domingo, 31 de outubro de 2021

Objetividade e subjetividade em nova versão

 A diferença entre objetividade e subjetividade parece evaporar nas redes de comunicação. A objetividade sofre pela falta de responsabilidade, pela preguiça mesmo de conferir quem diz o que, as fontes, e com isso respeito e consideração pelos outros se tornaram palavras vazias. Vale a autoridade, vale o prestígio, valem os likes, e valem as mentiras dos lobos fantasiados de cordeiros.

O nó da questão: aqueles que abrem as páginas buscam em geral apenas confirmar seus pontos de vista, a contestação é tida como desfavorável, desprezada, não é preciso que nesse tipo de "comunicação" haja retorno, que os argumentos prossigam, que se investiguem as bases, a fundamentação do que é dito que não passa em geral de recados e palavras de ordem e muitas vezes insultos. "Sigam-me!"

Quanto à subjetividade, essa então nem faz mais sentido, e isso porque a subjetividade vai ser a ré, será julgada como inapropriada, inconveniente, atrapalha o curso dos supostos fatos, um poço sem fundo de identidades perdidas. O sujeito que a pessoa é não conta, mesmo porque a busca de si mesmo, o mergulho no que se pensa, nos seus valores, nos seus julgamentos perdeu o sentido. 

A necessária objetividade é imposta pela realidade que permanece em aberto, conhecer o mundo sem objetividade acarretaria o caos, não haveria mais medida, compreensão e execução de um simples projeto, como o de construir casas, pontes, edifícios, estradas. Os critérios devem ser acordados, seguidos, praticados. Impossível ignorar sinais, signos, avisos, ordens, parâmetros sem consequências. Quando se desviam deles, quando evidências são desprezadas a própria vida em sociedade fica sob risco, até mesmo catástrofes...

Assim, importa e muito, é essencial conhecer o mundo. A ação humana, mesmo quando degradante, exige o mínimo de objetividade, de acordo, de verificação e do que disso resulta. A ação humana é inteligente, vai às consequências, mira nos projetos. Sair disso implica perigo, é sinal de ignorância, e por vezes de bestialidade. Ditadores, chefes de estado irresponsáveis, corruptos, cegados pelo poder são o mais triste e degradante exemplo de como as funções e cargos públicos podem ser desviados e corrompidos.

Há outro lado menos conhecido e questionado. Trata-se das mudanças e transformações que se deram em nosso modo de nos conhecermos neste mundo. Chegar ao seu "eu mesmo", e isso por dois meios: o do conhecimento, como no dito délfico e socrático "Conhece-te a ti mesmo" e o outro seria o cuidar de si mesmo, a atenção voltada para o cultivo de si. Essa diferença é o tema dos últimos cursos de Foucault no Collège de France. Se formos transpor essa diferença para nosso tempo, para a história atual, como ficaria a subjetividade?

Os meios para conhecer o sujeito são as análises, as autoanálises, os encaixes em tal ou tal característica ou personalidade, o eu da certeza cartesiana, a busca de um solo que reconforte, livrar-se de medos, da ignorância, buscar e atingir o self. 

Como seria o cuidar de si na modernidade? O mergulho para dentro de si prescindiria de um espelho para nele colar sua identidade, seria uma busca menos apolínea e mais dionisíaca, mais inventar-se do que conceituar-se, dançar e transformar-se como queria Nietzsche. Cultivar nossa finitude e presença aí no tempo, irrevogável, a capacidade de ser generoso consigo mesmo, e mais livre, mais liberto de tantos e tantos véus da ignorância. 

domingo, 10 de outubro de 2021

"Se eu quiser falar com Deus"', inspirada letra de Gilbert Gil

 Ouvir e escolher músicas se tornou corriqueiro e acessível. Costumo cozinhar ao som do que o momento inspira. Dia desses  uma surpresa foi a letra da canção cujo título motiva a postagem.   

"Se eu quiser falar com Deus tenho que ficar a sós, tenho que apagar a luz, tenho que calar a voz, tenho que encontrar a paz, tenho que folgar os nós dos sapatos, da gravata, dos desejos, receios ... tenho que ter mãos vazias, ter a alma e o corpo nus ... tenho que aceitar a dor, tenho que comer o pão que o diabo amassou, tenho que virar um cão, tenho que lamber o chão dos palácios, dos castelos suntuosos, do meu sonho, tenho que me ver tristonho... tenho que me achar medonho, e apesar do mal tamanho alegrar meu coração. Se eu quiser falar com Deus, tenho que me aventurar, ...tenho que subir ao céu sem cordas pra segurar, tenho que dizer adeus, dar as costas, caminhar para a estrada que vai dar em

nada, nada, nada do que eu pensava encontrar".

Deus presente nas mais diversas e corriqueiras atividades humanas, nos mais simples desejos e sentimentos, em despojar-se de riquezas, na raiva, nas injúrias, no silêncio e no recolhimento. Precisamos de silêncio, tão difícil de encontrar... Mas pode ser que se nos abandonarmos ao estar a sós e livres do que nos prende, do que nos corta caminhos, poderíamos alçar voos mesmo sabendo que a nós isso é impossível.

A condição humana pode ser nobre, mas pode igualmente ser essa a condição que requer humilhação, pode ser que exija o reconhecimento da fraqueza, do terrível, do abjeto e mesmo assim precisamos de alívio para ir adiante, tropeçar, levantar, prosseguir. 

Finalmente, onde estaria esse nosso Deus, é a pergunta que comanda a letra. Estaria em nossas próprias dificuldades, desejos, sonhos, até mesmo para, sem cordas, subir aos céus.

No final pertencemos à estrada da vida que não vai dar em nada, pois antes de cada um de nós sermos, somos nada. Depois de irmos, somos nada. Afinal, o que pensáramos deter e reter são ilusórios.

As versões para entender a mensagem de Gil devem e podem assumir os pensamentos e projetos de cada um. Dei a minha versão. É possível que a letra inspire nada, nada, nada...