domingo, 29 de agosto de 2021

A coragem

Para Platão, a coragem e a fortaleza são as virtudes dos guerreiros que protegem a cidade. Virtudes são capacidades morais, dizem respeito à ação reta, proporcional e justa. E isso sem necessidade de uma avaliação externa, apenas a de sua própria atividade. A cidade justa é aquela em que cada um cumpre sua função. Platão valoriza a distribuição apropriada, e não a igualdade. Pode parecer inapropriado aos nossos olhos esse tipo de consideração. Para o filósofo, um legislador, ao contrário do guerreiro, não deve e nem precisa agir de forma corajosa e sim justa. Os artesãos precisam exercer suas habilidades, do contrário o resultado será desastroso. E assim por diante.

Então, a coragem implica desapego aos bens materiais, treinamento e educação adequada à função, cuidado com o interesse geral, estar habituado às privações.

Como, em contraposição, entendemos a coragem? Busquemos auxílio em Aristóteles. Como há uma tensão entre a coragem física e coragem moral, a valorização de uma ou de outra dependerá da situação, há, portanto, dois tipos de coragem. Para Aristóteles, a ética das virtudes ensina a prática do justo meio, do equilíbrio. Assim, em um extremo tem-se a temeridade, o impulso para agir de forma impensada e se atirar simplesmente ao perigo, é insensato. Na outra ponta, situa-se a covardia. O covarde mais desprezível é o covarde moral, não tanto o covarde físico. 

                                                             ***

O covarde não mede as consequências de seus atos, sempre reputa aos outros ou à pressão externa seus atos ignóbeis. Ele acusa o outro, e, nas poucas vezes em que olha para dentro de si nega, floreia, arranja desculpas, atira a responsabilidade para sua falta de sorte. Não se vê como fraco e nem fracassado.

Falta ao covarde certa disposição de caráter. Ele pergunta: caráter? O que é isso?! E junto com a covardia, e penso nas relações familiares e sociais da modernidade, há outras implicações. O covarde foge do enfrentamento do que lhe é superior ou inacessível, na mesma medida em que busca justamente o que é facilmente dominado. Age por debaixo dos panos. Penso na covardia da agressão física e moral às mulheres e às crianças. Penso nas mentiras que circulam impiedosamente na internet, penso na covardia do bullying nas escolas, penso em presidentes e ex-presidentes que soltam o verbo e agem sem sequer saber o que significa bem comum. Parece que no lugar de exercer a fala, a palavra, eles ladram.

Talvez as considerações abaixo o retratem. Ele

mente para  si próprio. Aquele que mente para si mesmo e escuta sua própria mentira acaba por não mais distinguir a verdade nem em si nem em torno de si; ele perde o respeito por si e pelos outros. Não respeitando ninguém, ele cessa de amar, e para se ocupar e se distrair, na ausência de amor, ele se apega às paixões e aos prazeres grosseiros (Dostoiévski, "Irmãos Karamazov").

Mesmo que não sejam as paixões ou os vícios, basta o apego do covarde às mentiras, ao autoengano. Ele costuma fazer de si a ideia de que é o soberano dono de um castelo, mas sua moradia não passa de um casebre. O covarde não é o medroso, o covarde é o mentiroso.

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