sábado, 25 de novembro de 2023

Filosofia e poesia - Heidegger e a poesia popular

O poder da palavra: sem ela não nos conectaríamos com o que há e também para dizer o que não há. Precisamos das palavras para expressar o que surge, o que brota e o que se vai e se esvai.

As coisas todas em seu ser convidam e permitem que delas se fale. Considere isso: quem delas fala, quem exprime os seres em seu vigor?

Isso se dá por nossa ação, nosso fazer e nossas técnicas que transformam o natural em instrumentos. Mas, para além da eficácia da técnica, há algo mais essencial, as palavras que fixam os seres, que lhes dão vida e sentido.

Há um lado, digamos, "interesseiro", raso, calculista. E há o lado essencial, o de nós, seres humanos que habitamos a casa de tudo o quanto existe, a casa do ser, como diz Heidegger. Qual é a casa do ser? A linguagem. Não linguagem no sentido lógico ou gramatical, e sim linguagem tanto no sentido cotidiano e habitual, como no sentido absoluto que é quando o dizer se torna poesia. A poesia é vasta, mágica, transforma o que não está ainda aí, traz à presença certa plenitude, um vigor.

O dizer poético não é aquele que chama atenção facilmente, literalmente, não atrai à primeira vista, nem é um vislumbre estético passageiro.

O dizer poético é uma experiência, uma harmonia que a força da palavra traduz, uma novidade, um caminho conduzido pela linguagem, uma vereda, um modo de ver, uma rara abertura para o ser. 

Encontrar a palavra disponível para apresentar o ser, é a isso que o poeta nos convida.

A canção popular, por vezes, atinge esse dizer mágico, traduz aquela abertura:

"É tão difícil olhar o mundo e ver

O que ainda existe

Pois sem você meu mundo é diferente

Minha alegria é triste"

(Erasmo e Roberto Carlos)

Como pode alegria ser triste?! Esse oxímoro ou paradoxo assume um novo sentido, não é paradoxal que a antiga alegria se tenha transformado em tristeza, e que atualmente seja uma triste alegria. Sob o olhar do poeta. 

"Deixe-me ir, preciso andar, vou por aí a procurar; rir pra não chorar ... 

Quero assistir ao sol nascer; ver as águas dos rios correr; ouvir os pássaros cantar; eu quero nascer; quero viver.



Cartola e tantos outros compositores traduzem, criam e transformam vivências e percepções: "eu quero nascer"...

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

A publicação de periódicos de ciências humanas e a moda intelectual

 Recentemente a revista "Percursos", da UDESC, que recebe contribuições na área de ciências humanas e de ciências sociais aplicadas, anunciou o seguinte tema para o seu dossiê:

"Perspectivas contracoloniais e ecologias antirracistas em tempos de catástrofes planetárias".

Essa chamada para o dossiê chamou minha atenção pelo título, do que se trata, é político, ecológico, denúncia de violência racial, é sobre aquecimento global? Enfim, provoca certa perplexidade e dúvida: qual é o rumo que toma o pensamento atual em ciências humanas e, por extensão a reflexão filosófica?

O termo "perspectivas" sugere que podem ser diversas e diferentes visões, pode-se seguir um caminho, mas outro caminho não seria problema.

O termo "contracoloniais" significa ser ou ir contra colônias, seriam as antigas colônias na África, Ásia, América do Sul? Ou seria um tipo de colonização do pensamento, um empecilho ao livre pensar?

Mas, em seguida aparece o termo ou conceito por demais sabido e esclarecido, "ecologias", o estranho é o plural, ecologias, que aparentemente não tem nada a ver com a ecologia da ou na natureza, como atenção ao meio ambiente, cuidado com o planeta, poluição, importância das florestas, a preservação da Amazônia, enfim, o que hoje em dia se entende quando se fala em ecologia. Seriam ecologias antirracistas...

Quando se menciona "raça", no caso acima "antirracistas" o peso e o significado social, econômico e histórico acende, ou melhor, incendeia o debate, as controvérsias e a atual situação de povos e etnias que sofrem ou sofreram preconceito, violência e discriminação, tudo isso é por demais evidente. 

O que intriga é relacionar colonialismo, proteção e cuidado com a natureza, ou seja, ecologias, com raça.

Seria um retorno às origens, penso no caso dos descendentes de africanos no Brasil, apontar caminhos para sua integração, para um antirracismo?

(Mencionar raça no atual momento da guerra Israel/Palestina faria sentido se "antirracismo" se referisse a uma política favorável aos judeus. Não é o caso porque na guerra ideológica eles são considerados povo "opressor").

A cada termo desse chamamento para o dossiê, a análise e a compreensão ficam mais complicadas.

E se mencionarmos raça ao lembrar da terrível perseguição, morte, castigos, enforcamento dos negros nos EUA até recentemente pela KKK? Seria essa denúncia um movimento antirracista?

Entretanto, fica ainda mais difícil seguir uma dessas vias teóricas, pois o título indica que se deve situá-las no tempo, que tempo é esse? O das "catástrofes planetárias". Quer dizer, derretimento da calota polar, secas, inundações, calor extremo, enfim, todas essas catástrofes seriam o pano de fundo histórico, social e econômico desses conceitos "contracoloniais", das "ecologias antirracistas"?!

A exigência de publicação de parte da academia paga seu preço, seja pela "obrigação" de seguir temas e conceitos da moda intelectual, pela irrelevância ou até mesmo pelo tempo gasto.

***

Escrever artigos para revistas acadêmicas é atividade séria de pesquisa, presume-se sua contribuição para um melhor entendimento e talvez perspectivas (sim) para esclarecer ideias, propostas, abrir caminhos, por meio de estudos com base na sociedade atual, detectar problemas, sua origem e possível solução.

Isso é possível, desejável e produtivo. 


 

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Guerras são sempre injustas?

 Joseph Conrad, escritor polonês que aos 23 anos passou a escrever em um primoroso inglês, disse em sua obra "Nostromo":

Em época alguma da história do mundo tiveram os homens qualquer dificuldade de infligir tormentos corporais e mentais aos seus semelhantes. Tal aptidão lhes veio da crescente complexidade de suas paixões e do precoce refinamento de sua engenhosidade (p. 333).

A obra é de 1909, a mensagem é atemporal.

O direito de defesa contra atos de terrorismo, como foi o caso de Israel contra o Hamas, tem despertado polêmicas que vão além da guerra. Posições à esquerda, à direita, paixões extremadas, discursos de chefes de Estado, de organizações, de associações humanitárias, reportagens com as cenas mais terríveis de tortura de um lado e de devastação e destruição de outro lado.

A guerra começou com atos de terrorismo, portanto, não se tratou de uma guerra "convencional", houve tempo, financiamento, treinamento, planejamento para infligir morte de civis, esconder reféns e contar com o fator surpresa. Surpresa não só para israelenses, também para os próprios dois milhões de habitantes da faixa de Gaza. 

A defesa de Israel precisa desmontar a capacidade assustadora de infiltração dos terroristas do Hamas entre os palestinos. A vida na Faixa de Gaza que já era difícil em tempos de "paz", pois havia absoluta necessidade de ajuda humanitária, a maioria pobres, sofre com os ataques de bombas e tanques, mas ela própria é uma população refém. Povo que precisa professar uma crença, que precisa se sujeitar a ver meninos instruídos para matar, para odiar, e sem opção, aceitar ser comandado de fora pelo Irã e pelo Hamas, cujos chefes moram luxuosamente no Catar. E ainda a questão territorial, uma fronteira de poucos quilômetros fechada com cercas aramadas. 

Sofrimento sem fim.

De seu lado, Israel precisa enfrentar organizações terroristas, defender suas fronteiras e se haver com a opinião pública ocidental. Nessa corrida de ratos em túneis, de detenção de reféns, de acusação de morticínio de crianças, Israel ficou do lado digamos assim, antipático, opressor, cruel, defendido pelo monstro do capitalismo mundial, os EUA.

Ora, guerras são sempre cruéis, se são ou não justas, não há como responder à pergunta do título.

Mas há que dar publicidade a certas tomadas de posição, no caso do Brasil, o presidente que faz declarações e acusações destemperadas, em aliança com a esquerda radical, antissemita, e claramente ignorante de fatos, de reportagens que mostram a situação mais de perto, mais próxima do que seja enfrentar o terrorismo islâmico.

Eles estão matando inocentes sem nenhum critério. Jogar bomba onde tem crianças, onde tem hospital, sob pretexto de que um terrorista está lá, não tem explicação. Primeiro vamos salvar as crianças e as mulheres e depois a gente faz a briga com quem quiser. (Lula, novembro de 2023)

Qual critério é preciso ter? Critério em guerra? Há sim terrorista dentro do maior hospital de Gaza, e em túneis. O Hamas usa civis como escudos! "Fazer a briga com quem quiser". O que é isso, presidente, isso são termos?!

terça-feira, 14 de novembro de 2023

"Investigações Filosóficas", 70 anos de sua publicação (última parte)

A segunda parte de Investigações Filosóficas se divide em 14 capítulos, o mais longo sobre o conceito de ver. Há uma desmontagem da noção de mente como contendo processos internos, puros. Wittgenstein prossegue com a tese dos jogos de linguagem, do comportamento e do que ocorre em situações diversas para mostrar que o pressuposto de estados mentais semelhantes entre si, que pertencem à consciência dos sujeitos, não se sustenta.

E ele questiona: como a consciência surgiu, como se aperfeiçoou, como as impressões dos sentidos formam como que quadros; como por meio da palavra, de movimentos e gestos do corpo, descrições são feitas; como "eu tenho medo" é suscetível de ser descrito? Em que ocasião e contexto pode ser dito? Estados mentais de medo, de crença podem ser afirmações, hipóteses, impressão dos sentidos, descrever algo para alguém, por sua vez, é outro processo, outro conceito. Crer falsamente é impossível. 

Quanto ao ver, entram diversas categorias, um vê isto outro vê aquilo, um vê detalhes que o outro não percebe, um compara, outro não. A fonte dessas capacidades pode interessar um psicólogo, mas ele, filósofo, se interessa pelos conceitos e seu lugar em nossas diversas experiências.

A figura de Jastrow do pato/lebre é um dos exemplos usados por Wittgenstein sobre a capacidade de ver aspectos de certas imagens externas, e não internas ou mentais. 



E para sustentar essa tese, ele recorre a vários casos, a vários exemplos: relatar uma experiência; exclamar "é uma lebre" ao ver de repente o animal saltar; ver algo como tal de longe, e ao se aproximar, descrever o visto; ver como côncavo ou convexo, achatado ou tridimensional. São sempre conceitos operando, fixando os inúmeros papéis das imagens em nossa vida.

Diferentes modos de ver.


A criança entra em uma caixa que diz ser sua casa, ela a "vê" como casa. Objetos podem se tornar isso ou aquilo, podemos ver semelhanças, podemos olhar e não ver. Certo aspecto de um objeto visto em um desenho é relacionado a outros objetos. Assim, ver é diverso pode ser uma interpretação, um estado, um pensar.

A diversidade e capacidade de usar palavras, de ver, de interpretar, repetir algo, são diferentes experiências que podem vir acompanhadas por gestos, caras, tons de voz.

Com isso Wittgenstein mostra que se trata de processos, e exemplifica com "eu sei" semelhante a "eu suponho", "tenho certeza", "me lembrei disso". Já dizer "eu sei o que eu estou pensando" soa estranho: Toda uma nuvem de filosofia condensada em uma gota de gramática (p. 189).

Nós permanecemos inconscientes da prodigiosa diversidade dos jogos de linguagem cotidianos porque a roupagem de nossa linguagem faz com que tudo fique parecido (p. 191).

O que nos é dado? Padrões, o que aceitamos, nossas formas de vida.

Pergunte, como você aprendeu? Alguém diz ter faro para algo, é um padrão. Mas fingir dor é padrão no tecido de nossas vidas?!

Uma criança precisa de muito aprendizado para fingir; um cão não pode ser hipócrita e nem sincero... Se um leão pudesse falar nós não o entenderíamos (p. 190).

Questões filosóficas são dissolvidas ao serem inseridas em nossas vidas, em nosso aprendizado, nos usos da linguagem. Libertar a mosca do vidro. Sem transcendência nem transcendental...

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

"Investigações Filosóficas", 70 anos de sua publicação (parte II)

 Wittgenstein se detém em investigar a sensação, a de dor especialmente, na qual é preciso haver critério de identidade, como traduzir, como descrever a sua experiência de dor. Os outros podem compreender as expressões normais de sensação. Por isso mesmo, não são expressões privadas, há que se usar palavras em certos jogos de linguagem. E ele pergunta, "vermelho" é só para certa pessoa? A mão tem dor ou eu tenho dor na mão? Expressar sensações requer critérios, reconhecer, capacidade de descrever a dor. Dores não se apresentam como imagens em um quadro.

Note-se aí uma crítica ao empirismo, há inúmeras funções e propósitos da linguagem, pensar sobre casas, dores, bem e mal ou tudo o quanto se quiser ou puder, não provém de percepção dos sentidos. O que não significa ser Wittgenstein um behaviorista, apenas que os processos mentais são reportados a usos normais, e não significa tampouco resolver o problema filosófico da sensação. O comportamento de dor é reconhecível, o grito pode expressar dor, e isso difere de uma sentença ser a expressão do pensamento.

E quanto a "pensamento"? Para o filósofo há muitos modos de expressão, de compreensão, atitudes que podem resultar em sucesso ou insucesso, modos de viver e de pensar, de justificar e isso tudo não fica englobado pelo "pensamento". A fala é o veículo do pensamento, mas é preciso saber em que situação e contexto se usa o termo "pensamento": pensar em uma canção, dizer algo em voz alta, ou só para si, lembrar de algo, contar algo, escrever uma carta, dificuldade para escolher palavras. Há intenção antes da expressão? Haver intenção está ligado a costumes e instituições, é preciso uma língua. Pensar algo pode ser visto como "incorpóreo"? Sim, se comparado a comer, por exemplo. Pensamento é algo estranho?! Mas não quando pensamos... 

Wittgenstein considera que pensar se assemelha usar um instrumento, ferramentas tal como se usa para calcular, para indicar, e sempre seguindo critérios de aplicação. Esses usos das palavras fazem dele um nominalista? Não, pois o erro do nominalismo é considerar que todas as palavras são nomes. A "vida" de um signo é seu uso. Uma seta indicar direção depende de um uso.

A lógica proposicional é desconstruída, pois a proposição é usada em casos como o de justificar, e a própria justificação vai até certo ponto, e só assim atinge seu objetivo. Inferir pertence aos contextos normais de fala, em que entram os propósitos, as ocasiões. Os conceitos têm usos diversos, não formam um capa a priori, eles são instrumentos que podem expressar interesse, direcionar a atenção. O processos interiores, mentais precisam seguir critérios que vêm de fora, que levam a tomar decisão, recuar, permanecer, seguir em frente.

Enfim, na parte I de Investigações Filosóficas as palavras chave não são mais sentença, relação pictórica com fatos e sim jogos de linguagem, situação normal de uso, contexto, seguir regras e a infinita diversidade de comportamento requerido por nossas formas de vida. 

 Wittgenstein com Francis Skinner em Cambridge

É a filosofia em plena horizontalidade, eis-nos, assim somos, agimos, falamos. Nada a respeito de noções metafísicas, éticas, políticas, e sim a imensa variedade de comportamentos linguísticos e não linguísticos. 

(parte final na próxima postagem)

sábado, 4 de novembro de 2023

"Investigações Filosóficas", 70 anos de sua publicação (parte I)

 A linguagem cotidiana é empregada para mostrar que é a própria linguagem cotidiana a base de sua filosofia. E nisso reside o caráter revolucionário de Investigações Filosóficas, que, após 70 anos de sua publicação, permanece importante e influente.

Há seminários e encontros que comemoram a data, grande parte comentários baseados em filósofos da área, especialmente na área da filosofia analítica.

Mas que tal reler e extrair da própria obra  a relevante contribuição de Wittgenstein? Escrita em parágrafos durante 16 anos, ela gira em torno do que ele chamou de "jogos de linguagem", diversos e com inúmeras aplicações. 

A questão das proposições, seu sentido e sua referência, central e crucial no Tractatus, foi revista, e diz ele no prefácio, à luz de Investigações Filosóficas


                  Aniversário de 50 anos de Investigações Filosóficas (alemão/inglês)

As situações por ele imaginadas são as de uso normal, milhares de casos, "imaginar uma linguagem significa imaginar uma forma de vida" (§ 19). Assim é possível desfazer confusões como a de que o nome não tem, como Frege propusera, aplicação lógica. O nome não é o batismo de um objeto, um processo especial chamado "referência". Os nomes são empregados na linguagem cotidiana, assim Wittgenstein rebate seu amigo Russell.

As proposições e sua verdade/falsidade não são o núcleo da linguagem, e as regras indicam direções para o uso, sempre em certas circunstâncias, adequadas para a compreensão. Dúvidas devem fazer sentido, assim como a exatidão, e analisar proposições e sua mágica relação com os fatos, de que deve haver uma ordem a priori no mundo, essas dificuldades apresentadas pelos filósofos devem ser dissolvidas por meio do uso normal. Lançar para fora os óculos da pura representação, e mostrar que usamos comparações. 

O uso de afirmações que apresentam tal ou tal situação serve como um tipo de medida, seu uso prático esclarece mal entendidos, e assim a linguagem não fica girando em falso. A exigência formal de valor de verdade faz sentido quando se usam expressões para saber do que se trata, acerca de quem, do quê, em que circunstâncias...

Aprendemos, seguimos regras, e do uso correto de frases, surge a compreensão, sendo ela própria fonte do uso correto. Aprendemos por meio de diferenças gramaticais em cada ato como entender, saber, ler, ler com atenção. A capacidade de aprendizado pode ser bem sucedida ou não, e a compreensão é igualmente uma  capacidade fonte de uso correto. As diferenças gramaticais são aprendidas, não se trata de puro processo mental. Uma máquina de leitura não é capaz de uma mudança de comportamento que a frase, "já sei ler", por exemplo, implica. Apenas nós o fazemos em circunstâncias normais de aprendizado.

Assim, para Wittgenstein experiências, vivências, familiaridade com processos como ler, adivinhar, resolver quebra-cabeças, em todos há uso de critérios, o domínio de técnicas. E isso implica em total renovação da filosofia, questões como a da identidade do ser, essencial para a metafísica, é tão somente um processo de justificação, acertar com as regularidades que pertencem às nossas formas de vida.

(continua na próxima postagem)