sábado, 25 de fevereiro de 2023

A autonomia, significado e importância

 Auto significa próprio, algo particular, da pessoa, a referência a si mesmo; nomos significa norma, lei, seguir uma convenção, obedecer a regras. Então, a autonomia nada mais é do que dar a si próprio as regras de sua conduta. Isso quer dizer, as atitudes, o modo de viver, a vontade, se relacionam àquilo que a pessoa determina para si, com inteira responsabilidade por seus atos e liberdade de escolha.

Cada um deveria ver a si como autor(a) dos princípios que seguirá, o que exige formação, no sentido de educação, de senso de dever, que suas ações são guiadas por vontade livre, pela consciência daquilo que suas decisões implicam. Sou motivado pelo orgulho, por um tipo de prêmio, de compensação, ou minha ação vale em si, sem necessidade do aplauso ou da aprovação dos outros?

A submissão a uma autoridade, se não for uma determinação legal, impede decisões tomadas livremente. E estas só são possíveis em sociedades com governo legítimo, leis e justiça, quer dizer, sociedades democráticas, com liberdade civil e de representação. 

Para Kant, nem Deus pode ser o legislador das leis morais, pois isso retira a responsabilidade por nossas ações e confere a Deus essa responsabilidade. A obediência às leis morais não deve sofrer nenhum tipo de coerção, a fé religiosa deve ser gratuita, se depender de prescrições, de orações, de promessas e sacrifícios, isso não passa de superstição. 


    1724-1804


E por que a autonomia é tão importante e, ao mesmo tempo, tão negligenciada?

Porque é difícil, tanto entendê-la quanto praticá-la. Em geral somos escravos de algum tipo de ilusão, de imposição, de obrigação. E mais, nos recusamos a assumir que atos livres são apenas aqueles pelos quais nos responsabilizamos. Gostaríamos de deixar as coisas como estão, dá preguiça sair do rebanho, é tão fácil seguir comandos seja de quem for e por razões as mais banais

Em nossa sociedade atual, a autonomia cedeu lugar aos comandos e desejos dos outros, e isso se faz deliberadamente e mesmo prazerosamente. Ser guiado, ser comandado, seguir alguém, deixar que outros tomem decisões em nosso lugar, nada disso causa o menor constrangimento. Pelo contrário, é aceito, praticado e bem visto. Até mesmo pode ser julgado como alienado aquele que não conhece, não segue, não posta likes a respeito de algum "influenciador". A submissão do rebanho, quer dizer, ser seguidor, se tornou uma prática comum, aquele que não adere é o alienado. Justamente o inverso da autonomia, essa recusa da liberdade de pensar por si próprio, essa submissão à opinião comum. 

Resultado: deserto de ideias. "Ousar saber", coragem para o exercício da liberdade, da autonomia, é um dever interior, da pessoa com ela mesma e das pessoas enquanto agentes capazes de usar a razão sem tutela. Um pouco de iluminação, de esclarecimento, inspiração em Kant sem ser kantiano, quer dizer, a autonomia deveria valer também para os filósofos... 


 


domingo, 12 de fevereiro de 2023

Descartes revisitado

 Esta postagem é uma sugestão da amiga Dayse Stoklos Malucelli a respeito de Descartes que eu mencionei em 29 do mês passado. 

A inversão do "Penso, logo existo" foi proposta por Sartre, "Eu existo, logo penso". Seu propósito era reafirmar a existência, o ser aí no mundo, desgarrado, em plena e total liberdade para, como se diz atualmente, inventar-se. 

Por outra via, como entender e ir além de Descartes?

                                  

                                              1596-1650 

Para ele havia mais realidade objetiva no pensamento, na consciência, nas ideias do que nas coisas com extensão, materiais. A certeza cartesiana, mesmo depois de supor que ele não tinha corpo, que não houvesse lugar algum no mundo, ainda assim ele não poderia "fingir sobre isso que eu nada fosse". Trata-se de uma filosofia do eu como uma substância pensante, que não necessita de lugar e nem de nada material, que ele é uma alma inteiramente distinta do corpo. Além disso é mais fácil conhecer a alma do que o corpo. Assim, Descartes chegara ao princípio que buscara, firme, claro, a verdade que resistiu à dúvida para chegar a um estado de certeza.

Como se vê, a busca toda é pela verdade de tipo analítico, matemático. Um cálculo até chegar à rocha firme da qual tudo poderia ser derivado, isto é, a metafísica. Ela é a raiz da árvore da sabedoria. Deus não poderia ser enganador, isso porque em nós está clara e evidente a ideia de um ser superior.

Isto posto, revisitar Descartes, atualizá-lo conduz a dois caminhos: 

- o da mente, pensamento, consciência que seriam essencialmente diversos do corpo, quer dizer do cérebro, das sensações, até mesmo a da dor, em correntes espiritualistas.

- o do corpo que nasce de outro corpo, que precisa de lugar, que se adapta, imerso na temporalidade, sujeito a dor, que entende e interpreta signos, símbolos, que aprendeu uma linguagem. Para resumir, está imerso em certa cultura. 

A linguagem possibilita pensar, e pensar não é algo metafísico, é característica humana da vida em sociedade, e a evidência, se a deslocarmos da perspectiva cartesiana, é que houve evolução. Assim, no lugar da radical distinção mente\corpo, tem-se a vida em suas diversas manifestações, aprendizado, acertos e erros, realizações e frustrações. E o que permeia tudo isso são as significações, para Wittgenstein, os jogos de linguagem. 

Permitam-me citar p. 139 sobre o racionalismo de Descartes e a atualidade: 

O racionalismo, entendido como confiança apenas nos poderes da razão, ensina que não se deve abrir mão desses poderes. Mesmo em períodos de estagnação e obscurantismo, de radicalismo e de violência, aplicar a razão em prol de constante melhoria nas condições de vida muitas vezes é o que nos resta fazer. Em um mundo globalizado e multicultural, com avanços e retrocessos, o papel dos pensadores da cultura, dos cientistas, dos escritores, dos jornalistas e dos intelectuais é ainda mais importante. E eles se valem do que?  Dos esforços da razão para afastar mitos, ilusões, preconceitos, fanatismo, ideologias extremistas e todo tipo de obscurantismo. Nesse sentido as lições de Descartes, em especial no processo educacional daqueles que estão em formação intelectual e moral, são inestimáveis (in: 15 Filósofos, vida e obra, 2020)