos. Sair disso implica perigo, é sinal de ignorância, e por vezes de bestialidade. Ditadores, chefes de estado irresponsáveis, corruptos, cegados pelo poder são o mais triste e degradante exemplo de como as funções e cargos públicos podem ser desviados e corrompidos.

Há outro lado menos conhecido e questionado. Trata-se das mudanças e transformações que se deram em nosso modo de nos conhecermos neste mundo. Chegar ao seu "eu mesmo", e isso por dois meios: o do conhecimento, como no dito délfico e socrático "Conhece-te a ti mesmo" e o outro seria o cuidar de si mesmo, a atenção voltada para o cultivo de si. Essa diferença é o tema dos últimos cursos de Foucault no Collège de France. Se formos transpor essa diferença para nosso tempo, para a história atual, como ficaria a subjetividade?

Os meios para conhecer o sujeito são as análises, as autoanálises, os encaixes em tal ou tal característica ou personalidade, o eu da certeza cartesiana, a busca de um solo que reconforte, livrar-se de medos, da ignorância, buscar e atingir o self. 

Como seria o cuidar de si na modernidade? O mergulho para dentro de si prescindiria de um espelho para nele colar sua identidade, seria uma busca menos apolínea e mais dionisíaca, mais inventar-se do que conceituar-se, dançar e transformar-se como queria Nietzsche. Cultivar nossa finitude e presença aí no tempo, irrevogável, a capacidade de ser generoso consigo mesmo, e mais livre, mais liberto de tantos e tantos véus da ignorância. 

domingo, 10 de outubro de 2021

"Se eu quiser falar com Deus"', inspirada letra de Gilbert Gil

 Ouvir e escolher músicas se tornou corriqueiro e acessível. Costumo cozinhar ao som do que o momento inspira. Dia desses  uma surpresa foi a letra da canção cujo título motiva a postagem.   

"Se eu quiser falar com Deus tenho que ficar a sós, tenho que apagar a luz, tenho que calar a voz, tenho que encontrar a paz, tenho que folgar os nós dos sapatos, da gravata, dos desejos, receios ... tenho que ter mãos vazias, ter a alma e o corpo nus ... tenho que aceitar a dor, tenho que comer o pão que o diabo amassou, tenho que virar um cão, tenho que lamber o chão dos palácios, dos castelos suntuosos, do meu sonho, tenho que me ver tristonho... tenho que me achar medonho, e apesar do mal tamanho alegrar meu coração. Se eu quiser falar com Deus, tenho que me aventurar, ...tenho que subir ao céu sem cordas pra segurar, tenho que dizer adeus, dar as costas, caminhar para a estrada que vai dar em

nada, nada, nada do que eu pensava encontrar".

Deus presente nas mais diversas e corriqueiras atividades humanas, nos mais simples desejos e sentimentos, em despojar-se de riquezas, na raiva, nas injúrias, no silêncio e no recolhimento. Precisamos de silêncio, tão difícil de encontrar... Mas pode ser que se nos abandonarmos ao estar a sós e livres do que nos prende, do que nos corta caminhos, poderíamos alçar voos mesmo sabendo que a nós isso é impossível.

A condição humana pode ser nobre, mas pode igualmente ser essa a condição que requer humilhação, pode ser que exija o reconhecimento da fraqueza, do terrível, do abjeto e mesmo assim precisamos de alívio para ir adiante, tropeçar, levantar, prosseguir. 

Finalmente, onde estaria esse nosso Deus, é a pergunta que comanda a letra. Estaria em nossas próprias dificuldades, desejos, sonhos, até mesmo para, sem cordas, subir aos céus.

No final pertencemos à estrada da vida que não vai dar em nada, pois antes de cada um de nós sermos, somos nada. Depois de irmos, somos nada. Afinal, o que pensáramos deter e reter são ilusórios.

As versões para entender a mensagem de Gil devem e podem assumir os pensamentos e projetos de cada um. Dei a minha versão. É possível que a letra inspire nada, nada, nada... 

 

sábado, 25 de setembro de 2021

Liberdade de expressão para Habermas

  Um dos assuntos mais atuais e controvertidos em nosso país hoje é o tema "liberdade de expressão". Do ponto de vista político o debate é um verdadeiro choque entre poderes, o do judiciário com suas tramas e recursos, e o lado dos que se consideram liberais no atual governo de Bolsonaro. No entendimento dos defensores da liberdade de expressão, qualquer tipo de recusa de parte das redes socais de publicar o que ofende, o que é falso, o que discrimina significa censura à opinião. O presidente Bolsonaro tem tentado proibir que as empresas de tecnologia exerçam essa "censura". Vale tudo, então?

O que está em jogo? O poder de comunicação. Vejamos o tema sob o aspecto filosófico para tentar deslindar o impasse provocado nas e por meio das redes sociais de comunicação versus presidente da república, seus filhos e apoiadores.

Na linguagem que usamos para a comunicação além de nos expressarmos, precisamos nos fazer entender. Há uma diferença entre significar algo em frases da nossa língua e a capacidade de, ao mesmo tempo, comunicarmos algo a alguém, então essas frases são um tipo de ação. Que ação? Ação comunicativa com efeitos nas nossas formas de vida, em nosso trabalho, em nosso dia a dia, nas mensagens na internet, nas reportagens. Enfim, espera-se que pessoas e/ou grupos se entendam a respeito de algo e que possam agir de acordo com esse entendimento.

As trocas linguísticas comunicativas implicam que, para serem efetivas, para terem efeito ilocucionário (explico adiante) é preciso haver compromisso com a sinceridade, que sejam calcadas em fatos e situações acessíveis e comprováveis, e que sejam atos de comunicação adequados e  vinculados às normas de certa cultura. Essas três condições, sinceridade de propósitos, possibilidade de constatação e adequação às normas culturais são responsáveis pelo efeito ilocucionário, quer dizer, uma comunicação bem-sucedida.                                               

                                                                   

                                                     Habermas nasceu em 1929, vivo e atuante.

Em discussões, quando um ponto de vista é arbitrariamente defendido, as ameaças, as mentiras, a exposição de fatos de forma distorcida, nessas discussões o aspecto comunicativo falhou, para Habermas não há simplesmente comunicação pois visam "apenas" influenciar. Seria o caso hoje em dia das fake news  nesse debate sobre a liberdade de expressão. Mas, há liberdade no ato de mentir? Quem inventa, distorce ou ofende, exerce a liberdade? Creio que não. Sequer seria um ato de negociação, um ato de comunicação estratégica como no caso de um negociador de ações na bolsa de valores. Ele não se comunica com um público, ele vende, a situação é a de um mercado. Não há que ser sincero, veraz, basear-se em normas. A comunicação neste caso é estratégica. Visa sim interesses.

Ao passo que nas ações comunicativas os efeitos são os de compreensão, e estes iluminam a ação. Como fica a questão da liberdade de expressão ao ver de Habermas?

Não há liberdade de expressão na mentira, na distorção, na imposição, no jogo de interesses. O apelo à liberdade de expressão para vender gato por lebre, para iludir, influenciar, é um apelo falso e hipócrita. 

A comunicação veraz, sincera, calcada em razões conduz ao debate produtivo, à troca de ideias, e isso educa, responsabiliza, e essas são algumas das bases de uma sociedade democrática.


domingo, 12 de setembro de 2021

A tranquilidade da alma para Sêneca

 Sêneca foi um dos principais filósofos do estoicismo. Morreu no ano 65 d. C. quando foi condenado ao suicídio por Nero. Ora admirado pelos imperadores romanos, ora perseguido, foi inclusive exilado na Córsega. 

Seu pensamento gira em torno da ação humana, da moral, dos conselhos para a  vida, como indica o título de um de seus escritos, Da Tranquilidade da Alma. Ele exalta a simplicidade, dispensar as riquezas e o luxo. A melhor refeição não é aquele lauto banquete preparado por escravos, mas alimentos que "não pesam nem à bolsa nem ao estômago", busca em tudo o equilíbrio, a serenidade, evitar tanto os desejos exaltados bem como os mais tímidos. E ainda, lamenta os que vivem a se queixar, a inconstância do humor, o amor àquilo que abandonaram, os que só sabem suspirar e bocejar. Lamenta os que não sabem viver em sua própria companhia, que é a única  que temos de fato, lamenta a quem tudo parece uma carga pesada.

                                        

                                                     Sêneca

O remédio? O estudo que evita você tornar-se uma carga pesada para si e para os outros, mas sem a concentração e o isolamento em si, pois estas constroem de um lado e destroem de outro. A virtude está em combinar repouso com ação, nunca veremos todas as portas se fecharem, sempre resta uma que nos leva a praticar uma ação virtuosa. "Aprendamos a andar com nossas próprias pernas ..., aprendamos a cultivar em nós a sobriedade ... a reprimir nossa vaidade ...a não ter nas mãos ... as ambições desenfreadas, a esperar a riqueza menos da sorte do que de nós mesmos".

Foucault no curso de 1982 A Hermenêutica do sujeito aborda a cultura helênica dos séculos 1o. e 2, e ressalta essa cultura de si como um período entre o platonismo de modo geral e o cristianismo. Com elementos gregos, essa cultura de si inova com os céticos, epicuristas e estoicos. Na aula do dia 17 de fevereiro, no Collège de France, Foucault realça a importância, entre outros estoicos, de Sêneca, justamente em suas reflexões sobre a velhice, a liberdade que se conquista na velhice calcada na natureza e voltada para si, como o si mesmo, como o eu nos garante contra perigos e nos proporciona alegria e tranquilidade, desde que a pessoa não seja escrava de si mesma, não exija demais de si, que evite o circuito de obrigações e recompensas. Um dos caminhos para a velhice serena é o da contemplação da própria natureza das coisas, a busca do caminho da luz, a libertação dos vícios, das mentiras e da ambição. Ao valorizar o estado de paz consigo mesmo, a alma vai em direção à luz divina que é aquela conatural à alma. 

Conhecer e contemplar a natureza do alto permite enxergar nossas fraquezas e nossa pequenez. A alma não contemplará o mundo das ideias como para Platão. A alma, contempla esse mesmo mundo nosso, com todas as suas peculiaridades e dificuldades, as condições são as nossas, as de nosso mundo, e, ao nos vermos do alto compreendemos que somos mortais, que fazemos parte do mundo no qual pode ser assegurada a nossa liberdade.

Para Foucault isso "parece definir uma das mais fundamentais formas de experiência espiritual encontrada na cultura ocidental". Nem um mundo ideal e perfeito das essências platônico, nem o mundo das recompensas celestes à alma imortal e pura, à ascese do espírito do cristianismo.

domingo, 29 de agosto de 2021

A coragem

Para Platão, a coragem e a fortaleza são as virtudes dos guerreiros que protegem a cidade. Virtudes são capacidades morais, dizem respeito à ação reta, proporcional e justa. E isso sem necessidade de uma avaliação externa, apenas a de sua própria atividade. A cidade justa é aquela em que cada um cumpre sua função. Platão valoriza a distribuição apropriada, e não a igualdade. Pode parecer inapropriado aos nossos olhos esse tipo de consideração. Para o filósofo, um legislador, ao contrário do guerreiro, não deve e nem precisa agir de forma corajosa e sim justa. Os artesãos precisam exercer suas habilidades, do contrário o resultado será desastroso. E assim por diante.

Então, a coragem implica desapego aos bens materiais, treinamento e educação adequada à função, cuidado com o interesse geral, estar habituado às privações.

Como, em contraposição, entendemos a coragem? Busquemos auxílio em Aristóteles. Como há uma tensão entre a coragem física e coragem moral, a valorização de uma ou de outra dependerá da situação, há, portanto, dois tipos de coragem. Para Aristóteles, a ética das virtudes ensina a prática do justo meio, do equilíbrio. Assim, em um extremo tem-se a temeridade, o impulso para agir de forma impensada e se atirar simplesmente ao perigo, é insensato. Na outra ponta, situa-se a covardia. O covarde mais desprezível é o covarde moral, não tanto o covarde físico. 

                                                             ***

O covarde não mede as consequências de seus atos, sempre reputa aos outros ou à pressão externa seus atos ignóbeis. Ele acusa o outro, e, nas poucas vezes em que olha para dentro de si nega, floreia, arranja desculpas, atira a responsabilidade para sua falta de sorte. Não se vê como fraco e nem fracassado.

Falta ao covarde certa disposição de caráter. Ele pergunta: caráter? O que é isso?! E junto com a covardia, e penso nas relações familiares e sociais da modernidade, há outras implicações. O covarde foge do enfrentamento do que lhe é superior ou inacessível, na mesma medida em que busca justamente o que é facilmente dominado. Age por debaixo dos panos. Penso na covardia da agressão física e moral às mulheres e às crianças. Penso nas mentiras que circulam impiedosamente na internet, penso na covardia do bullying nas escolas, penso em presidentes e ex-presidentes que soltam o verbo e agem sem sequer saber o que significa bem comum. Parece que no lugar de exercer a fala, a palavra, eles ladram.

Talvez as considerações abaixo o retratem. Ele

mente para  si próprio. Aquele que mente para si mesmo e escuta sua própria mentira acaba por não mais distinguir a verdade nem em si nem em torno de si; ele perde o respeito por si e pelos outros. Não respeitando ninguém, ele cessa de amar, e para se ocupar e se distrair, na ausência de amor, ele se apega às paixões e aos prazeres grosseiros (Dostoiévski, "Irmãos Karamazov").

Mesmo que não sejam as paixões ou os vícios, basta o apego do covarde às mentiras, ao autoengano. Ele costuma fazer de si a ideia de que é o soberano dono de um castelo, mas sua moradia não passa de um casebre. O covarde não é o medroso, o covarde é o mentiroso.

terça-feira, 24 de agosto de 2021

A apatia

 Os valores e sentimentos de simpatia, antipatia, empatia e apatia, significam que o nosso pathos, a nossa sensibilidade, o modo como vemos, sofremos e lidamos com esse pathos, pode assumir diferentes condições e possibilidades:

Sentir com, ser aberto ao outro, franco, revelar-se, a simpatia.

Ser avesso, contra, negativo tanto para um outro como de um outro, a antipatia.

Por a si mesmo no lugar de outrem, ser capaz de entender pessoas, situações e interagir, a empatia.

A indiferença, o desânimo, a inação, a falta de iniciativa, a desobrigação quanto a valores, a apatia.

Senhores jurados, esse caso teve repercussão em toda a Rússia. No fundo, temos nós a chance de ser surpreendidos, de nos espantarmos? Não estamos habituados a todas essas coisas? Esses negócios sinistros quase não nos emocionam, que lástima! É nossa apatia, senhores, que deve horrorizar-nos, e não o caso de tal ou tal indivíduo. Qual a causa de nós reagirmos de modo tão fraco diante de fenômenos que pressagiam um futuro sombrio? Será preciso atribuir essa indiferença ao cinismo, ao esgotamento precoce da razão e da imaginação de nossa sociedade, tão jovem ainda, mas já débil; à subversão de nossos princípios morais ou à ausência total desses princípios? Eu deixo em suspenso essas questões... (Dostoievski).

Diante do júri que vai decidir o futuro de Dmitri, o parricida de Irmãos Karamozov, o promotor se indigna com a apatia, são tantos os desmandos que a indiferença e o cinismo prevalecem, mesmo com as revelações da imprensa. A época, 1879, décadas finais do século 19, está distante no tempo, mas próxima de nós no que diz respeito a valores, à violência, aos desmandos. Acredito serem tais desmandos ainda piores se pensarmos que os horrores das duas guerras mundiais, campos de concentração, terrorismo, fome, devastação da natureza seriam coisa do futuro. Mas, antes disso na própria Rússia os criminosos eram deportados para a Sibéria e a pena eram os trabalhos forçados; mais tarde os Gulags de Stálin.

O que nos afeta de perto em geral é muito mais sentido, avaliado, desperta raiva, compaixão, e tantos outros sentimentos, do que fatos brutais que ocorrem longe, e isso mesmo quando os horrores estão diante de nossos olhos, disponíveis e amplamente divulgados. 

É tanta a violência, a covardia e os extremismos que o risco é cair na apatia.

A apatia significa indiferença, nulidade de ação, aceitação, submissão, um dar de ombros e pensar, não é comigo, está longe, é com os outros, não temos muros separando fronteiras no Brasil, não temos, como se costuma pensar, terremotos, furacões, vulcões, não temos um exército de terroristas...

Estamos por isso tudo, bem?

Nem de longe, as instituições só cumprem seu papel quando instigadas, não há a atitude propositiva de enfrentamento, de esclarecimento, de atender o bem comum. Deixar pra lá, como escreve Dostoievski, não nos emocionamos mais, somos cobertos pelo cinismo, não reagimos, imaginação e razão esgotados.

A apatia é indício de que os valores morais e os princípios se apagam, e essa é uma ameaça à convivência, à participação interessada e responsável. Não é porque se tem extremos intransigentes cegados pelo poder, que não devamos e não possamos reagir. 

domingo, 8 de agosto de 2021

Heroísmo, quem são e o que representam os heróis?

Em recente conversa com uma amiga, Nordi, ela me fez a seguinte  pergunta: como é possível que alguém como Napoleão tenha sido preso como inimigo perigoso e mais tarde venerado a ponto de seu túmulo ser um dos monumentos mais imponentes da França?

Boa pergunta, e para refletir sobre esse paradoxo, vejamos um pouco o que significa e o que é o heroísmo.

Recentemente foi queimada a estátua de Borba Gato em São Paulo, estátuas foram derrubadas no governo Trump, quando a cortina de ferro caiu os vultos da era comunista cultuados e eternizados em gigantescas estátuas, vieram abaixo. Entra regime, sai regime e os que foram líderes e heróis passam a ser tratados como inimigos da pátria. 

                 Não seria verdadeiros heróis os soldados homenageados no monumento acima?

O que os tornara heróis? Conduzir uma revolução, atuar no comando em guerras, estar do lado da justiça, do povo, da lei, e quais são os critérios além dos óbvios como chefiar movimentos, o que os qualifica? E as dúvidas não param aí. Que tipo de movimento, popular, de esquerda, de direita, revolucionários, conservadores eles lideraram?

E que dizer dos elevados à categoria de mitos? (Vale rir...)

É preciso tentar entender a História e as histórias. A História premia ou castiga segundo alguns parâmetros como o de ser justiceiro, alguém que derrubou um regime de força e de opressão, o grande conquistador (Alexandre e o próprio Napoleão se enquadram), o injustiçado (Tiradentes?), o condutor das massas em direção à liberdade (Gandhi), o desbravador (bandeirantes, Rondon), o líder nas guerras de libertação (Churchill) e muitos mais. E que histórias com "h" minúsculo sobre eles se contam?

A ambiguidade do sentido de heroísmo se evidencia conforme os regimes, as lutas revolucionárias, as guerras, as conquistas. Generais brasileiros na guerra do Paraguai são heróis e Solano Lopes ditador sanguinário? Os caudilhos, os cangaceiros, os bandeirantes, em que categoria cabem?

Quem merece monumentos, qual o peso e porque santificar um personagem num "altar da pátria" soa ridículo, despropositado?

São muitas as interrogações e dúvidas, e isso porque os critérios de heroísmo são inteiramente relativos ao momento histórico, aos valores de certa época, e, principalmente, às consequências dos atos dos personagens relevantes. 

Para sairmos da relativização, há alguns critérios decisivos, e eles podem ser avaliados pelas consequências. Quais mudanças em direção à preservação de valores essenciais como liberdade de ação, de credo, de opinião; a prevalência de regime democrático; a busca de justiça social; direitos civis assegurados por lei; direito à propriedade; implantação de instituições capazes de assegurar a vida, a saúde, o bem-estar. 

Paradoxalmente, os heróis não são os responsáveis diretos por sociedades onde liberdade e direitos fundamentais sejam implantados e assegurados. As mudanças históricas, os modos de viver, de produzir, de valorar, as importantes e cruciais revoluções técnicas, tecnológicas, essas movem a história, muito mais e mais profundamente do que os heróis e pseudo-heróis. 

Tiranos que impuseram seus regimes de força, esses sim, são o rebotalho da História. Aos heróis cabe a dúvida... Nem os heróis de história em quadrinho se livram de ambiguidades.

E que dizer dos anti-heróis? Deixo o (a) leitor (a) para pensar quem e o que assim os qualifica.

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Razão e Religião, como Kant as vê

 Para Kant, a razão ensina que há coisas que não podemos conhecer, como a vida após a morte. Em escrito anterior às "críticas", Sonhos de um visionário, Kant argumenta que crer em espíritos e em outro mundo é inútil, posto que sendo imateriais não há como chegar a eles. 

Quanto à moral, ela faz parte das ações livres, das práticas, da liberdade e da autonomia do sujeito. Não pertencem ao domínio divino, se assim o fosse perderíamos a autonomia.

Ao passo que as religiões se guiam pela fé. Lembremos que Kant fora educado em ambiente estritamente religioso, e o sentimento religioso vale pela sinceridade do coração, faz parte das convicções pessoais. As leis morais são projetadas para fora do sujeito e se tornam fé religiosa. Mas Kant discordava do apego aos rituais, discordava do fanatismo, da adoração, das superstições. As religiões deveriam basear-se em princípios, entre eles aquele que Kant tanto prezou, o do dever. O dever moral e a boa conduta importam mais na relação religiosa com Deus do que os rituais. Kant defende a liberdade para a prática de religiões, condena a submissão às autoridades eclesiais, e, principalmente, a hipocrisia. 

Infelizmente há religiões, ou melhor, seitas, em que se vê o "Façam o que eu autoridade e chefe comando", mas em particular vale tudo, inclusive auferir proveitos, submeter os fiéis às suas ameaças, prometer céus e exigir em troca, para usar um termo antigo, moedas.

São hipócritas os que pregam a fé sem base em convicções. Assim se a crença em Deus depende de delegar a ele a função de legislador das leis morais, a própria pessoa se vê desobrigada da responsabilidade pelos seus atos. Para Kant apenas cada um de nós é responsável pelas suas ações, é a  nossa consciência que aponta o caminho do bem.

A ação pode e deve ser aperfeiçoada, há valor em ter esperança na realização do reino de Deus  na Terra, entre os homens. Esse aperfeiçoamento ético decore de obediência à leis morais sem coerção. Trata-se de uma concepção de religião de pura fé moral, as prescrições doutrinárias são secundárias. Orações e sacrifícios são ilusórios, frutos de superstição (in 15 Filósofos, vida e obra, p.211).

A razão prática abriga a fé como uma de suas facetas e não o contrário.

quinta-feira, 22 de julho de 2021

O que é alienação?

 "Alienados", assim eram chamados os doentes mentais, os que eram internados nos asilos e hospícios. Um conceito que ficou para trás.

Por alienação se entende a falta de consciência, a má consciência, o apego a certas ideologias, crenças, a adesão sem crítica a uma doutrina política, social, ao moralismo apegado a preconceitos, enfim, veste-se o véu da ilusão.

Adotar uma postura política, partidária, fé ou crença em doutrinas, quando a pessoa ou grupo são abertos para outras posturas, partidos ou crenças, a possibilidade de alienação amortece. Quando o lado oposto é ouvido, quando o grupo ou a pessoa aceita entender o contraditório, então surge a possibilidade de argumentar, de ouvir o outro, de esclarecer as ideias, de expor seus compromissos e seu modo de pensar e agir.

Quando se é ou se está alienado, ao contrário, a cabeça e as ideias ficam fechadas num mesmo círculo, isso mesmo, o alienado anda em círculos, e o pior é que tais limites foram estabelecidos por ele mesmo, ou por seu partido, grupo com seus hábitos, sua cartilha, seus mandamentos. Basta baixar a cabeça e seguir o rebanho, sem pensar, cego para as alternativas, fechado para dar e ouvir razões. 

É fácil seguir o chefe, e os seguidores alienados formam bandos que seguem palavras de ordem engolidas e expelidas. 

Ora, torcer para um time e a ele se apegar, não é alienação, é só paixão. E onde está a diferença?

Quando se torce por um time ou para se ganhar em qualquer tipo de atividade esportiva, o que está em jogo é justamente isso, um jogo. Nos jogos se ganha ou se perde, se conquista ou se é derrotado.

Não é o caso da alienação, o nível em que a má consciência se dá é outro, é o da obstinação, da certeza absoluta sem base alguma nas situações, na vida social e política, nas lições da história. Não há na alienação nem forma e nem conteúdo, trata-se de uma massa disforme e distorcida que serve para justificar a falsidade, o engano, a mentira ou em nossos dias, responsável pelas fake news. Para defender um lado vale tudo, e ambos os lados alienados se autoproclamam como certos, e os outros como errados.

A alienação é prejudicial, o rebanho é aliciado para defender o chefe. 

E essa situação de dois lados, ambos com a verdade e a razão, são no final das contas poderosas amarras que mantêm o círculo vicioso.

Em nosso país sofremos com esses dois lados políticos, que alienam e são as duas faces da mesma moeda.

Moeda falsa e gasta.


quarta-feira, 30 de junho de 2021

Morremos e resta uma foto de lembrança

 Cercam a morte o medo, o terror, o pânico, o não retorno, o nunca mais, o abissal, o fim. A vida eterna, prêmio ou castigo atenua ou anula para os que nela creem aquele medo do fim inevitável.

Cartazes, dizeres, consolação, imagens, os números e assim sucumbimos à pandemia, para a minha geração algo inédito, parecia que as mortes, as guerras, as devastações, as doenças mortais passavam ao largo, estavam longe, como o ebola na África, a violência e matanças no mesmo continente, a Síria arrasada, tufões e terremotos longínquos, sempre longe e por isso mesmo incapazes de despertar o medo e de lamentarmos pois o que acontecia, acontecia à distância.

De repente ambulâncias, covas enfileiradas, hospitais lotados, e o que nascera na China não ficara por lá, atingiu e atinge todo o planeta.

A violência do crime organizado ou ordinário ficou um tanto de fora dos noticiários e cedeu lugar ao enfrentamento do mal. Sim, do mal, o mal que sufoca e pode matar.

A resposta veio lenta, emaranhada com os discursos e atitudes de negação. A sensação de desamparo e as distorções se misturaram.

Agora sabe-se o que se enfrenta e como se enfrenta, não é preciso acrescentar nada.

Mas a guerra de discursos da vacina foi além. E chegou em março às negociações fraudulentas de que apenas hoje se tem notícia. E eis que ressurgem o Brasil e os governos de sempre. Há que lembrar de um termo que ficou um tanto esquecido, as "maracutaias"...

Parte do exército cooptada e pastores a bater no peito e exigir de seu rebanho a submissão. E mais, uma parte da população cegada, obnubilada por uma bandeira nacional humilhada. Pobre nação, ao contrário de países civilizados, fomos conduzidos ao morticínio (515 mil se foram) e a uma ideologia disfarçada de patriotismo que conduz o país àquela vala do extremismo, divisão extrema direita e esquerda esta chefiada por um ex-presidiário vestido de pele de cordeiro.

Há que reagir. A morte chega para todos, escolher a vida implica enfrentar dificuldades, vencê-las e. ao chegar a hora de cada um decidir, discernir, deixar as boas lembranças, os feitos, as lições de vida, os exemplos além de um retrato na parede. 

sábado, 19 de junho de 2021

Dostoievski, o que é o inferno em "Irmãos Karamazov"

 Como todos que leram a obra acima, "Irmãos Karamazov" sabem, as ideias acerca do amor, de família, de religiosidade, de prazer, de luxúria, de rivalidade, de traição e muitas outras fazem da obra um dos pontos máximos da literatura mundial. 

É uma dessas obras eternas, que tematizam o amor, traição, sofrimento, dúvidas, cinismo, fé religiosa e, principalmente o retrato de uma família despedaçada, na qual paixão, ciúme e ódio se entrelaçam.

Comecemos com uma reflexão para conduzir o que vem a seguir:

Pode-se até mesmo guardar uma lembrança emocionada da pior família, se a pessoa tem uma alma capaz de emoção. (in: Dostoievski, Les Frères Karamazov, p. 157).

Ivan, Dmitri e Aliocha são capazes de emoção sim mesmo com o pai debochado, beberrão, cujos relacionamentos com as mulheres com quem teve os filhos foi uma sequência de desmandos, de abandono. A paixão atual, uma bela e sofrida jovem, linda e sedutora, é disputada com o filho Dmitri.

O pai debochou dos religiosos e da fé sincera de seu filho mais novo em uma reunião como o místico Zozima, ao perguntar sobre o tridente do capeta, como e onde foi forjado? No próprio fogo do inferno? E como seria queimar-se nesse fogo eterno sem se consumir?

Mais adiante, uma outra visão do inferno, provavelmente a do próprio autor, na boca do ancião religioso do mosteiro, o starets: "Meus Pais, eu me pergunto: 'O que é o inferno?' Eu o defino assim: 'o sofrimento de não mais poder amar'". Mais adiante ele completa: "Fala-se do fogo do inferno em sentido literal; eu temo sondar esse mistério" e se houvessem mesmo chamas, os condenados se sentiriam bem, pois eles gozariam com o sofrimento físico...

Deixando um pouco o inferno de lado e indo para a alma humana, do que ela é capaz? De amor e de ódio, de desprendimento e de inveja/ciúme, de grandiosidade e de mesquinhez, e, principalmente em nossos dias, seria alma capaz de busca sincera para uma vida fidedigna, com abertura para o conhecimento e busca de verdade de um lado, e de outro, podendo distinguir a mentira, a falsidade, o engano e o autoengano? 

Vive-se sob pressão, o verdadeiro alcance do significado de inferno se desmancha em ameaças vociferadas por militantes religiosos. Ora, basta olhar a sua volta, o beberrão do pai Karamazov se multiplica, mas nem ele seria capaz da violência de muitos homens e maridos, a violência extrema e aquela diluída nos pequenos atos do dia a dia.

O inferno não está nos outros, como entendeu Sartre, ele está em nossa própria incapacidade de reação, de busca sincera de valores, de mente veraz e aberta.

Deveríamos buscar ser essas almas capazes de emoção e não aquelas enrustidas e incapazes de compreensão, de sair de si, de olhar em volta, de avaliar e poder decidir com autonomia e liberdade.

sexta-feira, 28 de maio de 2021

Filosofia e ideologia

 A Filosofia requer reflexão, indagações acerca do todo, da condição humana, das possibilidades da ação e da valoração, da busca pelo justo e pelo justificável. Seu caminho é o da capacidade de compreensão, de intelecção, de abertura para o pensar, para o ser, e até mesmo para o que não se consegue compreender. E então se bate naquele solo duro além do limite de nossa capacidade de compreensão, como propusera Wittgenstein, o mistério.

Entre teoria e práxis, a Filosofia eleva o saber às últimas possibilidades de que nosso tipo de conceituação pode alcançar, com clareza, com o uso da razão.

Assim, a Filosofia não é um conjunto de credos, não é um receituário, não tem a ver com opção política, com partidarismo, ela não ouve o último guru e suas pregações. Mas o filósofo está atento às inclinações do momento, às demandas que lhe chegam para apoiar ou para rejeitar certo conjunto de posições derivadas da situação política, econômica, social de um país ou de certas comunidades. O filósofo está atento às armadilhas que os interesses públicos e privados dos grupos que detêm ou que almejam o poder de comandar pessoas, ideias, decisões podem resultar. Se resultam em liberdade e vida digna ou se em escravidão e opressão.

Sim, o filósofo de séria formação, estudo, visões e valores, este sabe distinguir entre a oferta ideológica, ou melhor, as exigências ideológicas e as indagações filosóficas.

Recentemente em artigo de jornal foi publicado um panegírico com defesa de Leibniz em comparação com Descartes, Kant e Hegel. Estes últimos seriam prejudiciais, deles teria advindo a corrente de esquerda marxista e suas lutas revolucionárias.

Pois bem, isso é um notório exemplo de distorção da Filosofia em proveito de uma ideologia. Achar que Leibniz está certo por avançar no campo da matemática e propor que nosso mundo é o melhor dos mundos possíveis e que com isso o filósofo forneceria uma opção correta para sustentar o pensamento conservador da direita, não só destrói um filósofo e lhe retira o mérito de suas investidas na metafísica, como inverte o sentido da Filosofia. Tanto Descartes quanto Leibniz defenderam a prova ontológica da existência de Deus, para dar só um exemplo...

A ação ideológica não é apenas prerrogativa da esquerda que usa o marxismo como tábua de mandamentos dos divinos Marx, Engels, Trotsky e Lênin, mas também no atual momento da política brasileira, uma bandeira dos filhotes do guru da direita.

E nada disso representa o conteúdo nem os objetivos do pensar filosófico. Filósofos podem e devem se pronunciar quanto a injustiças, perseguições, violência. Mas ao fazê-lo não estão a filosofar, mesmo que sua formação e ideias o impulsionem e o motivem. 

As ideologias surgem dos movimentos sociais, políticos e dos interesses coletivos, são como Marx reconheceu, um véu de ilusão. Ironia? Ou Marx refletia? A diferença entre Filosofia e ideologia fica clara, distinta e evidente, diria Descartes.


quarta-feira, 12 de maio de 2021

A busca pela verdade

 As concepções filosóficas de verdade são tão diversas quantos são os filósofos, suas ideias e suas escolas de pensamento.

E, se é verdade (ops!) que tais concepções dependem de cada cabeça filosófica, a conclusão cética seria a de que é impossível chegar à verdade sem passar pelos filtros da história da filosofia. Surge então o dilema: ou aderimos a um filósofo e sua escola, ou renunciamos à verdade e mesmo à sua definição?

Não é preciso chegar a tanto. Percorrer a história da filosofia é esclarecedor, abre caminhos, renova o pensamento, incentiva a reflexão e proporciona admiração, quer dizer, a satisfação intelectual que resulta do saber.

E assim se dá o primeiro passo: saber é melhor do que ignorar. E saber implica percorrer caminhos com obstáculos, tais como o erro, a dúvida, o engano, o autoengano, a mentira, as ilusões. Não foi bem isso que Descartes fez?

E antes dele Sócrates propôs a douta ignorância, quer dizer, livre-se da ideia de que você tudo sabe, vasculhe o quarto escuro em busca da luz inicial, só sei que nada sei e a partir daí ironize, dispa o pretencioso e o dono da verdade de suas vestes, ponha a nu o rei...

Não gostou da via socrática? Que tal usar a forma lógica, raciocínios que concluem com certeza dadas as premissas iniciais? O silogismo de Aristóteles, que igualmente olhou o mundo a sua volta e preconizou o ponto de partida da experiência, obter verdade por meio da verificação, da prova empírica. E temos as diversas ciências sempre sujeitas à revisão e à conferência dos dados. Segura? Sim, confiável justamente por adotar a postura experimental, a abertura constante para fatos e para a reconstrução de fatos guiada pelas hipóteses e teorias, e claro, suas aplicações.

E que dizer então da verdade moral? Bem e mal se opõem e têm sua própria história. O ceticismo de Nietzsche é um convite para nos desembaraçarmos de prescrições que são impostas, de crenças que não são avaliadas e assim poder extrair de dentro de nós valores renovados. Mas como alcançar essa meta no mundo de ilusão das imagens gravadas e postadas a torto e a direito?!

E se todos vivermos sob o véu da ilusão, sujeitados ao inconsciente que não perdoa nada, que estrutura nossa mente? Se você não estiver deitado num divã, não se preocupe. A criança que cata no lixão tem outros problemas para resolver e isso também é muito, muito verdadeiro...

Finalmente, a conclusão provisória: há que usar a gasta metáfora dos caminhos, das vias e perspectivas e sempre colocar-se à disposição para o justo, o verdadeiro, o debate, à abertura e, principalmente, ao aprendizado. O que e como posso e devo eu saber? 

Desse modo talvez algo como a verdade seja preferível e mesmo indispensável, ainda mais nas circunstâncias atuais em que se mente a todos, o tempo todo.



sexta-feira, 30 de abril de 2021

Espiritualidade de Tolstói em "Ana Karênina" (1873/77)

Citado à exaustão o início da obra acima, "Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira", fica limitado a essa frase. Me pergunto se as pessoas leram o romance até o fim, ou se ficam satisfazem com a afirmação. Mas, o que escreve Tolstói nos parágrafos finais!? Qual é a mensagem?

Tostói foi marido e pai dedicado, lutou na guerra da Crimeia, tinha especial visão da vida dos camponeses, de sua educação, e dúvidas que o atormentavam acerca da religião e da existência de Deus.

E essas experiências são retratadas em seus escritos. 

Ana Karênina sofre, goza, se expõe, ao mesmo tempo mãe amorosa do filho e distante da filha, vive o conflito de ser aceita na nobreza moscovita e renunciar a um casamento com um marido distante e indiferente. A paixão por Vronski a toma por inteiro, sofre com o desprezo e a rejeição da sociedade e do marido, enfim, linda e consciente de seu charme, isso não a impede de sentir ciúme. O impasse devido ao marido recusar o divórcio a leva ao limite, ao desespero e ao ato final. Família infeliz.

Em contraposição, Liêvin é o personagem que encarna o próprio Tolstói. Proprietário de vastas terras e de vários camponeses, o conflito se dá entre arrendar a produção e ser o dono que arca com as despesas. Liêvin estuda, lê, se interessa pela sociologia, filosofia e ciências naturais. Essas disciplinas suprem sua sede intelectual. Seu casamento é bem sucedido, Kitty e ele se amam, mas falta-lhe algo. A maioria de seus conhecidos e dos camponeses crê em Deus, pratica a religião ortodoxa, não têm dúvidas. A vida sofrida e dispersiva de seu irmão Nicolau, a morte deste na miséria física e mental, produzem em Lêvin forte impressão. E a alma de Nicolau, é imortal ou tudo acabou no leito do moribundo?

Feliz no casamento, o nascimento do filho é o episódio que o reconcilia com Deus, ele reza para que o parto prolongado de Kitty seja bem sucedido. Ora, se ele reza, algo nele se operou...

Um mujique foi a chave para Liêvin deslindar seu drama espiritual. Diz o mujique que há pessoas que só se importam em comer, ganhar e vender. Há pessoas que se importam com o bem, e Deus é o bem. 

Contudo, ainda há dois conflitos na vida intelectual e espiritual de Liêvin. A imensidão do universo com seus astros, a ciência, a lógica, a razão são incontestáveis mas, em contraposição,  diz ele: 

"... minhas deduções metafísicas se veriam privadas de sentido se eu não as fundamentasse neste conhecimento do bem inerente ao coração de todos os homens e de que eu tive, pessoalmente, a revelação graças ao cristianismo, e que sempre me será dado verificar na minha alma. As relações das outras crenças com Deus continuarão para mim insondáveis e eu não tenho o direito de as perscrutar" (p. 346, edição Abril Cultural, 1979).

E Tolstói finaliza com as palavras de Liêvin: "Continuarei a rezar sem saber porque rezo. Que importa? A minha vida não estará mais à mercê dos acontecimentos, cada minuto da minha existência terá um sentido incontestável. Agora possuirá o sentido indubitável do bem que eu lhe sou capaz de infundir".

A obra começa com o conflito familiar irremediável de Ana e termina com a epifania de Liêvin. 

Como cada um de nós resolve sua vida e seus conflitos?

quarta-feira, 21 de abril de 2021

Biopoder de Foucault e a pandemia

Como não poderia deixar de acontecer, Foucault ainda é alvo de louvor cego ou de cega execração. Ora, nem uma nem outra das avaliações se aplicam ao filósofo.

Se episódios de sua vida são de fato notoriamente condenáveis moral e socialmente? Sim. Se seu pensamento vale ser pesquisado e exposto? Sim.

Em seus 14 cursos no Collège de France é possível extrair noções que Foucault utiliza nas obras publicadas e há nessas aulas igualmente estudos eruditos, por vezes maçantes e repetitivos. Um dos conceitos chave para entender o filósofo e sua importância (o que não significa especializar-se nele e insistir em análises sem fim como ainda o fazem alguns "intelectuais"), é o conceito de biopoder

Bem conhecido é o conceito de poder soberano, e sobre este se debruçaram por exemplo, Rousseau e Hegel. O poder absoluto do monarca se dava pela condição que ele detinha de fazer morrer ou deixar viver, sendo que não se tratava de um apoio ou cuidado com relação à vida dos súditos mas apenas uma decorrência de seu poder de matar.

Como em todas as análises, Foucault remete às mudanças de fins do século 18, século 19. Na análise do biopoder, a mudança se deu no século 19. No direito de fazer viver e de deixar morrer, a vida é levada em conta para  se exercer o poder plenamente, acrescida ao poder disciplinar exercido sobre o corpo vigiado e punido. O biopoder não se dirige ao indivíduo para dele extrair forças, mas à vida não a de cada um e sim a da população, aos fenômenos gerais como taxa de nascimento, morbidade, doenças endêmicas, e de como questões econômicas e do trabalho são afetadas por problemas de saúde. Em suma, como a vida em geral se torna fator essencial para governar a população. Um exemplo disso são os sistemas de proteção à saúde e ao trabalho, a seguridade social.

E a pandemia, como ela entra nesta análise?

No distante ano de 1976, a última pandemia registrada fora a da gripe espanhola, e Foucault se refere a pandemias como mais longínquas ainda, as medievais. Numa pandemia "... a morte que se abate brutalmente sobre a vida", diz ele, em contraposição às endemias, "a morte permanente, que se introduz sorrateiramente na vida, a corrói perpetuamente, a diminui e enfraquece". A biopolítica exige práticas como higiene e medicalização da população, questões como natalidade e morbidade. Ela visa igualmente as anomalias físicas e mentais.

Como se pode ver, a pandemia não é controlável pelo biopoder, a política de manter a vida saudável e produtiva e assim governar de modo ótimo a população, simplesmente não serve para controlar pandemias.

E essa é nossa atual situação. Pandemias não são reguláveis, obviamente, incontroláveis.

As medidas de fechamento batem de frente com o tipo de governo, o tipo de poder público, entre elas saneamento, vacinas, medicamentos, prevenção. O biopoder é incapaz de lidar com e de abater uma pandemia. Daí as extremas dificuldades e dúvidas. O que seria mais eficiente para controlar a praga que se abate e derrota a vida, derrota os sistemas públicos e privados de saúde, desafia os grandes laboratórios, e paralisa a economia, bestializa certos governantes, faz sofrer famílias, semeia a desconfiança, e revira, revoluciona o que a modernidade conseguira vencer ?!

Regimes violentos se tornaram mais raros e expostos à crítica pública, governos cruéis e racismo de estado (nazismo) foram derrotados por meio de guerra.

E para derrotar a epidemia? Uma corrida sem precedentes pelas vacinas! A medicina se torna o poder acima de governos e de regimes. Restaria para os pensadores e filósofos, se debruçarem sobre a nova realidade, para além do poder disciplinar, para além do biopoder, e, ao mesmo tempo apostar todas as fichas no discernimento de governantes (não é o caso do Brasil) e dos recursos da medicina científica, da microbiologia. 

Pela primeira vez em mais de um século, estamos todos no mesmo barco. Que ele não afunde depende de cada um de nós, do compromisso público e da pesquisa científica...


sexta-feira, 19 de março de 2021

A morte pertence à vida e esta àquela

 Pode ser que estejam me perguntando, afinal, por que a insistência em comentar a obra mestra de Thomas Mann?

Uma última vez ainda. E para concluir a postagem anterior em que se confrontam duas posições, a do defensor da religião e o defensor da ciência, no caso, a Medicina, uma vez que o tema é a doença, a internação no sanatório para tuberculosos em Davos (início do século 20), vejamos a posição do herói do romance, Hans Castorp.

Pois bem, o jovem Hans Castorp decide aprender a esquiar e certo dia galga até o pico da montanha próxima ao sanatório. Embevecido com a paisagem, não sente o tempo passar e é surpreendido por uma nevasca da qual tenta em vão sair, roda em círculos até o ponto de partida, uma certa cabana. Ao perceber que estava perdido, se recosta na parede para se abrigar e adormece. Sonha com uma praia ensolarada, que exala prazer. Em contraste, o sonho seguinte é infernal, sangue, imagens lascivas. Acorda, e se põe a pensar sobre o que acabara de sonhar, dá uma olhada no relógio, percebe que transcorrera não uma noite, os sonhos e o tempo escoaram muito rapidamente. Assim também a vida escoa...

A experiência de sua existência desde a infância marcada por várias mortes, a presença constante do fim  de pacientes jovens, no próprio sanatório, o drama da doença, entende que morrer é parte da vida, que o homem é o senhor dos contrários. "Die Durchgängerei des Todes ist im Leben" (p. 693), a corrente, a passagem da morte se dá na vida, não há vida sem ela. No meio dessa corrente e da razão estamos nós, está o homem, Homo Dei. Há que ser cortês com a morte e com a vida, e essa é a verdadeira devoção. Não a vida eterna, a imortalidade da alma, e nem a confiança absoluta no progresso, na ilustração, na ciência. 

Hans Castorp assume suas próprias ideais e sentimentos, não concorda nem com o religioso Naphta e nem com o humanista Settembrini. E essa é igualmente a posição do próprio autor, Mann, penso eu.

Ser cortês com a vida e com a morte, essa é a devoção, essa é a religiosidade, em seu coração. A morte, pensa Castop, não deve dominar seu pensamento, "Der Tod ist eine Grosse Macht" (A morte é uma grande força"). E só o amor é mais forte do que a morte, não a razão. O bem e o amor são nossos anteparos.

Seria uma visão por demais romântica da morte?

Vivemos tempos sombrios, pensar como Hans seria um alento.

segunda-feira, 8 de março de 2021

Ciência e religião em uma visão pedagógico/filosófica

E se religião e ciência fossem somente "invenções humanas"?

Essa é uma pergunta que pode provocar polêmica e incompreensão.

Se não vejamos:

Ambas nasceram de situações, sentimentos como o de medo ou de ocorrências surpreendentes, imaginação, projeções mentais, necessidades como a de sobrevivência, a vontade de obter explicação para tudo, ambas trouxeram sim respostas e seus efeitos são permanentes e profundos.

A partir dessas considerações, se separam os caminhos, aquele traçado pela religião com suas marcas e efeitos, em contraste com os caminhos da ciência, idem com suas marcas e efeitos.

Fé de um lado, crença na palavra sagrada, na salvação da alma, na redenção dos pecados, nas profecias, nos ritos, em uma palavra, em Deus. Para quem tem fé, a religião não é humana e sim divina.

Pesquisa baseada em métodos de outro lado, investigação, cálculos, resultados comprováveis, avanço simultâneo com diversas técnicas e tecnologias, e, como constatamos em época de pandemia, pesquisa laboratorial avançada para a produção de vacinas, como exemplo claro e notório da necessidade da ciência. Uma invenção humana.

Essas diferenças não anulam nenhuma das duas, religião e ciência têm seu lugar e papel na sociedade e na história da humanidade.

Volto à obra Montanha Mágica e aos personagens que defendem um, a religião, o outro a ciência e o progresso da humanidade. A indagação que não quer calar é a seguinte, e isso da parte do próprio autor, Thomas Mann, que depois parte para o confronto entre Nafta e Settembrini. 

E o que indaga T. Mann?

Não seriam Deus e Diabo princípios? Pergunta inusitada e surpreendente, dá o que pensar, produziu em mim profunda inquietação. Se são princípios, então guiam nossa ação, valores, decisões, visões de mundo. Seriam talvez Bem e Mal nas considerações de Nietzsche?

E o mal de que trata a obra, a doença? Como encarar a doença, perguntam os personagens no início do século 20 (e nós hoje temos essa mesma dúvida). Para o jesuíta, tem a ver com caridade, com interesse em salvar sua alma, na visão cristã o corpo é a prisão da alma, ele é corruptível, a voz da humanidade sempre será, quem ou o que irá libertar-me do corpo mortal? "O corpo uma cortina entre nós e a eternidade", afirma Nafta, o judeu/jesuíta, e acrescenta: "denn Mensch sein, heisse Krank sein" (então ser homem, quer dizer ser doente).

Por sua vez, o pedagogo Settembrini afirma que doença é doença, e a eternidade, na voz da razão é algo a que a humanidade não chegou. A loucura, por exemplo, é uma doença. Nos manicômios é possível ter uma conversa racional com loucos, entrar por assim dizer, em suas alucinações. 

Em suma, vale a razão. 

E nós, brasileiros?!

A razão submergiu nas alucinações, essas sim reais, de nosso atual governante e de seus asseclas...

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

A vida em dependência das telas

Na década de cinquenta as imagens eram apenas as impressas, em livros, revistas, murais, muito escassas.

Meu pai assinava O Cruzeiro e Manchete. Assim que as revistas semanais chegavam, havia uma disputa entre os irmãos mais velhos para ser o primeiro a folheá-las. As reportagens eram avidamente vistas, lidas e as fotos ficavam como que guardadas na memória visual. Algumas delas me vêm à mente até hoje.

No colégio descrevíamos as gravuras que ficavam dependuradas num tripé e iam sendo viradas, sempre uma surpresa: crianças brincando, cenas do dia a dia, e aprendíamos não só a descrever mas também interpretar.

Os livros de Português eram ilustrados, e é claro, as histórias infantis. 

Na cidade interiorana alguns cartazes nas lojas, nada de outdoors. Além disso, haviam fotografias de casamentos, festas, e isso com os fotógrafos locais (havia dois, Glück e Adelaide) ou com as famílias que dispunham de máquinas fotográficas. Os álbuns de família eram verdadeiras preciosidades...

Quanta diferença quando apareceu a TV, depois os recursos audiovisuais, as telas dos computadores, os vídeo games, e, finalmente, os celulares que multiplicaram a simples função de telefonar convertidas em mensagens e milhões de imagens. Imagens de absolutamente tudo o que pode ser  visto, gravado, compartilhado. Fascínio pela imagem, a ascensão ao patamar supremo de sua própria imagem, gesto, realizações, e tudo armazenado em álbuns virtuais.

Tenho dois netos de seis e de oito anos praticamente criados em meio a desenhos na TV, jogos, e agora aulas on-line. O seu próprio e crescimento é acompanhado por fotos e vídeos. Em casa é feito um rígido controle do tempo na TV. Não acontece o mesmo na maioria dos lares, o que se agravou com a pandemia.

Meu neto de onze meses jamais havia visto a TV ligada, até o pai não resistir a um jogo do Super Bowl. Incrível, indescritível o deslumbramento com o impacto da telona!

Enfim, modernidade tem disso: câmeras que, ao mesmo tempo podem salvar vidas, as vigiam o tempo todo o que permite um controle de quase tudo o que se faz. Aquele seu inocente e-mail é capturado pelo Grande Irmão Google, a privacidade perdeu sentido...

Se escrevo isso com saudosismo? Sim. Entretanto, impossível negar ou resistir a esses múltiplos meios, vale e muito ser criterioso e responsável, mesmo que isso seja difícil e menosprezado.

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Hobbes, Rousseau, Thomas Mann e a pandemia

Em uma longa discussão, Thomas Mann confronta em  Der Zauberberg  (A Montanha Mágica), dois intelectuais que defendem ideias e conceitos opostos. Um dos personagens centrais do romance é o italiano Settembrini, defensor convicto da democracia, do humanismo, da educação, e, principalmente, o pensador defende o progresso, as luzes, a ciência, é um entusiasta crente no avanço da humanidade capaz de beneficiar a todos. 

Em contraste, Naphta é um personagem secundário, que surge lá pela metade do romance, sem nenhuma ilusão quanto a progresso, iluminismo, considera que acaba valendo sempre o lado obscuro, verdadeiro terror. A crença em um horizonte utópico no qual a democracia e o bem geral venceriam, é horrível. Há sangue, luta, tudo acaba em opressão e surgem as ditaduras como solução.

Daí o título desta postagem, Naphta estaria mais para Hobbes, ao passo que Settembrini estaria mais para Rousseau.

Hobbes: a guerra de todos contra todos, o homem lobo do homem, a necessidade de atribuir a um soberano forte todo o poder seria o único modo de a existência humana sobreviver.



Rousseau: os homens eram livres e felizes até a apropriação da terra, das divisões e da desigualdade. O contrato social nos salvaria, formaríamos um corpo único com o governo, a democracia como fruto de voto universal seria a redenção da humanidade.



E o que esses pensadores têm a ver com a pandemia?

Pensemos a pandemia um pouco como Hobbes e Naphta, sangue, o horror, os cadáveres embrulhados e postos em caminhões frigoríficos, a asfixia dos hospitais e os asfixiados nos hospitais, sem remédio.

Então surge a senhora rainha ciência, que passou a ser a responsável pela salvação, a vacina. E laboratórios as criam, começam sua produção e entram os fatores de sempre: quem detém o conhecimento, quem detém o poder de incentivar e financiar a pesquisa de ponta? Alguns poucos países, poucas indústrias farmacêuticas, e a suposta centralização e democratização da distribuição fica por conta da capenga e desacreditada OMS, esta serviria supostamente a todos os países.

Enquanto isso, nós no Brasil, desgovernado pelo presidente irresponsável, estamos a mercê da Índia e da China. Poder, dinheiro, planejamento, investimento se fazem presentes na China, cujo domínio de diversas tecnologias é considerado suspeito até a hora do aperto, quando se precisa delas. 

Se cruzam no atual momento os dois filósofos e os dois personagens de T. Mann: a guerra de todos contra todos, a suspeição e a vitória do mais apto, o terror, a sujeição ao mercado de um lado (Hobbes e Naphta) e de outro lado as regras, os parâmetros, a ciência, a produção, a eficiência, os governos responsáveis e de fato democráticos (Rousseau e Settembrini).

Em meio à confusão e mesmo pânico, Maduro, sim ele, o ditador venezuelano, é um dos que socorre Manaus asfixiada.

Grupo de brasileiros saúda caminhão com oxigênio, presente da Venezuela.


domingo, 3 de janeiro de 2021

Kant pode ser considerado ateu?

 Em postagem anterior, discuti o ateísmo entre os filósofos. E antes, a metafísica para Kant. Ficou em suspenso expor o que Kant defendeu como religião e fé em Deus na Religião nos limites da razão pura. 

Tendo sido criado num ambiente de fé religiosa, Kant conhecia o valor da fé e da crença em Deus. Mas, Deus é impensável e inatingível por meio da razão pura, das formas puras a priori do conhecimento, necessárias para pensarmos e termos experiência do mundo que nos rodeia. E como fica a religião?

Meu saudoso professor, Padre Henrique Dreher, não admitia o tipo de metafísica kantiana, sustentava o tomismo que defende os cinco caminhos, todos eles racionais, para provar a existência de Deus (ver em postagem sobre as cinco vias de São Tomás). Tratava-se de uma metafísica transcendente, nós, seres humanos, somos dotados de razão e esta provê argumentos, independentemente da fé. 

Para Kant, o caminho para Deus é interior, um reflexo de nossa vida e de nossas práticas. Em geral se crê que é impossível que a beleza e o ordenamento de tudo o que existe não tenha uma causa superior, mas, segundo Kant isso não é prova de que Deus existe e sim a constatação de que há um encadeamento de causas na natureza.

A nossa força de vontade moral, o sentimento pleno de que se deve agir bem, de acordo com princípios, a prática da liberdade e da autonomia, o esclarecimento, são a fortaleza da moral, agir como se nossa ação pudesse servir de modelo a todos os demais.

Ao lado dessa moral do dever, há a religião, uma questão de fé, de sinceridade do coração, sem contudo requerer aparatos e rituais, sem depositar em Deus a responsabilidade pela nossa ação, nós é que devemos ser nossos próprios legisladores. "A ação pode e deve ser aperfeiçoada, há valor em ter esperança na realização do reino de Deus na Terra, entre os homens. Esse aperfeiçoamento ético decorre de obediência às leis morais sem coerção. Trata-se de uma concepção de religião de pura fé moral, as prescrições doutrinárias são secundárias. Orações e sacrifícios são ilusórios, frutos de superstição" (in 15 Filósofos, Vida e Obra, p. 211).

Aprecio essas reflexões, elas não nos amarram, não nos prendem, não nos culpam, não nos prescrevem castigo e nem prêmio eterno. Nós somos responsáveis e livres. Deixar de lado o dogmatismo, reconheço, é bem difícil, mas vale a pena tentar...