quarta-feira, 21 de abril de 2021

Biopoder de Foucault e a pandemia

Como não poderia deixar de acontecer, Foucault ainda é alvo de louvor cego ou de cega execração. Ora, nem uma nem outra das avaliações se aplicam ao filósofo.

Se episódios de sua vida são de fato notoriamente condenáveis moral e socialmente? Sim. Se seu pensamento vale ser pesquisado e exposto? Sim.

Em seus 14 cursos no Collège de France é possível extrair noções que Foucault utiliza nas obras publicadas e há nessas aulas igualmente estudos eruditos, por vezes maçantes e repetitivos. Um dos conceitos chave para entender o filósofo e sua importância (o que não significa especializar-se nele e insistir em análises sem fim como ainda o fazem alguns "intelectuais"), é o conceito de biopoder

Bem conhecido é o conceito de poder soberano, e sobre este se debruçaram por exemplo, Rousseau e Hegel. O poder absoluto do monarca se dava pela condição que ele detinha de fazer morrer ou deixar viver, sendo que não se tratava de um apoio ou cuidado com relação à vida dos súditos mas apenas uma decorrência de seu poder de matar.

Como em todas as análises, Foucault remete às mudanças de fins do século 18, século 19. Na análise do biopoder, a mudança se deu no século 19. No direito de fazer viver e de deixar morrer, a vida é levada em conta para  se exercer o poder plenamente, acrescida ao poder disciplinar exercido sobre o corpo vigiado e punido. O biopoder não se dirige ao indivíduo para dele extrair forças, mas à vida não a de cada um e sim a da população, aos fenômenos gerais como taxa de nascimento, morbidade, doenças endêmicas, e de como questões econômicas e do trabalho são afetadas por problemas de saúde. Em suma, como a vida em geral se torna fator essencial para governar a população. Um exemplo disso são os sistemas de proteção à saúde e ao trabalho, a seguridade social.

E a pandemia, como ela entra nesta análise?

No distante ano de 1976, a última pandemia registrada fora a da gripe espanhola, e Foucault se refere a pandemias como mais longínquas ainda, as medievais. Numa pandemia "... a morte que se abate brutalmente sobre a vida", diz ele, em contraposição às endemias, "a morte permanente, que se introduz sorrateiramente na vida, a corrói perpetuamente, a diminui e enfraquece". A biopolítica exige práticas como higiene e medicalização da população, questões como natalidade e morbidade. Ela visa igualmente as anomalias físicas e mentais.

Como se pode ver, a pandemia não é controlável pelo biopoder, a política de manter a vida saudável e produtiva e assim governar de modo ótimo a população, simplesmente não serve para controlar pandemias.

E essa é nossa atual situação. Pandemias não são reguláveis, obviamente, incontroláveis.

As medidas de fechamento batem de frente com o tipo de governo, o tipo de poder público, entre elas saneamento, vacinas, medicamentos, prevenção. O biopoder é incapaz de lidar com e de abater uma pandemia. Daí as extremas dificuldades e dúvidas. O que seria mais eficiente para controlar a praga que se abate e derrota a vida, derrota os sistemas públicos e privados de saúde, desafia os grandes laboratórios, e paralisa a economia, bestializa certos governantes, faz sofrer famílias, semeia a desconfiança, e revira, revoluciona o que a modernidade conseguira vencer ?!

Regimes violentos se tornaram mais raros e expostos à crítica pública, governos cruéis e racismo de estado (nazismo) foram derrotados por meio de guerra.

E para derrotar a epidemia? Uma corrida sem precedentes pelas vacinas! A medicina se torna o poder acima de governos e de regimes. Restaria para os pensadores e filósofos, se debruçarem sobre a nova realidade, para além do poder disciplinar, para além do biopoder, e, ao mesmo tempo apostar todas as fichas no discernimento de governantes (não é o caso do Brasil) e dos recursos da medicina científica, da microbiologia. 

Pela primeira vez em mais de um século, estamos todos no mesmo barco. Que ele não afunde depende de cada um de nós, do compromisso público e da pesquisa científica...


Um comentário:

  1. Professora, todos os dias quando ouço o noticiário as suas aulas de filosofia da ciência caem com uma bigorna na minha lembrança e lamento ser o nosso momento nacional tão fechado a ponto de não querer muito saber de ciência e filosofia.

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