sexta-feira, 30 de abril de 2021

Espiritualidade de Tolstói em "Ana Karênina" (1873/77)

Citado à exaustão o início da obra acima, "Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira", fica limitado a essa frase. Me pergunto se as pessoas leram o romance até o fim, ou se ficam satisfazem com a afirmação. Mas, o que escreve Tolstói nos parágrafos finais!? Qual é a mensagem?

Tostói foi marido e pai dedicado, lutou na guerra da Crimeia, tinha especial visão da vida dos camponeses, de sua educação, e dúvidas que o atormentavam acerca da religião e da existência de Deus.

E essas experiências são retratadas em seus escritos. 

Ana Karênina sofre, goza, se expõe, ao mesmo tempo mãe amorosa do filho e distante da filha, vive o conflito de ser aceita na nobreza moscovita e renunciar a um casamento com um marido distante e indiferente. A paixão por Vronski a toma por inteiro, sofre com o desprezo e a rejeição da sociedade e do marido, enfim, linda e consciente de seu charme, isso não a impede de sentir ciúme. O impasse devido ao marido recusar o divórcio a leva ao limite, ao desespero e ao ato final. Família infeliz.

Em contraposição, Liêvin é o personagem que encarna o próprio Tolstói. Proprietário de vastas terras e de vários camponeses, o conflito se dá entre arrendar a produção e ser o dono que arca com as despesas. Liêvin estuda, lê, se interessa pela sociologia, filosofia e ciências naturais. Essas disciplinas suprem sua sede intelectual. Seu casamento é bem sucedido, Kitty e ele se amam, mas falta-lhe algo. A maioria de seus conhecidos e dos camponeses crê em Deus, pratica a religião ortodoxa, não têm dúvidas. A vida sofrida e dispersiva de seu irmão Nicolau, a morte deste na miséria física e mental, produzem em Lêvin forte impressão. E a alma de Nicolau, é imortal ou tudo acabou no leito do moribundo?

Feliz no casamento, o nascimento do filho é o episódio que o reconcilia com Deus, ele reza para que o parto prolongado de Kitty seja bem sucedido. Ora, se ele reza, algo nele se operou...

Um mujique foi a chave para Liêvin deslindar seu drama espiritual. Diz o mujique que há pessoas que só se importam em comer, ganhar e vender. Há pessoas que se importam com o bem, e Deus é o bem. 

Contudo, ainda há dois conflitos na vida intelectual e espiritual de Liêvin. A imensidão do universo com seus astros, a ciência, a lógica, a razão são incontestáveis mas, em contraposição,  diz ele: 

"... minhas deduções metafísicas se veriam privadas de sentido se eu não as fundamentasse neste conhecimento do bem inerente ao coração de todos os homens e de que eu tive, pessoalmente, a revelação graças ao cristianismo, e que sempre me será dado verificar na minha alma. As relações das outras crenças com Deus continuarão para mim insondáveis e eu não tenho o direito de as perscrutar" (p. 346, edição Abril Cultural, 1979).

E Tolstói finaliza com as palavras de Liêvin: "Continuarei a rezar sem saber porque rezo. Que importa? A minha vida não estará mais à mercê dos acontecimentos, cada minuto da minha existência terá um sentido incontestável. Agora possuirá o sentido indubitável do bem que eu lhe sou capaz de infundir".

A obra começa com o conflito familiar irremediável de Ana e termina com a epifania de Liêvin. 

Como cada um de nós resolve sua vida e seus conflitos?

Nenhum comentário:

Postar um comentário