quinta-feira, 27 de julho de 2023

Consistência, coerência, congruência e a fala de Lula.

Nós somos o que falamos e como falamos, nossas expressões significam algo para alguém, e o pressuposto é o de que sejamos compreendidos. O que exige frases inteligíveis de parte de quem fala e para quem nos ouve. 

Pois bem, a comunicação pela linguagem requer algo mais, lógica. Não a ciência da lógica com seus cálculos, suas fórmulas e sim a lógica do entendimento, do que a pessoa quer dizer.

Lula, nosso presidente da República, solta o verbo bem à vontade. Para citar apenas uma de suas frases, a pronunciada em 25 de julho sobre controle de armas e supostamente tornar a sociedade mais segura: Fechar "quase todos" os clubes de tiro. Não entraremos no mérito da questão, apenas analisar o dito, que logo de cara é inconsistente, incoerente e incongruente




Consistência significa boa informação, com conteúdo inteligível, que tem a ver com certa situação. Afirmações consistentes querem dizer alguma coisa para alguém, são compreensíveis, uma explanação consistente pode ser conferida, traz informação fidedigna, a comunicação prossegue, foi bem sucedida.

Coerência significa harmonia, impossível que se afirme e negue algo ao mesmo tempo, ou é isso, ou é aquilo. Se a pessoa afirma algo e no dia seguinte afirma o contrário, o interlocutor terá que perguntar: "o que você quis dizer?" Incoerência é muito próxima da desinformação, impede o entendimento, o diálogo não flui.

Congruência significa capacidade de juntar, de analisar, de ligar os pontos, o que se diz tem respaldo na realidade, as palavras fazem sentido e o ouvinte sabe do que se trata, fica bem informado, pode confiar no seu interlocutor.

Assim "quase todos" não é analisável no contexto acima, pois "quase" significa que falta pouco para atingir algo no espaço, no tempo, em certo local, com certa qualidade ou a falta dela. Ex.: "O bolo está quase pronto".

"Todos" significa um universo completo, um círculo que se fecha, que abrange uma quantidade numerável e que tem um fim, que é limitado. "Todos comparecerem à festa, ou faltou alguém?" A resposta consistente, coerente e congruente pode ser: "Quase todos vieram".  

Ao contrário, na frase "fechar quase todos os clubes de tiro" a expressão foi mal colocada, impede a compreensão. Podem funcionar quantos? Um, dois, quinze? Isso desinforma, confunde. E mais, fere a lógica. E a responsabilidade de um presidente da República. 


domingo, 23 de julho de 2023

Ousar saber

 É bem conhecido o artigo de Kant em "O que é o esclarecimento".

Kant 1724-1804


O tema é o da autonomia para decidir, para sair da minoridade em sentido moral. Quer dizer, pessoa capaz de tomar decisões guiadas pela sua própria determinação, sem precisar de um guia, de um receituário, da palavra de uma autoridade. 

Foucault comenta em vários escritos sobre a importância e o significado do lema kantiano. Abaixo seguem algumas de suas considerações.

Sair da minoridade, o que isso quer dizer?

“Saída” que envolve pessoas que ousam saber, que superam a falta de vontade, que são capazes de autodeterminação, que prescindem de tutela. Ser tutelado não decorre de lhe terem retirado direitos, pois a própria pessoa se abrigou sob algum comando. E quais seriam esses comandos? Seguir o diretor de consciência, ou o médico, no que diz respeito ao uso legítimo da razão, da consciência moral. (Claro, não de uma orientação propriamente médica que tem a ver com a saúde). O diretor de consciência não deveria servir como base primeira de conduta, pois haveria perda da autonomia.

Usar a razão depende de cada um sair da preguiça, da covardia moral, os homens são incapazes e fracos, responsáveis por seu estado de minoridade do qual não conseguem sair. Os que o fazem, usam seus próprios meios libertadores, eles pensam por si, mas não em relação a toda humanidade. Líderes há que submetem todos à sua autoridade. Mas, os verdadeiros líderes deveriam ser capazes de libertar a todos. Os obstáculos são a obediência e a falta de raciocínio, a confusão entre público e privado. Há quem raciocine, mas ainda assim obedece. 

Pelo uso privado de nossas faculdades seguimos sendo como que peças de uma engrenagem, somos servidores. Pelo uso público, somos seres razoáveis, nos dirigimos a outros seres razoáveis, com liberdade. Um exemplo de agente liberador foi Frederico da Prússia, que pregava a liberdade religiosa, e isso ele pôde fazer porque dispunha de um exército forte que assegurava a tranquilidade pública. “Frederico da Prússia (...) é esse agente da Aufklärung que redistribui como deve ser o jogo entre obediência e uso privado, universalidade e uso público” (p.37). O uso público da razão cada vez mais livre, universal e autônoma, requer a obediência privada à ordem civil, à sociedade civil. (Foucault, Gouvernement de soi et des autres).

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Penso que essa determinação de ser senhor de si mesmo depende dessa outra determinação, ousar saberExperimentar os efeitos de uma pergunta feita para você mesmo: por que não? Ela rompe com os limites que colocamos para nós. Pensar diferente, agir diferente, romper com modelos impostos. Vale tentar.

Nota: a distância entre Frederico da Prússia e Vladimir Putin, enorme, gritante!

Frederico da Prússia - 1712-1786




sexta-feira, 21 de julho de 2023

O pensamento pós-metafísico para Wittgenstein

Afirmamos na postagem anterior que a diferença entre essência e aparência é uma questão em aberto para os filósofos do assim chamado "pensamento pós-metafísico".

É o caso de Wittgenstein, quando ele afirma que os diálogos socráticos são perda de tempo, que não provam nada e nada esclarecem (in: Culture and Value, p.3). 

Afirmação perturbadora e mesmo chocante, parece um insulto à Filosofia! Afinal, e a sabedoria socrática, onde fica?

Ao levar em conta a linguagem tal como a usamos no dia a dia, os problemas metafísicos como o acima apresentado podem ser dissolvidos com e no uso de nossa linguagem. Assim, "ser" tem sentido como "comer", "andar", quer dizer, a compreensão do significado vem do uso em certo contexto.

A crítica que se faz a esse tipo de conclusão é que tudo se reduz então ao contexto, com consequências como a da limitação do pensamento pela linguagem, isto é, que pensar requer palavras cujo sentido a própria linguagem ordinária estabelece. Ora, é isso mesmo para o pensamento pós-metafísico.

Os limites do nosso pensamento são os limites da linguagem. Difícil aceitar essa perspectiva, pois entende-se que pensar seja algo espiritual e que espírito, mente, consciência, sejam independentes da linguagem, que por vezes a linguagem trai o nosso pensamento, dizemos: "não era exatamente aquilo que eu estava pensando", "não consigo encontrar a palavra para exprimir meu pensamento"; "você não me entende", e assim por diante.

Mas, repare no que foi escrito acima, as expressões usadas são linguísticas, foram escritas e quem as lê entende, são frases da língua portuguesa, traduzíveis para numerosas outras línguas.

"Entender", "pensar", são verbos utilizados assim como se usa "discordar", "admirar-se", "sonhar".

Compare-se "puro espírito", que tem um significado e é uma expressão na língua portuguesa dita por alguém, para alguém, em certa situação, e que será compreendida de tal ou tal modo, comparada com essa outra expressão: "espírito de porco", o sentido muda, "espírito" é usado de outro modo, e interpretado de outro modo. Porco teria espírito? Não é isso que se quer dizer... E sim que tal ou tal pessoa age como um animal que fuça sujeira.

Enfim, as situações são as mais variadas e com tantos significados e expressões quantos o contexto demandar.

Isso é pensamento pós-metafísico. Em última análise, Wittgenstein, Habermas e Rorty se apoiam na linguagem, na cultura, nos artefatos produzidos, no nosso humano modo de ser, de entender, de se comportar, em suma, de agir. Inclusive a tese principal de Habermas é a do "agir comunicativo".

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E a sabedoria socrática? A sabedoria socrática fica onde sempre esteve, nos diálogos de Platão e na compreensão desses diálogos que se não provam e nem esclarecem no sentido proposto por Wittgenstein, podem e devem ser contextualizados. E assim usufruídos.

quarta-feira, 19 de julho de 2023

A diferença entre essência e aparência para a metafísica

Uma das características mais marcantes do pensamento filosófico antigo é essa, a da diferença entre essência ou eidós e a aparência phainomenon

A essência é fundamental, e é neste sentido que empregamos o termo habitualmente. Entende-se por "essência" aquilo que algo é em última análise, inevitável, imprescindível.

Pois bem, no sentido filosófico trata-se de algo parecido. Os seres possuem diferentes e diversas aparências. Como então podemos distinguir os diversos seres, dar nome a eles, conhecê-los?

É por meio de sua essência, esta não muda, é a substância inseparável de cada e de todos os seres. E é por meio da essência que o ser é conhecido, distinguível e nomeável.

A essência de homem, de cadeira, de casa, de livro é própria de cada um, impossível confundir homem com cadeira, mesa com livro, casa com homem, e assim por diante. 

Surgem questões e dúvidas: distingo uma sombra e digo, "acho que é a sombra de um homem".    Acontece que o sentido da visão pode me enganar. Então, para entender a essência, para captá-la, não posso usar o sentido da visão, não me baseio na aparência, nas impressões sensoriais e sim na capacidade de entender, de tornar um ser inteligível. O que leva à questão: como captar, como entender o que não é sensível?

Por meio da mente? Por meio do significado? Por meio do pensamento? Por meio da compreensão intelectual?

A noção de mente ou de consciência só viria mais tarde na Filosofia, com Descartes. Para a Filosofia antiga, para Aristóteles os seres que ele chama de "substâncias" se distinguem em sua essência, e os compreendemos pelo intelecto. Como? Distinguindo sua forma que é como eles são; aquilo de que são feitos, sua matéria (madeira, carne e osso, ferro, etc.); o que neles age, a causa eficiente; para que servem, a causa final.

Há dez propriedades dos seres: essência, quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, posição, estado, ação e paixão. Exemplo: um cão, situado num espaço e num tempo, em pé, acordado, pronto para atacar, feroz. Ora, não seriam essas características perceptíveis, quer dizer, captadas pela aparência? A oposição entre essência e aparência então não é válida?! 

O rompimento com a metafísica tradicional, teria que romper com essa relação necessária e de exclusão mútua entre essência e aparência. 

E isso se deu com Kant: conhecemos o que se nos apresenta, o fenômeno, a essência não podemos conhecer com os nossos meios habituais. A partir dessa nova perspectiva, houve uma virada, uma reviravolta, o chamado pensamento pós-metafísico

Essa questão fica para a próxima postagem.


segunda-feira, 10 de julho de 2023

A música e o infinito

 Nossa compreensão do mundo, da vida, das coisas é insuficiente. E sempre que isso acontece, a linguagem e os símbolos, os conceitos e o pensamento abstrato nos auxiliam a deslindar o mistério. 

Um desses conceitos que nos assombram é o de infinito. Como pode "existir" infinito?

Se infinito for além do concebível, então não temos como concebê-lo, quer dizer, encaixar em algum modo humano de compreensão. Se infinito for concebível, então há como encaixá-lo por nossos meios de compreensão. A questão que sobra é: encaixado é ainda infinito?

Parece que não. Então restam meios de solucionar o impasse.

O primeiro é numérico, números podem ser acrescidos a mais números. Foi a solução , digamos assim, para Pitágoras (o do teorema), no século VI a. C.  No cosmo há harmonia, uma identidade entre todos os seres, algo como que divino. Na música o som se deve à extensão numa corda, as notas são descontínuas, assim como os números. Se não houvesse intervalo, tudo se misturaria num bolo sem sentido.

Faz sentido, portanto, conceber números e sons como descontínuos, pode-se sempre separá-los e levar adiante toda a série, sem parar.

Neste sentido, a música é o que há de mais próximo do infinito. E este é o segundo modo de compreendê-lo. E isso porque na música é possível haver composição, harmonização, encaixar em unidades, os tons, semitons musicais sempre, sempre mais e sempre de modo diferente.

Você percebe imediatamente quando um som, uma nota desafinam, entram em desarmonia, machucam o ouvido. Estar fora do ritmo é como que um desencaixe. Estar no ritmo é encaixar e prosseguir.

E isso ocorre com o corpo ao dançar, ao balançar no ritmo, e esse ritmo impulsiona, e leva até o êxtase, como na dança dos dervixes.



Êxtase místico com o ritmo e a música


Não seriam o mundo, a vida e as coisas tornadas mais compreensíveis se vistas por este ângulo?

Não bastariam os recursos humanos, entre eles especialmente a harmonia musical para servir como símbolo para nossas tentativas de busca do infinito, do ir além? E encontrar nesse ir além algo que está ao nosso alcance imediato: a música, a poesia, a completude.

"Para mim parece que o melhor meio de capturar o mundo como eterno é por meio do trabalho do artista. Creio que o pensamento tem um meio, que é como voar acima do mundo e deixá-lo tal como ele é, visto de cima, num voo" (Wittgenstein, Culture and Value).