terça-feira, 28 de outubro de 2025

Paradoxos, incertezas, impasses.

 Paradoxos se assemelham à dificuldade que o ditado popular expõe: "se ficar o bicho come, se correr o bicho pega", um impasse, sem saída.



O que fazer?!

Paradoxos se apresentam no sentido lógico, do raciocínio e são próprios à condição humana. Exemplos:

Paradoxo do pessimista: para se sentir bem, tem que se sentir mal, e o  contrário, ao se sentir mal, sente-se bem. Ao que tudo indica, o pessimista autêntico fica preso a essa encruzilhada.

Paradoxo da linguagem: para pedir silêncio é preciso falar algo do tipo: "silêncio", "quietos, por favor", etc. 

Paradoxo do mentiroso: ele não pode admitir que mentiu, pois isso seria dizer a verdade, e se disser que não mentiu, que diz a verdade, a mentira se torna verdadeira, o que é absurdo. 

Paradoxo da Filosofia: afirmar que a filosofia não faz sentido, que é perda de tempo, esse modo de argumentar conduz à necessidade de justificar, ao justificar necessitará usar de um raciocínio, portanto, filosofar. "Só sei que nada sei", esse famoso dito de Sócrates significa que ele sabe, sim, e que nada saber estimula à busca, às indagações. O que afirma tudo saber é empafiado, ninguém é sábio a ponto de julgar tudo e todos sem expor seus argumentos à luz da justiça e da razão. Sem justificativa, sem comprovação, os argumentos não se sustentam.

Paradoxo do descrente: "eu não acredito em nada", o cético acredita pelo menos nisso, sua crença em coisa alguma, se ele duvidar de tudo, precisará ficar imóvel, estático, ainda assim está sujeito a um acidente, incidente, um guindaste pode cair em sua cabeça.

Desse modo somos instados à certeza ou à incerteza? Há certeza matemática, certa medida pode ser conferida, aceita e aplicada com sucesso. A incerteza é a companheira do dia a dia, confiamos nos sistemas, na verificação de fatos, no nosso modo de interpretar sinais, os do trânsito, por exemplo, somos capazes de ler e entender mensagens, o que está por detrás do dito, aquilo que é pressuposto, do contrário não compreenderíamos o que certa informação comunica, implica e acrescenta ao que já se sabia.

Fazemos a leitura do mundo, do que nos cerca, daquilo que nos diz respeito e daquilo que não nos diz respeito, somos seres significantes. Quando diante de impasses somos levados a discernir, a escolher, a seguir adiante, ou, o contrário, acabamos por desistir da empreitada, buscamos outro caminho, criamos soluções.

As situações de perplexidade, de limite, de ineditismo são avaliadas, reavaliadas, novos caminhos serão percorridos. Foi assim que a humanidade criou, interpretou, conduziu, satisfez necessidades. Foi assim, igualmente, que a humanidade destruiu, arrasou, proibiu, escravizou, aniquilou. Em meio ao que não é possível de ser solucionado, becos sem saída, impasses, paradoxos, criou-se um mundo imaginário para além desse nosso mundo, como um consolo para nossa ignorância.



domingo, 12 de outubro de 2025

Inteligência Natural - Inteligência Artificial

 A Filosofia se faz presente em nossos dias muito mais pela capacidade de interpretar do que pela pura reflexão, pois esta talvez não baste para as tarefas que o filosofar nos impõe.

É o caso dos debates e das propostas em vários setores da sociedade e da própria vida humana que se dão em torno à inteligência artificial (IA). Ela é alimentada o tempo todo por impulsos autogerados, informações recolhidas por anos e anos de postagens, programas, reportagens, conhecimento científico, descobertas, enfim, todo um gigantesco material produzido por quem? Por nós mesmos, e que é acessado pela IA.

A IA não interpreta a não ser o que for informado, não vai além do que é dado, o que permite solucionar problemas, sugerir alternativas, facilitar o caminho de todo e qualquer um que precise de um cálculo, de estatística, de opção com investimento, de diagnóstico, de leitura de imagens, e mesmo de como se vestir, se comportar, reagir. Truth Terminal capacita investidores em mememoedas a ganhos cumulativos, até mesmo a plantar árvores e criar esperança existencial! Computadores conversam entre si, geram respostas automaticamente, produzem ações autônomas, poupam quem a eles recorre de tarefas repetitivas. Podem formatar a realidade com suas interações com a cultura humana, os mercados e as redes sociais. 




 Mas a IA não é consciente, sensível, não deseja nem quer nada, apesar de seus usuários entenderem que sim. A inteligência natural foi quem criou a IA...

Onde entra a Filosofia? Não tem a ver com informação, com descrições de acontecimentos, com a solução de problemas que impedem sucesso, nem aponta o caminho mais fácil para investir, não usa estatística nem amostragem. Filosofar é interpretar e buscar sentido, inclusive não encontrar sentido, vai à essência do que e de como somos, o que nos motiva, finalmente, o que estamos fazendo conosco?

Incrível que bilhões de seres com seus próprios discernimentos habitem o planeta, que expandam seus limites com produtos e artefatos capazes de exterminar a vida e outros tantos de conservar a vida, que usem seu entendimento e sua sensibilidade para produzir a mais nobre arte e o mais prejudicial lixo. 

Em termos metafísicos, os seres humanos sofrem, se angustiam, se comunicam, buscam por sentido e realizações, anseiam por liberdade, autonomia, almejam serem educados o suficiente para dar razões de seus atos. Em nosso horizonte deveria haver a busca permanente por abertura, alçar voos, que não precisássemos sentir culpa, eleger deuses, cultuar mitos. Nem atrelar esses pleitos à IA.

A inteligência natural é capaz disso tudo, o filósofo abre essa porta, aventura-se nela, as possibilidades do Ser são inesgotáveis. Ao interpretar o que a tecnologia nos oferece, com seu acervo de ideias e conceitos, de projetos e de compreensão das consequências, a filosofia pode e deve mostrar que a responsabilidade é inteiramente nossa, de nossos representantes, de organizações, e, mais do que tudo do estado democrático de direito. Sem ele nos sujeitaríamos ao arbítrio, ao terror, às manipulações. Até mesmo a uma distopia em que máquinas inteligentes substituiriam a inteligência natural.

sábado, 4 de outubro de 2025

Sobre o orgulho

 Quando se reflete sobre o orgulho, é preciso fazer uma importante distinção. "Ele é orgulhoso" tem sentido diferente de "Eu tenho orgulho de você". No primeiro caso em geral se refere a alguém presunçoso, que se tem em alta conta, olha para o mundo e para as pessoas de cima a baixo, como se habitasse o mais glorioso posto, um olhar que humilha, que constrange. Algo moralmente inaceitável.

No segundo caso, ter orgulho do feito de alguém, feito este que engrandece, que enche o coração de um pai ou de uma mãe, de um professor, de um chefe, diz respeito a uma conquista, a uma tarefa bem executada, serve de estímulo, mostra sinceridade em seu juízo. O orgulho neste sentido é uma virtude ética, sendo uma virtude e como tal, uma disposição de caráter, que depende apenas da própria pessoa, esta se responsabiliza pelos seus atos, afirmou Aristóteles. Para distinguir os dois sentidos, "o orgulhoso" de "tenho orgulho de você", no primeiro caso há excesso, soberba, vaidade, pode ser considerado "como uma espécie de 'vaidade oca' e a deficiência como uma humildade indébita", segundo Aristóteles. Ao passo que avaliar positivamente certo ato, cabe dizer "eu me orgulho de você ter agido desta ou daquela maneira", mostra satisfação, acolhimento.

Note-se que no caso do orgulhoso, está em jogo o caráter. O orgulhoso precisa de público, precisa de bajuladores, precisa de serviçais. Em contraste, produzir o justo orgulho em alguém, os valores mudam, resulta de uma tarefa, mesmo modesta, que foi cumprida, satisfez quem executou e aquele que solicitou a tarefa, como um pai/mãe que tem orgulho de seu filho/filha, há atenção, cuidado, apreciação justa.

O amor à simplicidade de que fala Sêneca (4-65), nem o banquete, nem as roupas suntuosas, nem esperando a glória e sim o que se encontra com facilidade, o que está à mão, o que não produz inveja, e que está longe de cobiça, são valores que servem de contraponto ao desejo de glória do presunçoso. O mesmo Sêneca pede que não invejemos os que estão acima, em um cume, pois o cume nada mais é do que a beira de um abismo, importa fixar um limite para as ambições. 

Para Montaigne (1533-1592), sobre o falso orgulho ou presunção, ele diz: "ter-se em alta conta, a opinião demasiado alta que têm de si mesmos, estas são pessoas que não se conhecem, nem sabem como mover aquilo que elas próprias movem, nem decifram seus impulsos". São pessoas que se lançam como se fossem máquinas possantes, que vão moendo tudo à sua volta, sem olhar para os lados, e, principalmente sem olhar para dentro de si. 

Em sua verve crítica, Voltaire (1694-1778) expõe dois modos de se orgulhar: que um juiz sábio se orgulhe de seus feitos, que um governante justo se orgulhe de suas ações, é muito diferente de "nos confins de uma de nossas províncias meio bárbaras um homem que houver comprado um cargo insignificante e feito imprimir versos medíocres decida estar orgulhoso, eis o que dá matéria para rirmos longamente" (in: Dicionário Filosófico).

Como se pode notar, o orgulhoso se reveste de poder e se investe de poder, de muito poder, talvez sem merecimento, nem sempre concedido, e mesmo quando concedido, o poderoso esquece de onde proveio um tal poder, como seu uso magnânimo seria razoável e esperado, sua proporção, sua distribuição idem. Além disso, deveria levar em conta, que cargos são efêmeros, sempre haverá outro para ocupar seu lugar. O trono tem seu preço, o brilho, o olhar, o sorriso de autossatisfação podem desaparecer como se retira uma máscara. 



Orgulho ou soberba

Finalmente, a condição humana, somos mortais, o que é mais precioso legar? Algum fruto, por menor que seja, o exemplo, a capacidade de dotar-se com certo distanciamento, desprendimento, humildade.  

"Humilha profundamente o teu orgulho, porque o que espera o homem é a podridão" (Eclesiastes. 7.17.35).

Radical, não?


segunda-feira, 22 de setembro de 2025

A rara experiência do inalcançável

 É possível ao pintor chegar ao exato tom de azul do céu em sua tela? E com as outras cores que certa paisagem exibe, é possível fazer essa tradução? 


 

Céu azul, metáfora, impressão e inspiração

Não, e é exatamente por isso que a arte atinge o inalcançável, o que soa paradoxal, pois como chegar ao que é impossível de chegar? Pode-se colher alguma resposta em nossas próprias experiências. A alegria, as realizações, a busca da completa harmonia, a sensação de beleza total, a chegada triunfal ao cume da montanha, o atleta que se supera meta após meta, tudo isso vem acompanhado de certo vazio, de certa incompletude, algo sempre falta. Um engano considerar que essa sensação, que essa percepção, que essa vivência da falta sejam empecilhos, que prejudiquem e indiquem que somos irremediavelmente falhos.

É justamente porque algo falta, que o inalcançável se torna a meta, que atar o nó que enlaça desejos, crenças, projetos não possa ou nem deva ser dado. Talvez seja essa a mais própria e intrigante condição humana, que o impossível se torne possível. Somos movidos a tentar preencher com o que está à mão: certa nuance, a paleta de cores, a inspiradora combinação de notas, as palavras que expressam emoções e intuições do poeta, a coragem de dizer a verdade, entender o que nos impulsiona, consola e atrai. Neste sentido, o bilhete do suicida representa a derrota nessa busca. Ao explicar, expor seus motivos, sua dor, seu sofrimento ele/a ao mesmo tempo cede, renuncia ao inalcançável.

***

O que dizer sobre o oposto da busca por essa rara experiência. Alguns exemplos: as palavras repetidas, ocas, gastas, despidas de significado, que servem para ferir; o incendiário que ri do caos; o cerol na pipa; as mútuas acusações revestidas do ódio mais cruel; o culto ao deus da irracionalidade; os disparos de metralhadora entre gangues rivais; a eliminação pelo Talibã de autores mulheres de bibliotecas. Você leitor/a certamente acrescentaria outros tantos absurdos. 

Quando achamos que nada mais pode chocar, a notícia de alguns dias atrás (18/09/2025) pela BBC de menina recém-nascida enterrada. Um pastor de cabras, na província de Shahjahanpur, Índia, ao ouvir um gemido aproximou-se e avistou um bracinho levantado em meio a um monte de terra. Era uma bebê de aproximadamente vinte dias. Ele chamou a polícia, levada a um hospital, médicos tentam salvá-la. Até onde se sabe, a criança sobrevive. 



Bebê na UTI (Índia, setembro 2025)

Há uma preferência por meninos neste país de Indira Gandhi, uma mulher. É no ventre de mulheres que meninos e meninas são gestados...

O que o pastor sentiu? Provavelmente o avesso do inalcançável, do sublime, da alegria, do júbilo que o nascimento de uma criança, um filho ou uma filha gera. O pastor experimentou a crueldade.

domingo, 14 de setembro de 2025

Os perigos da polarização

 Um ativista é morto com tiro no pescoço ao expor suas ideias em espaço universitário; movimentos de massa são comandados por palavras de ordem; um julgamento, tal qual juízo final é conduzido por salvadores da pátria; a pressão política vem camuflada sob argumentos jurídicos; extremistas se empurram, se acusam e acuam uns aos outros em campos opostos, como verdadeiros inimigos. 

Em meio a esse caos em que tudo tem a aparência de ordem, até mesmo a clareza do raciocínio serve aos ideólogos, o argumento baseado em fatos sofre pressão, não custa voltar ao Grande Irmão do livro premonitório de George Orwell, 1984. Citado, parodiado, enaltecido, merece ser lido ou relido. Tudo o que se conhece como civilização é destruído, há patrulhas em todo canto, a verdadeira força não vem dos exércitos e sim da conversão do pensamento e da linguagem. A Política do Pensamento, a invenção da Novalíngua que diz: Guerra é Paz, Liberdade é Escravidão, Ignorância é Força, empurra todos para a obediência, para a cegueira ideológica. 

Vive-se em nosso país sob essa cegueira ideológica, que escraviza e compromete a integridade e a liberdade. Duas pontas de um mesmo cordão, a multidão insuflada e presa à imagem de liderança construída para se opor à outra imagem, de outra liderança, resultou em duas situações políticas, de direito e de fato, institucionalizadas, dois polos que se enfrentam pelo poder. Há mais ódio do que busca de entendimento, mais acusações mútuas do que sensatez e argumentos, mais lama jogada de um lado para o outro e arbítrio, do que compreensão baseada no justo meio, na inteligibilidade, na razoabilidade.

O condutor de massas, imbuído de missão salvadora, investido de uma mística, não é desvendado, não se aponta para suas fraquezas e insuficiências, e, principalmente, seus erros. Investido dessa mística ele eleva o tom, e o clamor de multidões não cessa ao ponto da quebradeira que acabou por justificar e dar voz aos justiceiros. E pior, o tribunal que investigou e condenou esse messias, não fez justiça, ludibriou, controlou, manipulou. Consequência, a mística se fortalece, a multidão agradece pois sua causa fica demonstrada. Trata-se, é claro, do ex-presidente.

     

                                               

 Acima de tudo e de todos foi imposta, votada, anunciada a versão final dos fatos pelos juízes que dão a cartada final. Uma versão que agride o senso de justiça e que acaba por agigantar a mística: "tentar" deve ser entendido, na Novalíngua suprema, como executar, como ato realizado. O novo significado de "tentativa" é "realização". Assim, se alguém diz "tentaram roubar meu carro" = "roubaram meu carro"; "houve uma tentativa de escalar a montanha" = "a montanha foi escalada", e assim por diante. 

Voltando à obra 1984, o Grande Irmão obrigou pessoas a trabalharem em versões diferentes dos fatos, selecionam uma ou outra, usam referências cruzadas "e então a mentira escolhida passaria para os registros permanentes e se tornaria verdade" (97-98).

Quem pacificará os ânimos? Como seria viver sem tutela? Qual o preço da idolatria? Quando a massa governável e manipulável acordará?

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Qual é o sentido da vida?

 Em nossa eterna busca por satisfação, surge a pergunta: qual é o sentido da vida? Simples, é dar sentido à vida

Há os insatisfeitos para os quais o copo parece estar sempre meio vazio, então é preenchido com preces, promessas, arrependimento, dor moral, pior do que mesmo a dor física. Entram em um labirinto sem o cordão para guiar no caminho de volta, labirinto penetrável (se impenetrável não seria labirinto) e sem fim. Onde parar? Em certo ponto, como se fosse um ponto de ônibus com a placa: "Esperança". Segue então seu destino, até que o motorista anuncia: "ponto final".

Para onde irá minha alma, meu espírito errante? O vazio daquele copo precisa ser preenchido a todo custo. Sem escolha livre e consciente, a pessoa se encontra presa a grilhões, não quis ou não pôde escolher.

A possibilidade de escolher, repetindo, é o que dá sentido à vida, sermos capazes de enfrentar, de decidir, de realizar.

As mais terríveis "prisões" são as que impedem essa liberdade, como a dos eternamente dependentes de uma mãe, no sentido literal e no sentido figurado; aqueles aos quais não foi dada a educação, a formação para serem independentes; aqueles aos quais foi subtraída a condição de vida minimamente sustentável; aqueles que são jogados para a margem, seja pela violência, seja pela ignorância; aqueles que são escravizados, discriminados, submetidos a um poder soberano. 



Escravos na lavoura de algodão (Estados Unidos)

Dar sentido à vida por meio de uma profissão, da arte, do trabalho, do afeto, da amizade, dos vínculos familiares, do amor dos pais pelos filhos e dos filhos pelos pais, nessas relações há construção de sentido duplamente, encontrou-se um caminho traçado voluntariamente, e encontrou-se valor, os esforços valeram a pena. Foram superados os obstáculos do impulso, da submissão, do conformismo. Houve determinação, houve vontade, houve luta, houve remoção de obstáculos e mais, a possibilidade de usufruir dessas conquistas.

Quando isso é impossível? Por escravidão, ameaça, perseguição, castigos mortais, imposição de uma rotina excrusiante. Isso significa que essas vidas não têm sentido? Essas vidas demandam sentido, impedidos de escolher, há que lutar por eles, justamente as pessoas capazes e responsáveis, bem como instituições onde há liberdade, informação, direito, leis, justiça. Sua vida pode dar sentido a muitas vidas.


segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Um encontro entre Nietzsche e Hermann Hesse

 Para Nietzsche (1844-1900) não chegamos e nem podemos chegar a nenhuma verdade, apenas às verossimilhanças, aproximações, probabilidades. Perseguir uma crença, um sonho, lutar por isso, a que nos conduziria? À diminuição da vontade, quanto maior a crença menor a vontade. A vontade adoece, enfraquece quando seu lugar é ocupado por verdades eternas, pelo apego dogmático por partidos políticos, por curas milagrosas, pelo medicamento que cura todos os males. Esses recursos empobrecem a luta, o sentido trágico da existência, a capacidade para criar, elevar, seduzir.    

Nietzsche -1844-1900

 Com espírito livre alçar montanhas e dali contemplar o que somos e fazemos, desapegados de algo como fé inabalável, de lutar e matar em nome desse sagrado, Nietzsche propõe indagar sobre a origem dos valores, e de sua aceitação como absolutos; essa eterna reivindicação de poder, não liberta, e sim escraviza. O filósofo ressalta a sensibilidade, o gozo artístico, a renúncia à moral do rebanho, da resignação, em lugar disso enaltece a vida, a força vital. Há o inevitável, que necessariamente acontecerá, mas também há liberdade de conduzir a vontade para avaliar, para interpretar, elevar-se, superar-se, criar, desvelar perspectivas.

Hermann Hesse, escritor alemão, prêmio Nobel de Literatura, escreveu obras que influenciaram a geração dos anos 50-60, como "Sidarta", "Demian", "Lobo da Estepe". Desta última retirei algumas reflexões para imaginar o encontro entre o escritor na pele de seu personagem, Harry, com Nietzsche. Harry é o lobo da estepe, um ser dividido entre a condição de lobo e de humano, convivem lado a lado, ora prevalece o caráter animal, ora o humano. O personagem ama poesia, filosofia, música clássica e vinho, muito vinho, avesso à vida burguesa, que ele rejeita, critica, não suporta a ponto de sentir dor no estômago. Uma das alternativas é o humor, que é "burguês, apesar de o burguês em estado puro não ter a habilidade de compreendê-lo" (p. 72). Renunciar a certas exigências que se supõe como superiores, demonstra sabedoria de todo aquele que se vale do humor. 


Hermann Hesse - 1877-1962

Convidado por um antigo colega para jantar em sua casa, Harry hesita, mas acaba aceitando. Tudo soa falso, desde o serviçal recolhendo seu casaco, uma pintura de Goethe, a falta de assunto compatível; acaba por comer mais do que o costume, esse jantar não fora boa ideia. 

Quanto fazemos por pura obrigação, sem pensar no que realmente queremos ou podemos fazer, tarefas, trabalho mecânico, cansativo, dia a dia em esforços contínuos, somos como a alma de Harry dividida entre o lobo e o homem: impulso X necessidade.

Como se sentiria Nietzsche com relação àquele convite para um jantar "burguês"? Imagine que ambos fossem convidados, Hesse/Harry e Nietzsche se entreolhariam, silenciariam, se despediriam aliviados, sairiam a passear, entrariam em uma taverna, saudariam a existência errante com vinho, muito vinho, a refletir sobre a condição humana. Excesso de etiqueta, muita superficialidade, falta de humor e de senso crítico, nenhuma noção do que seja de fato poder, que poder não é mitificação, não é proclamar-se com razão acima de tudo e de todos, que aquele que se toma como superior ou supremo, avalia seguindo critérios inventados, humanos, portanto. Desconhecem isso e se presumem como divinos,  absolutos.

Ambos dançariam, olhariam do alto e para o alto, veriam o quanto há apego ao poder, que se erra, que as avaliações são relativas, e, quando consideradas como absolutas, falta-lhes perspectivas, falta-lhes graça, humor.

Sou um estranho neste mundo. Religião, pátria, família, estado, nada significam para mim. Sem nenhum fundamento, o desejo de seguir adiante nesses caminhos que conduzem a ares sombrios, se esfumaça como nas canções primaveris de Nietzsche. (Hesse: Der Steppenwolf, p 90).

***

Última observação, se você não gosta, se sente mal, fica incomodado com certo humorista, desligue a TV, o celular, não vá ao show.  O errado é emudecer o artista, o comunicador. Censores são sempre patéticos.





segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Ética e Moral, aproximações e diferenças

Como definir Ética? Como definir Moral? Essas perguntas surgem nas aulas de Filosofia, a resposta não é simples.

Ética é uma entre outras disciplinas dos cursos de Filosofia. Ao passo que Moral não consta como disciplina acadêmica. O contrário de ético é antiético; o contrário de moral é imoral. Muito diferentes as duas acepções. O que dá uma pista para a diferenciação. "Atitude ética", "atitude antiética", significa seguir ou não princípios jurídicos, de sociabilidade, valores exemplares ou o contrário, condenáveis. "Atitude moral", "atitude imoral" sugere comportamento louvável, adequado, que segue normas de conduta ou o contrário, inadequado, que causa indignação, vai contra expectativas sociais e de convivência, fere emoções e sentimentos perante certo público. 

Como as fronteiras não são assim tão nítidas, experimentemos ir para a História da Filosofia.

O princípio ético para Sócrates é a sabedoria, a reta vontade é o guia para a ação ética, é preciso tanto o saber como a prática das virtudes, a mais nobre delas é a justiça.

Para Platão a alma imortal é a sede de quatro virtudes espelhadas na polis (sociedade): temperança, fortaleza, sabedoria e justiça.

Na obra "Ética a Nicômaco" Aristóteles, como o título indica, expõe princípios e conceitos da ação e sua finalidade, que é a busca de um bem, que não reside no transitório, nem é algo particular, e a que todos almejam, e que é a felicidade contida na virtude. Virtude é uma disposição do caráter, tem a ver com escolha baseada no justo termo, nem tanto ao céu nem tanto à terra (ver postagem de 29/abril/2016).

Em Descartes fica clara a distinção, ele propõe máximas morais, seguir com cautela em suas decisões, estudar as dificuldades, ir do mais simples ao mais complexo. Como se vê, trata-se da ação, da conduta que serve de guia para ele próprio, mas que pode servir para outras pessoas. 

O mesmo para Pascal, que analisa a natureza humana, sua grandeza e sua fraqueza, o que motiva nossas ações? Todos querem ser felizes, os meios falham, daí buscam o que é infinito e não falha, Deus (ver Pensamentos, capítulo "A Moral e as Doutrinas").  

Kant escreveu um tratado sobre a razão prática, sobre os fundamentos da moral, quer dizer, princípios que guiam ou que deveriam guiar a conduta, o maior entre eles o dever, agir por dever. Não é uma "ética" do dever e sim uma moral do dever. O que sustenta o argumento de que, quando se invocam princípios para a vida prática, isso indica ser território da moral e não da ética.

Nietzsche pergunta o que valem os valores, responde que se deve ir além de bem e mal, partir para novos valores em nome de vida renovada, reavaliada, questionar o ser "bonzinho/a", explorar novos horizontes, não ser rebanho. 

Conclusão, a Filosofia Prática reflete sobre a moral. A Filosofia Teórica reflete sobre os princípios básicos da Ética.

 

                        Haveria algo nos seres humanos, ainda desconhecido que resgatasse todos nós?

Tribos primitivas seguiam princípios ou apenas sua natureza para sobreviver? O que mudou, se é que mudou? Ainda somos em parte selvagens a seguir impulsos ou dominamos nossos instintos sob a forma da lei, da sociabilidade, de respeito a princípios éticos como justiça, liberdade, autonomia?

Creio que nem a inteligência artificial responderia, pois a sabedoria cabe a nós e não à programação de máquinas, especialmente aquelas que "pensam". Essa observação vai no sentido da ética e não da moral.



sábado, 2 de agosto de 2025

O que realmente importa

 Na última postagem perguntei quem nos salvará, quem nos resgatará. Vou refazer a pergunta: com quais metas e objetivos, por meio de quais valores?

Independência e coragem, capacidade de análise, enfrentamento de questões mesmo as mais espinhosas e controvertidas, pôr as cartas na mesa, olhar o jogo de A e de B, seus pontos altos, justificáveis, e seus pontos mesquinhos e injustificáveis.

O caminho se apresentará cheio de idas e vindas, com meandros e armadilhas, é preciso reconhecer o lobo disfarçado em cordeiro, as acusações mútuas, as fontes, ah! as fontes, como elas se enrodilham sobre si mesmas, umas catastróficas, outras com benevolência hipócrita. Mas, em meio a esses turbilhões pode  surgir a maré da calma, da postura, da razão, livre de artimanhas.  

O valor que precisa ser levado em conta não está na direita e nem na esquerda, não depende de chefes de Estado e muito menos de chefetes. O valor a ser resgatado pode ser buscado na própria história, se somos nós que construímos e somos responsáveis pela nossa conduta, é por meio dela, da conduta de milhões de pessoas, de milhares de iniciativas e ações, de exemplos, de compromisso com a liberdade que vem expressa e garantida por meio do engajamento, não a liberdade vazia que vem expressa em leis e constituições. E isso porque há nações que exibem liberdade nas bandeiras, mas oprimem na realidade. 

Um exemplo de coragem, busca de liberdade, de simplesmente ser reconhecido como pessoa em sua integridade física, mental e de direito, foi o amplo movimento dos negros nos EUA desde o século 18 até recentemente, décadas de 80 e 90 do século passado. Submetidos ao mais cruel apartheid, em zonas das cidades, em transporte público, nos banheiros, nos cinemas. Sim, apenas nesse exemplo, o dos cinemas no sul, na Luisiana, Flórida, Mississipi, havia duas cabines para a compra de ingresso na nascente indústria cinematográfica que encantava e atraia, depois, era preciso subir um, dois, três, quatro andares, com forte cheiro de urina, para finalmente se instalarem no último andar e degustar o espetáculo.

Esse caso é narrado por Isabel Wilkerson em The Warmth of Other Suns (O Calor de outros Sóis), a história da migração dos negros do sul opressor para o norte libertador.  


Segregados em sua educação, perseguidos, torturados e mortos, há incríveis biografias dos que se realizaram e puderam, com liberdade, viver, criar suas famílias e ir em busca da realização pessoal. Liberdade para desenvolver suas potencialidades, coragem para enfrentar o medo, o castigo físico, a humilhação.

Isso sim pode nos resgatar, ir em busca de realização, com coragem e independência, especialmente no momento histórico atual em que títeres mandam e desmandam, em que chefes de Estado se perdem em vociferações, não se sabe mais em quem confiar.

Há que confiar não neles e sim na capacidade humana de lutar, repito, com coragem e independência. 

domingo, 20 de julho de 2025

O governo dos sábios

Ética e política deveriam caminhar juntas, não é o que se vê em nenhum dos atuais governantes, como ficou evidente com a guerra comercial, ideológica, de poder, de influência, de desgaste, de terra arrasada.

Vaidade, apego ao poder, arrogância, uma sociedade dividida, com extremos que se opõem, com prejuízo econômico, sem ter onde buscar apoio, sem poder tocar os pés no chão. A justiça se acoberta com soberba, seus atos e decisões interpretam a lei de acordo com a conveniência política, a proteção jurídica se transforma em perseguição jurídica, a desconfiança se espalha, as cabeças funcionam movidas pela cegueira a que o partidarismo conduz. 

O equilíbrio, a justa medida, a franqueza, os argumentos de nada valem. Esclarecer pontos essenciais para tomar decisão, justificar seus atos à luz da razão, medir as consequências, nada disso importa. A manutenção no poder, custe o que custar, se o preço for encarcerar, se o preço for abandonar a sociedade como navio à deriva, não importa.

O imperador Marco Aurélio, governou com sabedoria, justiça, e com o reconhecimento de que "o mais poderoso dos homens é feito de carne e osso". Há que se perguntar qual é o valor das coisas, a que afinal elas se reduzem?


Marco Aurélio, Imperador romano (121-180)

Dizer a verdade era para os filósofos estoicos tanto uma ética como uma técnica, por meio desse dizer o sujeito se torna senhor de si mesmo, franco, aberto, esse franco-falar protege contra a adulação, contra a sedução pelos elogios, o embevecimento pelo poder. Foucault em seus cursos no Collège de France se mostra um admirador da ética estoica. O sujeito ético é todo aquele que chega a um estágio de autonomia, quer dizer, responsável exclusivo pelo que diz e pelo que faz, ele/a diz a verdade e age de acordo com o que diz, essa é a base ética para governar a si e aos outros. Mas, onde estão hoje essas pessoas, quem seriam elas, como dar voz e espaço para esse tipo de compromisso, se o espaço político e social está dominado pelo desvario e mesmo pelo ódio mútuo?! 

O adorno se tornou vestimenta, o valor ético se tornou moeda de troca, o argumento se tornou estratégia de convencimento, sem nenhum pudor, o discurso de compromisso se tornou mistificador, enganador. Enfeita-se, provoca-se, incita-se, usa-se camuflagem. Autoridades se valem de sua interpretação da lei que aplicam conforme seu projeto pessoal, nenhum compromisso com o bem geral.

Muito difícil não haver apego ao discurso salvador, ao apelo do líder carismático. Ensinamentos da história são ignorados, a crença na pessoa e não no que o  governante deveria representar em termos de proposta, leva a todos de roldão para o precipício.

Quem nos resgatará? Onde está o público esclarecido?


domingo, 29 de junho de 2025

A velhice

  Prefiro chamar de "velhice" e não de "terceira idade" pois essa expressão soa mais como um eufemismo com conotação médica, de vida saudável, bailes, excursões, dominó na praça. Velhice é muito mais do que distração, é reinvenção, nova visão de si, do alto e do todo. Não é sinônimo de fenecimento, decadência. Representa o reconhecimento do que se foi e do que se é, leva a novos e surpreendentes projeto e realizações.

A idade é propícia para perguntas, por que fiz ou deixei de fazer, onde falhei e onde fui bem-sucedido/a, essas avaliações dão à vida novos sentidos. É como se nos tornássemos personagens para nós mesmos.

Nem todos têm a ventura de se saberem presentes, de agarrarem o tempo, de se situarem. Alguma doença, falta de recursos, falta de perspectiva são empecilhos. Desistem de viver, se acomodam em uma cadeira, fixam o olhar e se abandonam. Não houve chance de mudarem o curso em direção ao sol, à poesia do mundo, às revelações, às descobertas não necessariamente do grandioso, pois o grandioso pode ser encontrado no banal.

A todos aqueles que têm a ventura de se saberem presentes, de agarrarem o tempo, de se situarem, a todos os que na velhice possuem a clareza de espírito, a capacidade de caminhar, de contemplar e ver sentido em detalhes ou no vasto céu, de sair do círculo fechado do eu, esses conseguem sorver o privilégio de ter atingido a fase final.

O que cada um deixará, legará como herança, não em bens necessariamente, será mais precioso se com suas visões, valores e experiências; estas perduram, certamente o olhar dos que ficaram pousará na foto que servirá como lembrança não com dor, mas com alento, inspiração, uma saudade que vibra.

Mirar para o passado, para o que a pessoa experimentou, leva a avaliar ou a reavaliar o que causou sofrimento e pode ser transformado em compreensão, certo acontecimento não terá sido assim tão grave e nem tão espetacular. O passado é posto em seu devido lugar, e esse é um dos benefícios mais preciosos da velhice

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Vincent Van Gogh morreu aos 37 anos, impossível saber em que pessoa ele teria se tornado ao envelhecer. Seus quadros, entretanto, bastam para nós, como as pinturas com o tema dos girassóis. Foram várias com o tema. Pode-se ler o movimento chamado "heliotropismo" como metáfora da vida. Nos direcionamos para o sol e nos fecharemos com o cair da noite. 



Para uma análise completa do simbolismo do girassol na pintura, ver The cryptic symbolism of Van Gogh's Sunflowers, in: BBC, 26.06.2025.

                    

sábado, 21 de junho de 2025

O papel do conceito em Filosofia

 Conceituar, muito mais do que explanar, idealizar ou intuir, é extrair o essencial, o elementar, o cerne, o necessário para ser compreendido e comunicado. Esse trabalho conceitual do filósofo, o distingue do papel do cientista, do doutrinador, do ideólogo, do político, do técnico.

O filósofo não precisa comprovar, usar tabelas, fazer experiência, aderir a um partido ou ideologia, nem pretende impor opinião, nem chegar a resultado prático algum.

Como entender, então, o papel da Filosofia?

Afirmar que ela é o mais alto dos saberes é pretencioso e falso, aquele que se proclama como sábio, ignora que é impossível tudo saber, lição socrática. O filósofo é um interrogador, um perscrutador, ele tem os olhos abertos para o real e para o ideal, percorre o caminho do conhecimento, mas, conhecimento do quê?

De que todas as coisas são, que sua existência pode ser formulada, dita, expressa, interrogada. A abstração filosófica assemelha-se à extração da harmonia que o poeta intui, assemelha-se ao deslumbre da presença e da ausência captados pela palavra, ele interroga, situa, expõe, analisa e abstrai.

A História de Filosofia não é a de um desfile de pensadores incompatíveis entre si, seria contraditório e absurdo afirmar que um, apenas um deles, ou certa escola é "verdadeiro/a". Cada pensador, cada contribuição filosófica faz sentido, descortina um conjunto de ideias e conceitos; há que acolher, compreender, ou criticar sem que isso implique a rejeição dos demais filósofos e sistemas.

A preguiça intelectual é a maior inimiga do saber filosófico. Sugestão: comece com perguntas, tais como, "o que podemos esperar?"; "qual o sentido da existência?"; "O que é absurdo?" e muitas outras questões que intriguem, que despertem o/a filósofo/filósofa que há em você.

Se a filosofia mudar algo na cabeça das pessoas, isso já é um grande feito, disse humildemente Foucault. Com razão, o pensamento filosófico é uma espécie de escudo protetor contra os difamadores, os vaidosos, os abusadores, os justiceiros, os egoístas, os senhores da verdade, os doutrinadores... A lista é longa, você leitor/a pode acrescentar o que as pessoas deveriam mudar em cabeças empedernidas. E como? Com informação fidedigna, hoje mais do que nunca!


A disseminação de fakenews dá o que pensar ...

quarta-feira, 11 de junho de 2025

A intolerância

"Fui instruído a matar pessoas até que todos se convertam ao Islã", palavras de um guerrilheiro talibã. Em 2021 a guerra no Afeganistão acabou, os americanos voltaram para casa, e recomeçou o sofrimento da população sob o regime do Talibã. 

No período anterior, a única prefeita em todo o país, Zarifa Ghafari, assumiu a luta em Maidan Wardak pela educação das meninas, proibida pelo regime; ela própria saía de casa às escondidas para completar seus estudos. No cargo, sempre cercada por homens, seu motorista a conduzia de Cabul até a cidade de Maidan, diariamente, enfrentando no caminho grupos armados de talibãs. Acusada de imoralidade, ameaçada constantemente, ela lutou pela liberdade de expressão no âmbito do Islã.


Zarifa Ghafari


Armados, os talibãs impõem a lei da Sharia pura, cortar a mão de ladrões, apedrejamento de mulheres até que não mais cometam fornicação. Deus diz para matar os infiéis sem hesitação, como foi feito em 1999 em um estádio de futebol, cena que ficou na memória de Zarifa. Vestida com burca azul, uma mulher é fuzilada em meio ao silêncio, apenas o ruído do tiro e do corpo que tomba.

Zarifa considera a educação uma libertação, precisou enfrentar até seu pai para ir à universidade. Seu trabalho foi reconhecido pela ONU, homenageada com o prêmio "Mulher de Coragem". O próprio pai acabou assassinado na frente de casa como vingança contra ela. Melhor morrer, diz ela, do que casar com um talibã. Uma bomba explodiu em escola feminina em Cabul, para onde Zarifa foi transferida. 

Após 2021, com retorno do Talibã ao poder, houve fuga em massa, aeroportos cheios, pessoas correndo atrás de aviões que eram escalados para sair do país. A própria Zarifa se refugiou na Alemanha, "agora não tenho nada", disse ela. Mulheres marcharam pelos seus direitos, mas o regime autoritário e implacável prevaleceu, a promessa das escolas para as meninas não se cumpriu, há fome, pobreza, vício, empresas abandonaram o país.

Zarifa prossegue sua luta, o Afeganistão é um país pobre, tiranizado, e, como ela diz, o povo afegão foi condenado a viver no inferno.

Com suas mãos e pés queimados e retorcidos, Zarifa aparece com luva em algumas cenas do documentário, em outras os dedos cheios de cicatrizes ficam evidentes. O que teria acontecido? Permanece o mistério.

Em nome de divindade se cometem atrocidades. Impedidos de olhar os outros, com o sectarismo entranhado em sua cultura, é como se houvesse dois reinos separados, um o dos homens, outro o das mulheres. Quem fez essa observação foi Ruth Pfau, mencionada neste blog, a respeito do Paquistão.

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Obs.: Disponível na Netflix o documentário "Em suas mãos" sobre Zarifa. Como reforço vale ver a história verídica da fuga de uma mulher mantida em cativeiro em aldeia do Paquistão em "O Diplomata" (2025).

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Papa Leão XIV, um agostiniano.

 Robert Francis Prevost, agora Papa Leão XIV, proclamou-se um agostiniano. O que isso implica?

Papa Francisco dedicou-se à causa dos pobres e oprimidos, sua inspiração foi São Francisco, todos são irmãos, a caridade é fundamental. Na base de sua ação e pensamento não havia uma linha filosófica, ao contrário de Leão XIV que se declarou um agostiniano, quer dizer, seguidor das lições teológicas e filosóficas de Santo Agostinho (354-430). A inspiração da doutrina agostiniana é a luz interior.

 

Símbolos de escuta e acolhida, Leão XIV.

No diário "Confissões" Agostinho expos sua vida pregressa de prazeres e dissipações, perdoou-se desses pecados da juventude e converteu-se à doutrina cristã. Estudou Filosofia, inspirado por Cícero, filósofo estoico, prometeu a si mesmo buscar a sabedoria e conquistá-la. Note-se que ele se propôs a uma missão, não encontrou a fé e a sabedoria prontas.


Santo Agostinho, a luz interior

Foi professor de retórica até os 28 anos, teve um filho que morreu jovem, a amante seguiu seu caminho; Agostinho rompeu com seu passado, prosseguiu como professor em Roma, depois Milão. Sua conversão ao cristianismo se deveu ao exemplo de Paulo de Tarso (São Paulo) que encontrou a fé em uma súbita revelação. Para Santo Agostinho, razão e fé se combinam, e essa correspondência ilumina a vida, dá a ela sentido, numa busca interior, na análise de seu íntimo e nele encontrar a graça de Deus, a luz da alma.

Enquanto um tomista parte de provas da existência de Deus, usa portanto a razão que faz a ligação entre causa e efeito, o agostiniano experimenta, usufrui sem precisar recorrer a provas, apenas pela relação com seu espírito, com sua vontade nesse mundo criado por Deus a partir do nada. Nesse sentido Deus não é qualificado como sábio e todo poderoso, por exemplo, pois essas qualificações são nossas, humanas, e Deus é inefável, eterno.

Como entender que há o mal no mundo? Tudo o que existe, existe em estado de incompletude, inacabado. Os homens, dotados de livre arbítrio são inteiramente responsáveis pelos seus atos: praticar o bem ou não, é uma escolha. Daí a necessidade de cultivar e aperfeiçoar a boa vontade, cuja perda é o maior dos males. Ser justo, adequar-se à boa vontade, esse é o maior dos bens.

A inspiração agostiniana do novo papa, Leão XIV, sugere um retorno à fé interior, conduz à conciliação, às realizações pessoais, em suma, à boa vontade. A luz aponta o caminho, mas as escolhas são humanas, falham. 

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Dominados como estamos pela tecnologia, com amplo uso da inteligência artificial, esse voltar-se para dentro de si não deixa de ser inspirador.

domingo, 25 de maio de 2025

A perfeição e a imperfeição

 Perfeição pode ser entendida como pleno acabamento, sem brechas, sem fissuras, completo, não é preciso acrescentar e nem retirar nada. Imperfeição é associada com falha, defeito, imprecisão, mal acabamento.

O conceito de perfeição na filosofia antiga remete a um mundo ideal, o das ideias eternas, que são modelo para tudo o que existe neste nosso mundo, ele próprio, imperfeito. 

Para o cristianismo somos todos imperfeitos, em pecado original, que não se apaga, pecado herdado de Adão e Eva, somos "os degredados filhos de Eva", marcados, em falta. A alma submetida ao corpo sofre com os percalços deste.

Na arte a perfeição encontra um território privilegiado, com vários exemplos desde a estatutária grega, passando pelo modelo do corpo com as medidas exatas de Michelângelo, sua estátua de David, enorme, impressionante vitorioso na luta contra o gigante Golias. O Moisés e a Pietà ilustram a perfeição retirada da pedra. Mais adiante, entre outros, Vermeer, o holandês da pintura exata, quase fotográfica muito antes da invenção da fotografia, seria outro exemplar de perfeição estética.



A rendeira - Vermeer (1632-1675)

A perfeição é obra humana, construções que seguem parâmetros matemáticos, como nos templos, as abóbodas das catedrais, engenharia perfeita, sustentação quase que milagrosa. A expressão "perfeito" é usada para expressar essa exatidão.

Entretanto, ainda na arte, que dizer dos impressionistas? Cabe o adjetivo "perfeito"? Essa que é uma das escolas mais admiradas, mais fruídas, não retrata e sim impressiona, daí o adjetivo "impressionismo". A sensação estética não vem de perfeição alguma, a "imperfeição" de um nenúfar, traços, pinceladas, cor, e pronto, lá está todo um jardim, uma paisagem, um rosto, uma cena. Seria o "perfeito imperfeito"?!

Desde os impressionistas a noção de perfeição não se aplica à arte, a incompletude se apresenta para que os olhos vejam o que na tela não está "pronto" nem nunca vai ficar.

Onde buscar então a perfeição? No ideal moral, na moral religiosa? Tanto a religião judaica, como a cristã e a mais recente, que data de apenas 600 anos, o islamismo, proclamam que a humanidade está em falta, em pecado, precisando de socorro, de redenção.

Restaria ouvir as esferas celestes, penetrar na harmonia do todo, no equilíbrio universal, no eterno movimento, ali, talvez apenas ali, longe das atribulações humanas se encontraria a perfeição.

Cá na terra, ver e entender com o coração e não com a razão pode ser um caminho para a almejada perfeição, aquela da paz interior. 


segunda-feira, 19 de maio de 2025

Nós, cidadãos de segunda classe

O direito à cidadania é universal nas democracias ocidentais, desde a Declaração dos Direitos (Bill of Rights) da Constituição norte-americana, que data de 1791, protege os direitos individuais, limita o poder do governo federal, garante liberdade de expressão, religião, imprensa, assembleias e o direito de fazer demandas, petições. Em 1789, a Revolução Francesa assegurou o direito à propriedade, segurança e resistência à opressão, fundamentando um estado liberal e constitucional.

 Nossa constituição, chamada de "cidadã", prevê o direito universal à cidadania, a igualdade perante a lei, a legitimidade da representação, direito à saúde e educação.

Enfim, a base das democracias liberais é a igualdade do direito à cidadania. Somos todos os brasileiros, igualmente cidadãos, sem que haja nenhuma necessidade de taxar como uns sendo mais e melhores do que outros. Trata-se de um princípio a ser seguido, principalmente pelos governantes. 

Em nosso desprestigiado e sofrido país, acaba-se por descobrir que o princípio acima não vale. Senão vejamos:

A cada dia, a cada nova viagem, alguém, em geral o próprio Presidente precisa socorrer a esposa devido a declarações dela que são inapropriadas, deslizam para o puro e simples anedótico, defendem o indefensável, quebram protocolos diante de chefes de Estado. 



Quebra de protocolo, a falta de noção da "primeira-dama"

A Advocacia Geral da União (AGU) é chamada em sua defesa, o que é inconstitucional, Janja deveria contratar um advogado particular para defendê-la. Ela não tem cargo algum, mas age como prima dona, poderosa, irresponsável, correndo risco para si e para a imagem do Brasil diante, por exemplo, de Xi Jinping, ditador chinês, que deveria, segundo o entendimento da primeira dama, censurar o Tik Tok. Ora, essa plataforma é chinesa, o que implicaria que o governo deveria censurar para atender reclamos de Janja! O poder subiu à cabeça e fez parceria com a total falta de compostura. É mais do que sabido que tudo na China passa por censura, aquela absoluta e que interessa apenas encobrir o que acontece lá. Liberdade de expressão em ditaduras?! Xi Jinping deve ter ficado pasmo, ou talvez rindo, algo nada difícil para um chefe de Estado cujo poder é incontestável.

O desejo de censurar, o projeto de censurar as redes sociais não esmoreceu no governo Lula. Afinal, somos cidadãos de segunda categoria, sim, pois a primeira categoria cabe à primeira dama, justamente, "primeira". "Ela não é uma cidadã de segunda classe, entende mais de direito digital do que eu, e resolveu falar" declarou Lula a respeito do episódio em que ela pleiteava censura ao Tik Tok. Segundo Lula, Janja pode fazer o que quiser, como ele já declarou.

Assim, no juízo arrevesado, destituído de qualquer respeito aos cidadãos brasileiros, declara que, então, todos nós somos de segunda classe, ou talvez de 5a categoria, exatamente como foram tratados os aposentados do INSS. Assaltar a folha de pagamento sem deixar rastros, confiar que não seriam descobertos e se descobertos não seriam punidos, extorquir virou rotina.


segunda-feira, 21 de abril de 2025

Onde liberdade tem um valor incomum.

 Meninos com metralhadoras, meninas obrigadas à exclusiva tarefa da tecelagem, proibidas de frequentar a escola. Esse cenário é atual, no Afeganistão com seu povo oprimido, que passa das mãos de um regime para outro, que sofreu com uma guerra sem sentido, cruel para ambos os lados, o exército americano foi retirado, o caos só aumentou sob o Talibã.

As questões éticas, os fundamentos da cultura ocidental, as raízes da liberdade de ação, de credo e de representação política, instauradas desde há séculos na democracia ateniense, sofreram revezes, mas  foram restaurados na Inglaterra liberal, na França com o iluminismo, praticados por ampla maioria dos países desde há mais de dois séculos. Como é possível que nações avancem e outras populações vivam sob regime de terror, perseguição, violência em lutas tribais? Ditaduras cultuadas como legítimas calam seus opositores, há pobreza e fome, doenças curáveis grassam grupos e famílias.


Ruth Pfau


Ruth Pfau, personagem pouco conhecida, foi médica e freira que se dedicou à tarefa missionária nas décadas de 70 até os primeiros anos do século XXI, no Paquistão. Os relatos em sua autobiografia chocam, e ao mesmo tempo dão esperança, devido à sua luta por recursos destinados pelos organismos de saúde, por doações, pela ajuda dos médicos sem fronteira. A luta particular da freira-médica é contra a lepra, sim, lepra que grassava entre a população pobre do Paquistão. Certa região, Ranikot, sofria há três anos sem chuva, estradas empoeiradas, quando havia estradas, sua peregrinação era ir de casa em casa, verificando a situação de crianças que perdiam mãos, pés, de seus pais vivendo em barracas, com fome e sede. A atividade principal, o pastoreio de cabras. Ela narra que nos anos 80, houve a visita de uma equipe de TV da Alemanha, trabalharam e viveram juntos algum tempo, seus equipamentos conduzidos no lombo de burros, único modo de se transportar, mas que à época já rareava nessas montanhas pedregosas, onde dormiam no chão. Algum tempo depois Ruth e seus auxiliares viram a reportagem na televisão, com o título: "O que eu ganho é liberdade". Liberdade repete Ruth no livro "Das Herz hat seine Gründe" (O coração tem suas razões), foi a resposta que os pastores de cabra de Ranikot deram à pergunta: o que mantém vocês neste mundo perdido, seco e pedregoso? Eles disseram: "Liberdade".

A médica-freira se perguntou: o que fazemos nós neste vale perdido, seco, há duas semanas compartilhando a pobreza extrema na cabana deste pastor? Ela reponde igualmente para si mesma: "Liberdade". Sua escolha foi livre, sua missão compensa, a lepra acabou por ser controlada, ainda que não a pobreza.

Aceitar seu destino, abraçar sua causa em duas perspectivas inteiramente opostas: meninas a tecer tapetes e meninos que carregam uma metralhadora Kalashnikov, como dever, por imposição, sem escolha. Aceitar seu destino, abraçar sua causa, com escolha, livremente, mesmo em situação de fome, seca, miséria e doença. Essa é a que vale.