quarta-feira, 24 de agosto de 2022

A carta de Wittgenstein a John Maynard Keynes

A vida simples e inteiramente despojada, a renúncia à fortuna paterna, o retorno da guerra na qual fora feito prisioneiro, e sem falar na personalidade arredia, ao mesmo tempo artística e com uma brilhante inteligência lógica e matemática -, esses fatores combinados o levaram a se inscrever como professor primário. Sucederam-se aldeias na Áustria, Tratenbach em 1921 (onde recebeu a notícia da morte de seu amado Pinsent), depois de uma rápida passagem por Hassbach, em 1922 se torna professor de escola rural em Puchberg.
O Tractatus foi publicado, recebeu resenha que circulou com repercussão em Cambridge para onde Wittgenstein retornou nas férias de verão. De volta a Puchberg finalmente recebe uma resposta à carta que enviara a John Maynard Keynes um ano antes (!). Este, famoso economista, era um dos expoentes da intelectualidade inglesa. Talvez movido pelo sucesso acadêmico do Tractatus, finalmente responde com atraso à carta de Wittgenstein convidando-o a voltar para Cambridge. Escreve que Wittgenstein teria para seu dispor de 50 libras inglesas. A carta de 29 de março de 1924 começa com um pedido de desculpas da parte de Keynes, que ele teve dificuldades para entender o Tractatus e essa foi a justificativa da demora em responder...
4 de julho de 1924 é data da resposta de Witgenstein, que agradece o envio do livro de Keynes ("The economic consequences of the peace"), mas afirma que não é de sua área a economia, e que ele não compreendeu quase nada (natürlich wie nichts verstehe) e também pelo dinheiro. Mas, quando pensa no que pode usar e como passar esse tempo na Inglaterra, se põe a questionar. O que faria ele na Inglaterra, bastaria ir até ele, Keynes, e ainda correr o risco de dispersar-se? E mais, ele iria apenas para parecer "nett", bem? E que "não que não valha a pena ser bonzinho (nett), quando ele apenas poderia realmente ser bom, ou vivenciar algo melhor, se algo realmente muito melhor houvesse". 
E prossegue, ficar dois dias tomando chá com o senhor ou algo parecido, e ver que em minhas férias eu me transformaria num fantasma. Ainda assim seria melhor do que passar um mês sozinho em Viena.
E o melhor vem no parágrafo seguinte:
Fazem dois anos que não nos encontramos, não sei se o senhor mudou, mas eu mudei, e que infelizmente não estou melhor do que antes, e sim que estou diferente. (...) Diz que "o encontro entre eles teria algumas horas sem que o objetivo fosse alcançado e o resultado do encontro seria decepcionante e desgostoso para ambas as partes". "Se fosse para ter um trabalho determinado, fosse como varredor de rua ou para limpar as botas de um joão ninguém, então eu iria para aí com grande alegria, e então o senhor teria a bondade (Nettigkeit) com o correr do tempo por si mesma ajustada."
Esse termo "Nettigkeit" pode também ser traduzido por limpeza, penso que também por acerto, ou tudo certinho, de acordo com o protocolo. 
Claro está que a ironia e um pouco de amargura se deixam notar nesta carta. E ainda o temperamento arredio, a necessidade de isolamento. 
Quando retornou à Inglaterra foi reconhecido como gênio da filosofia. Outros escritos viriam e a história da filosofia só teve a ganhar. A carreira de professor primário se encerrou e a de varredor de rua nunca começou!
In: Zeit der Zauberer, Wolfram Eilenberger

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