quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

A gratuidade do ser

 Dias atrás, num canto da pista de caminhada, deitado à sombra encontrava-se o sujeito. Moreno, jovem, bonito, com seus apetrechos de morador de rua e seu companheiro, um cachorrinho preto. O olhar perdido ao longe, à vontade, em repouso. Com uma das mãos acariciava a orelha do cachorro, o gesto vagaroso e repetido os unia no prazer relaxado e gratuito. Simplesmente ser aí, no tempo sem pressa, sem cobrança, sem que ele devesse absolutamente nada a ninguém.

Para ser aí, para existir no tempo, é preciso que o tempo seja usufruído e, paradoxalmente, o tempo é dominado e como que cessa. Agarrar o tempo, dispor dele se dá num presente. O presente não como soma, como adição de instantes e sim como lapso, como mergulho silencioso e calmo, o lento passar dos dedos na orelha do cachorro. Vale respirar o perfume de uma flor, sentir o vento nos cabelos, o sol nas costas e deter-se no momento, ganhar a completude, e, em raras ocasiões uma epifania, uma revelação, a harmonia.

Nos primeiros lampejos dessa identificação de um todo, de uma totalidade de ser que nasce de uma particularidade de cada ser humano brotam arte, música, poesia, eternidade, infinito, e a certeza do fim.

O não ser, a morte, o fim que se deseja afastar e negar nos pertence, nos limita necessariamente, mas ao mesmo tempo nos conduz àqueles momentos de prazer que passam por nós e se acabam. O efêmero emerge nesta clareira do ser que o homem abre, à qual ele pertence (Heidegger), e isso é mágico, misterioso, indecifrável. Somos e não somos. 

Quais situações da vida, muitas delas banais e corriqueiras são capazes de nos fazer mergulhar no tempo?

Atravessei a rua de casa, dei alguns passos e fui surpreendida pelo abraço de um pequenino ser. A mãe dele sorriu e disse que o menino me confundiu com a avó verdadeira. Uma surpresa neste gesto que faz pensar, e se pudéssemos abraçar mais? E se pararmos para acariciar a orelha de um cão? E se ouvíssemos mais e melhor?

Ah, mas aquele rapaz deitado no gramado do bosque não tinha deveres e nem responsabilidade. Pode ser, mas isso não elimina a magia do momento.


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