quarta-feira, 11 de junho de 2025

A intolerância

"Fui instruído a matar pessoas até que todos se convertam ao Islã", palavras de um guerrilheiro talibã. Em 2021 a guerra no Afeganistão acabou, os americanos voltaram para casa, e recomeçou o sofrimento da população sob o regime do Talibã. 

No período anterior, a única prefeita em todo o país, Zarifa Ghafari, assumiu a luta em Maidan Wardak pela educação das meninas, proibida pelo regime; ela própria saía de casa às escondidas para completar seus estudos. No cargo, sempre cercada por homens, seu motorista a conduzia de Cabul até a cidade de Maidan, diariamente, enfrentando no caminho grupos armados de talibãs. Acusada de imoralidade, ameaçada constantemente, ela lutou pela liberdade de expressão no âmbito do Islã.


Zarifa Ghafari


Armados, os talibãs impõem a lei da Sharia pura, cortar a mão de ladrões, apedrejamento de mulheres até que não mais cometam fornicação. Deus diz para matar os infiéis sem hesitação, como foi feito em 1999 em um estádio de futebol, cena que ficou na memória de Zarifa. Vestida com burca azul, uma mulher é fuzilada em meio ao silêncio, apenas o ruído do tiro e do corpo que tomba.

Zarifa considera a educação uma libertação, precisou enfrentar até seu pai para ir à universidade. Seu trabalho foi reconhecido pela ONU, homenageada com o prêmio "Mulher de Coragem". O próprio pai acabou assassinado na frente de casa como vingança contra ela. Melhor morrer, diz ela, do que casar com um talibã. Uma bomba explodiu em escola feminina em Cabul, para onde Zarifa foi transferida. 

Após 2021, com retorno do Talibã ao poder, houve fuga em massa, aeroportos cheios, pessoas correndo atrás de aviões que eram escalados para sair do país. A própria Zarifa se refugiou na Alemanha, "agora não tenho nada", disse ela. Mulheres marcharam pelos seus direitos, mas o regime autoritário e implacável prevaleceu, a promessa das escolas para as meninas não se cumpriu, há fome, pobreza, vício, empresas abandonaram o país.

Zarifa prossegue sua luta, o Afeganistão é um país pobre, tiranizado, e, como ela diz, o povo afegão foi condenado a viver no inferno.

Com suas mãos e pés queimados e retorcidos, Zarifa aparece com luva em algumas cenas do documentário, em outras os dedos cheios de cicatrizes ficam evidentes. O que teria acontecido? Permanece o mistério.

Em nome de divindade se cometem atrocidades. Impedidos de olhar os outros, com o sectarismo entranhado em sua cultura, é como se houvesse dois reinos separados, um o dos homens, outro o das mulheres. Quem fez essa observação foi Ruth Pfau, mencionada neste blog, a respeito do Paquistão.

***

Obs.: Disponível na Netflix o documentário "Em suas mãos" sobre Zarifa. Como reforço vale ver a história verídica da fuga de uma mulher mantida em cativeiro em aldeia do Paquistão em "O Diplomata" (2025).

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Papa Leão XIV, um agostiniano.

 Robert Francis Prevost, agora Papa Leão XIV, proclamou-se um agostiniano. O que isso implica?

Papa Francisco dedicou-se à causa dos pobres e oprimidos, sua inspiração foi São Francisco, todos são irmãos, a caridade é fundamental. Na base de sua ação e pensamento não havia uma linha filosófica, ao contrário de Leão XIV que se declarou um agostiniano, quer dizer, seguidor das lições teológicas e filosóficas de Santo Agostinho (354-430). A inspiração da doutrina agostiniana é a luz interior.

 

Símbolos de escuta e acolhida, Leão XIV.

No diário "Confissões" Agostinho expos sua vida pregressa de prazeres e dissipações, perdoou-se desses pecados da juventude e converteu-se à doutrina cristã. Estudou Filosofia, inspirado por Cícero, filósofo estoico, prometeu a si mesmo buscar a sabedoria e conquistá-la. Note-se que ele se propôs a uma missão, não encontrou a fé e a sabedoria prontas.


Santo Agostinho, a luz interior

Foi professor de retórica até os 28 anos, teve um filho que morreu jovem, a amante seguiu seu caminho; Agostinho rompeu com seu passado, prosseguiu como professor em Roma, depois Milão. Sua conversão ao cristianismo se deveu ao exemplo de Paulo de Tarso (São Paulo) que encontrou a fé em uma súbita revelação. Para Santo Agostinho, razão e fé se combinam, e essa correspondência ilumina a vida, dá a ela sentido, numa busca interior, na análise de seu íntimo e nele encontrar a graça de Deus, a luz da alma.

Enquanto um tomista parte de provas da existência de Deus, usa portanto a razão que faz a ligação entre causa e efeito, o agostiniano experimenta, usufrui sem precisar recorrer a provas, apenas pela relação com seu espírito, com sua vontade nesse mundo criado por Deus a partir do nada. Nesse sentido Deus não é qualificado como sábio e todo poderoso, por exemplo, pois essas qualificações são nossas, humanas, e Deus é inefável, eterno.

Como entender que há o mal no mundo? Tudo o que existe, existe em estado de incompletude, inacabado. Os homens, dotados de livre arbítrio são inteiramente responsáveis pelos seus atos: praticar o bem ou não, é uma escolha. Daí a necessidade de cultivar e aperfeiçoar a boa vontade, cuja perda é o maior dos males. Ser justo, adequar-se à boa vontade, esse é o maior dos bens.

A inspiração agostiniana do novo papa, Leão XIV, sugere um retorno à fé interior, conduz à conciliação, às realizações pessoais, em suma, à boa vontade. A luz aponta o caminho, mas as escolhas são humanas, falham. 

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Dominados como estamos pela tecnologia, com amplo uso da inteligência artificial, esse voltar-se para dentro de si não deixa de ser inspirador.

domingo, 25 de maio de 2025

A perfeição e a imperfeição

 Perfeição pode ser entendida como pleno acabamento, sem brechas, sem fissuras, completo, não é preciso acrescentar e nem retirar nada. Imperfeição é associada com falha, defeito, imprecisão, mal acabamento.

O conceito de perfeição na filosofia antiga remete a um mundo ideal, o das ideias eternas, que são modelo para tudo o que existe neste nosso mundo, ele próprio, imperfeito. 

Para o cristianismo somos todos imperfeitos, em pecado original, que não se apaga, pecado herdado de Adão e Eva, somos "os degredados filhos de Eva", marcados, em falta. A alma submetida ao corpo sofre com os percalços deste.

Na arte a perfeição encontra um território privilegiado, com vários exemplos desde a estatutária grega, passando pelo modelo do corpo com as medidas exatas de Michelângelo, sua estátua de David, enorme, impressionante vitorioso na luta contra o gigante Golias. O Moisés e a Pietà ilustram a perfeição retirada da pedra. Mais adiante, entre outros, Vermeer, o holandês da pintura exata, quase fotográfica muito antes da invenção da fotografia, seria outro exemplar de perfeição estética.



A rendeira - Vermeer (1632-1675)

A perfeição é obra humana, construções que seguem parâmetros matemáticos, como nos templos, as abóbodas das catedrais, engenharia perfeita, sustentação quase que milagrosa. A expressão "perfeito" é usada para expressar essa exatidão.

Entretanto, ainda na arte, que dizer dos impressionistas? Cabe o adjetivo "perfeito"? Essa que é uma das escolas mais admiradas, mais fruídas, não retrata e sim impressiona, daí o adjetivo "impressionismo". A sensação estética não vem de perfeição alguma, a "imperfeição" de um nenúfar, traços, pinceladas, cor, e pronto, lá está todo um jardim, uma paisagem, um rosto, uma cena. Seria o "perfeito imperfeito"?!

Desde os impressionistas a noção de perfeição não se aplica à arte, a incompletude se apresenta para que os olhos vejam o que na tela não está "pronto" nem nunca vai ficar.

Onde buscar então a perfeição? No ideal moral, na moral religiosa? Tanto a religião judaica, como a cristã e a mais recente, que data de apenas 600 anos, o islamismo, proclamam que a humanidade está em falta, em pecado, precisando de socorro, de redenção.

Restaria ouvir as esferas celestes, penetrar na harmonia do todo, no equilíbrio universal, no eterno movimento, ali, talvez apenas ali, longe das atribulações humanas se encontraria a perfeição.

Cá na terra, ver e entender com o coração e não com a razão pode ser um caminho para a almejada perfeição, aquela da paz interior. 


segunda-feira, 19 de maio de 2025

Nós, cidadãos de segunda classe

O direito à cidadania é universal nas democracias ocidentais, desde a Declaração dos Direitos (Bill of Rights) da Constituição norte-americana, que data de 1791, protege os direitos individuais, limita o poder do governo federal, garante liberdade de expressão, religião, imprensa, assembleias e o direito de fazer demandas, petições. Em 1789, a Revolução Francesa assegurou o direito à propriedade, segurança e resistência à opressão, fundamentando um estado liberal e constitucional.

 Nossa constituição, chamada de "cidadã", prevê o direito universal à cidadania, a igualdade perante a lei, a legitimidade da representação, direito à saúde e educação.

Enfim, a base das democracias liberais é a igualdade do direito à cidadania. Somos todos os brasileiros, igualmente cidadãos, sem que haja nenhuma necessidade de taxar como uns sendo mais e melhores do que outros. Trata-se de um princípio a ser seguido, principalmente pelos governantes. 

Em nosso desprestigiado e sofrido país, acaba-se por descobrir que o princípio acima não vale. Senão vejamos:

A cada dia, a cada nova viagem, alguém, em geral o próprio Presidente precisa socorrer a esposa devido a declarações dela que são inapropriadas, deslizam para o puro e simples anedótico, defendem o indefensável, quebram protocolos diante de chefes de Estado. 



Quebra de protocolo, a falta de noção da "primeira-dama"

A Advocacia Geral da União (AGU) é chamada em sua defesa, o que é inconstitucional, Janja deveria contratar um advogado particular para defendê-la. Ela não tem cargo algum, mas age como prima dona, poderosa, irresponsável, correndo risco para si e para a imagem do Brasil diante, por exemplo, de Xi Jinping, ditador chinês, que deveria, segundo o entendimento da primeira dama, censurar o Tik Tok. Ora, essa plataforma é chinesa, o que implicaria que o governo deveria censurar para atender reclamos de Janja! O poder subiu à cabeça e fez parceria com a total falta de compostura. É mais do que sabido que tudo na China passa por censura, aquela absoluta e que interessa apenas encobrir o que acontece lá. Liberdade de expressão em ditaduras?! Xi Jinping deve ter ficado pasmo, ou talvez rindo, algo nada difícil para um chefe de Estado cujo poder é incontestável.

O desejo de censurar, o projeto de censurar as redes sociais não esmoreceu no governo Lula. Afinal, somos cidadãos de segunda categoria, sim, pois a primeira categoria cabe à primeira dama, justamente, "primeira". "Ela não é uma cidadã de segunda classe, entende mais de direito digital do que eu, e resolveu falar" declarou Lula a respeito do episódio em que ela pleiteava censura ao Tik Tok. Segundo Lula, Janja pode fazer o que quiser, como ele já declarou.

Assim, no juízo arrevesado, destituído de qualquer respeito aos cidadãos brasileiros, declara que, então, todos nós somos de segunda classe, ou talvez de 5a categoria, exatamente como foram tratados os aposentados do INSS. Assaltar a folha de pagamento sem deixar rastros, confiar que não seriam descobertos e se descobertos não seriam punidos, extorquir virou rotina.


segunda-feira, 21 de abril de 2025

Onde liberdade tem um valor incomum.

 Meninos com metralhadoras, meninas obrigadas à exclusiva tarefa da tecelagem, proibidas de frequentar a escola. Esse cenário é atual, no Afeganistão com seu povo oprimido, que passa das mãos de um regime para outro, que sofreu com uma guerra sem sentido, cruel para ambos os lados, o exército americano foi retirado, o caos só aumentou sob o Talibã.

As questões éticas, os fundamentos da cultura ocidental, as raízes da liberdade de ação, de credo e de representação política, instauradas desde há séculos na democracia ateniense, sofreram revezes, mas  foram restaurados na Inglaterra liberal, na França com o iluminismo, praticados por ampla maioria dos países desde há mais de dois séculos. Como é possível que nações avancem e outras populações vivam sob regime de terror, perseguição, violência em lutas tribais? Ditaduras cultuadas como legítimas calam seus opositores, há pobreza e fome, doenças curáveis grassam grupos e famílias.


Ruth Pfau


Ruth Pfau, personagem pouco conhecida, foi médica e freira que se dedicou à tarefa missionária nas décadas de 70 até os primeiros anos do século XXI, no Paquistão. Os relatos em sua autobiografia chocam, e ao mesmo tempo dão esperança, devido à sua luta por recursos destinados pelos organismos de saúde, por doações, pela ajuda dos médicos sem fronteira. A luta particular da freira-médica é contra a lepra, sim, lepra que grassava entre a população pobre do Paquistão. Certa região, Ranikot, sofria há três anos sem chuva, estradas empoeiradas, quando havia estradas, sua peregrinação era ir de casa em casa, verificando a situação de crianças que perdiam mãos, pés, de seus pais vivendo em barracas, com fome e sede. A atividade principal, o pastoreio de cabras. Ela narra que nos anos 80, houve a visita de uma equipe de TV da Alemanha, trabalharam e viveram juntos algum tempo, seus equipamentos conduzidos no lombo de burros, único modo de se transportar, mas que à época já rareava nessas montanhas pedregosas, onde dormiam no chão. Algum tempo depois Ruth e seus auxiliares viram a reportagem na televisão, com o título: "O que eu ganho é liberdade". Liberdade repete Ruth no livro "Das Herz hat seine Gründe" (O coração tem suas razões), foi a resposta que os pastores de cabra de Ranikot deram à pergunta: o que mantém vocês neste mundo perdido, seco e pedregoso? Eles disseram: "Liberdade".

A médica-freira se perguntou: o que fazemos nós neste vale perdido, seco, há duas semanas compartilhando a pobreza extrema na cabana deste pastor? Ela reponde igualmente para si mesma: "Liberdade". Sua escolha foi livre, sua missão compensa, a lepra acabou por ser controlada, ainda que não a pobreza.

Aceitar seu destino, abraçar sua causa em duas perspectivas inteiramente opostas: meninas a tecer tapetes e meninos que carregam uma metralhadora Kalashnikov, como dever, por imposição, sem escolha. Aceitar seu destino, abraçar sua causa, com escolha, livremente, mesmo em situação de fome, seca, miséria e doença. Essa é a que vale.

domingo, 13 de abril de 2025

Alguém pode explicar o significado de "racismo climático"?

 Desde há muito tempo se discute o Ensino Médio, a reforma que o tornaria eficiente, atrativo, com preparação para o ingresso no Ensino Superior, como formação integral de cidadãos aptos para participação na sociedade, especialmente no mundo do trabalho.

Uma vez mais a interferência justamente do Conselho Nacional de Educação, dá provas de que ajustar o ensino aos movimentos identitários e de valorização das diferenças, contra as representações machistas e eurocêntricas, entre outros objetivos, é mais relevante do que o reforço no aprendizado de disciplinas fundamentais para a formação, para o que se chama, ainda de "educação". Educação compreende habilitação profissional juntamente com a formação pessoal e intelectual, com valores, liberdade de pensamento, espírito crítico, criatividade, capacidade de inovar, de empreender. O mercado de trabalho não é um "bicho papão". A  própria educação é formadora, proporciona experiências diversas, um aluno assim consciente se torna capaz de evitar sectarismo, intolerância, desrespeito


Pauta aprovada por 10 dos 11 conselheiros


Por isso não é absolutamente necessário incluir as tais pautas elaboradas pela resolução do Conselho, por exemplo, a "perspectiva feminina", "superação das dinâmicas que conectam as desigualdades interseccionais relacionadas às posições de classe, gênero e raça, aos marcadores  sociais da deficiência e aos processos de segregação territorial e racismo climático (grifo meu)". Como seria a "construção do conhecimento filosófico" a partir "de grupos historicamente marginalizados"?! Desconheço a contribuição filosófica desses grupos, desconheço quais seriam tais grupos.

Conceitos da novilíngua que assola vários setores da sociedade, que inverte valores, que obriga à adoção de políticas que redundam em efeito contrário ao pretendido, acabam por marcar território onde não deveria haver território algum, que particularizam quando a educação deve primar pela universalização, que pretendem incluir, mas que segregam

Isso tudo ocorre em um momento histórico, social e político que vai em direção à uniformização, ao "siga o chefe", ao conformismo explícito nas redes sociais de ser consumidor, de acatar, de cultuar ídolos, de incentivar o corpo, sua forma, a mulher captada em uma imagem idealizada, magra, rosto liso, lábios proeminentes, seios e lábios mais ainda. Esse deveria ser um tema relevante a ser discutido nas escolas, mas não...

Escolas precárias, professores mal pagos e com carência em sua formação, essa sim deveria ser a pauta do Conselho Nacional de Educação.

terça-feira, 8 de abril de 2025

O que é melhor, ler o livro ou ver o filme?

 Poucas vezes uma adaptação de livro fez tanto sucesso como "Ainda estou aqui". Vi o filme, depois li a obra de Marcelo Rubens Paiva. Evidente que são duas linguagens, duas artes em tudo diferentes, cada qual com seu impacto, cada qual com sua mensagem.

Se tivesse que decidir diria: primeiro veja o filme, depois leia o livro. A notoriedade, as premiações tornaram Walter Salles e Fernanda Torres pessoas incensadas pela mídia, torcidas se formaram no país antes chamado de "país do futebol", alvoroço geral, que um dia termina e vai parar na TV paga. O livro, cuja primeira edição tem dez anos (2015), no país de pouca leitura, acabou sendo reimpresso treze vezes.

Uma casa, uma mãe, seus cinco filhos, a prisão do pai em 1971, ex-deputado cassado em 64, a prisão por doze dias da mãe, incomunicável, sem saber a razão de seu sequestro. Libertada, enfrenta o entra e sai de vigias na casa fechada e guardada. Onde antes havia uma família realizada e unida, o olhar resignado de Eunice na cena da confeitaria dirigido às pessoas na mesa em frente em contraste com a dela agora desfeita. Essa é a história que Salles apresenta: a luta de Eunice capaz de enfrentar e exigir a verdade acerca do paradeiro do marido, uma luta que só teve fim com o fim da ditadura,  finalmente o atestado de óbito em mãos. 

O livro: o escritor Marcelo Rubens Paiva nada tem de pretencioso, nem de estritamente literário, mas a escrita é honesta, sem firulas, um memorialista que não só denuncia crime e tortura, ele analisa a relação com a mãe, sincero, desapaixonado, mira ora um lado ora outro da história, se indigna por que razões o pai não foi cauteloso e levou toda a família para o exílio como outros fizeram? 


O escritor Marcelo Rubens Paiva


O Doi-Codi era implacável, ser fichado, preso, torturado e morto, o corpo desaparecido, a narrativa forjada de que o pai fugira. Quem era o inimigo, para perseguir quem? Os comunistas. Quem eram os comunistas? Marcelo responde: "um bando de golpistas e fascistas" (atentar para os adjetivos...). O que levou o pai à prisão? Cartas que duas mulheres trouxeram após visitas a parentes exilados no Chile, cartas escondidas no corpo, e num envelope o número do telefone da casa de Rubens Paiva. Foi levado preso, torturado durante 24 horas, pedindo socorro e seus medicamentos. Uma carta... E tudo isso para salvar o país dos comunistas...

Marcelo tinha apenas 11 anos, foi levado para um sítio. É da perspectiva dele que Eunice se mostra distante, viúva aos 42 anos, teve que trabalhar, o filho lembra dela lendo, lendo sem parar, obcecada pela magreza, formou-se em direito, viveu da profissão, defensora da causa indígena, colaboradora com a política preservacionista do Banco Mundial, tudo isso o escritor aprova: "ninguém queria uma mãe num luto eterno". Pelo menos o atestado de óbito! Este veio em 1996.

Há páginas contundentes contra a violência da tortura, com ditadura longa e cruel. O mais tocante é a experiência dos filhos anos mais tarde com a doença incurável de Eunice, o mal de Alzheimer. Como pode alguém atuante, leitora, advogada de sucesso, perder tudo isso? A descrição no livro é detalhada, pungente, a decadência mental, a confusão, apenas alguns lapsos em poucos momentos, o breve sorriso quando o neto, filho de Marcelo, é posto em seu colo. Um breve sorriso. O sentido do título do filme/livro se esclarece, mesmo no estágio III (são quatro estágios) da doença, a mãe ainda está aqui. Ainda que por instantes...



quarta-feira, 26 de março de 2025

O sublime e a sublimação

 O nascer da lua cheia, o pôr do sol, o murmúrio das águas de um regato, os pingos de água da chuva que permanecem dependurados nas folhas, o sorriso de uma criança, tudo isso nos parece sublime, nos impressiona, nos inspira.

Mas é no território da arte que o sublime se destaca como qualidade inerente, que transmite plenitude, a arte é florescência da vida para Schopenhauer (1788-1860), manifestação da Vontade, sendo esta a pulsão presente em todos os seres, a necessidade de se expandir, em tudo o que se mostra, em tudo o que vive, desde a força mais íntima do ser humano, até o mais minúsculo animal, há Vontade, uma engrenagem geral de todos os seres. 

As formas de expressão do sublime são a música, a melodia que conecta do começo ao fim, por meio dela a consciência se esclarece, sendo a linguagem da música universal. O artista frui o belo, a arte consola, o artista entusiasmado esquece a penúria da vida, que para Schopenhauer é sofrimento, como se fosse um receptáculo sem fundo, o desejo satisfeito é imediatamente esquecido por outro desejo, por outro impulso, sem fim. "A ausência de satisfação é sofrimento, a ausência de novo desejo é o tédio". Assim, é na arte que é possível buscar satisfação e refúgio, um desdobramento da Vontade. A poesia, a arquitetura, a pintura, elevam, o sentimento do sublime preenche, e sublime é o objeto que causa essa sensação de plenitude.


Santa Cecília, a beleza humana, visão que arrebata.


Enquanto para Schopenhauer o sublime satisfaz, preenche, para Freud a sublimação, que deriva de Erhabenheit, tal como para o filósofo, para Freud tem outra conotação, muito diferente, poderíamos dizer que lembra contenção, substituição. Sublimação é a dedicação ferrenha a alguma atividade que aparentemente nada tem a ver com a libido, com o impulso sexual, com o instinto. O prazer sexual é canalizado por uma atividade que proporciona prazer, em tudo diversa do objeto de desejo, da pulsão. O que não implica desvalorizar esse diversionismo, pois muito poucos, segundo o psicanalista, têm êxito no desvio dos impulsos para finalidades culturais mais elevadas. 

Tanto para Schopenhauer como para Freud, a pulsão é determinante, para o primeiro a necessidade de se expandir sendo o sublime o mais alto grau; para o segundo, o desejo, o instinto e a busca de prazer, podem se dar até mesmo sublimados. A diferença está na relação do sublime com o enlevo da arte, para o filósofo. Mas a insatisfação é a pedra de toque para ambos.

De que matéria, afinal, somos feitos?

sexta-feira, 14 de março de 2025

A nação do baixo calão.

 Discursos célebres enaltecem o papel da democracia, da justiça e da legalidade. Péricles, século IV a. C., destacou a importância da liberdade, do mérito, da obediência às leis, que se deve cultivar o refinamento sem extravagância, sensibilidade sem ostentação, riqueza sem precisar exibi-la, opinar sobre todos os temas, as discussões devem ser preliminares para a ação prudente e sábia.

Abraham Lincoln, em meio à guerra civil, homenageia os mortos, que sua morte não foi em vão, que a nação venha a gerar uma nova Liberdade e que o governo do povo, pelo povo e para o povo jamais desaparecerá da face da terra.

Martin Luther King, em 1963, clamou para o sonho de que a condição do negro fosse a mesma dos brancos, obediência à constituição que garante os direitos, liberdade, a "busca da felicidade", a justiça racial.


Quanta diferença, que enorme contraste com as falas, as agressões, os vitupérios e as respostas torpes, estarrecedoras, que dão uma surra na língua portuguesa, como se lê em rápida pesquisa no Face. De um lado e de outro adjetivos para se referir ao atual e ao ex-presidente, afirmações vergonhosas, inadmissíveis para a moral e a inteligência.

O Presidente da República resolve responder a um malandro desbocado, filho de ex-presidente, e cai na sua própria armadilha. O presidente entende que beleza nas mulheres é fundamental? O poeta, Vinícius de  Moraes pediu licença às feias quando clamou que a beleza é fundamental. Licença poética que não cabe na boca de um mandatário. Pois bem, nas baixarias desse rapaz, desponta um termo que não vou repetir, e que não só ofende, mas também expõe o machismo decadente de uma geração. O próprio pai desse moleque em vários pronunciamentos descambava para as bravatas e asneiras.

O desdobramento é ainda mais patético, com a ampla divulgação e rastreando dessas "discussões", ficamos informados de que o presidente do Senado, sentindo-se ofendido com referências torpes veiculadas por certo senador, responde com a ameaça de destituí-lo. Com medo, ato contínuo o senador se retrata. 

Quem diria que a escolha de certa mulher para um ministério, sua beleza ou feiura rendessem tanto!

A grandeza de uma nação medida pelo baixo calão.

domingo, 9 de março de 2025

Em busca da autenticidade

 "Autêntico" vem do grego, a junção de autos (a si mesmo, para si mesmo), com hentes, aquele que faz. Autêntica seria, então, a pessoa que age com seus próprios meios, com seus próprios recursos, sem apelar para outrem. Autenticidade significa que algo é próprio, apropriado, que se sustenta sem estímulo externo, independente, capaz de autogestão.

O contrário seria então algo copiado, imitado, dependente, que não se sustenta.  Seria alguém carente da opinião alheia, que necessita de aprovação, que segue a onda e a moda, inseguro, volúvel.

Há quem sustente que a autenticidade inexiste, pois tudo se transformou ou se transforma a todo momento, que tudo é cópia, simulacro, que "nada se cria, tudo se copia", que ninguém inventa nada do zero, que tudo está à disposição, pronto para o uso imediato, ou com arranjos aqui e ali, tentativas canhestras de renovação, de reinvenção.

Ao contrário, na arte a autenticidade é território privilegiado. As artes plásticas, a música, o cinema, carregam mensagem, requerem interpretação. A arte produz, tem efeito estético e transformador, abre para novos insights e perspectivas. Duvidar da autenticidade de uma obra de arte evidencia que para ela a autenticidade é essencial.

Outro território próprio à autenticidade é o dos valores. Não o valor utilitário e sim o valor de uma pessoa, de seus projetos, de sua ação. A pessoa autêntica não precisa de subterfúgios, nem de justificar suas ações o tempo todo para os outros com desculpas, muito menos para si mesmo. A pessoa autêntica não dissimula, ela se expõe integralmente para seu próprio julgamento, para sua própria avaliação, sem camuflar.

A autenticidade pode ser buscada inclusive em certos modos de produzir que dispensam o carimbo de uma marca. Produtos autênticos: o pulôver tricotado para presente, não possui etiqueta; o bolo de polvilho na receita antiga, não vem embalado; legumes, frutas e verduras direto do produtor, sabor local é seu único carimbo.

Entrega do leite, a marca? A da confiança.

A autenticidade rareia, há uma busca desenfreada pela exposição de si, pela idolatria, imitar é o padrão. No supermercado importa marca, preço e qualidade; a autenticidade seria a origem rastreada? 

Um outro gênero de inquietude nasce do cuidado que o homem emprega em fingir e em jamais se deixar ver tal como é: é o caso de muitas pessoas, cuja vida é só hipocrisia e comédia. (...) Que segurança pode oferecer uma existência passada sob uma máscara? Que encanto, ao contrário, na espontânea simplicidade de um caráter que desconhece os ornamentos artificiais e que despreza disfarçar-se! (Sêneca, filósofo estoico, condenado por Nero ao suicídio, ano 65).



domingo, 23 de fevereiro de 2025

Educar não é doutrinar

No diálogo de Platão, "Alcibíades I", Alcibíades aconselha-se com Sócrates a fim de se tornar um bom governante de Atenas, preparar-se para entrar na vida pública, ele é ambicioso, e precisa, segundo o mestre estar preparado, Alcibíades ainda desconhece a noção de justiça. O primeiro passo é conhecer a si mesmo, saber que nada sabe, estar aberto à dúvida, ao diálogo. Merecer a liberdade cabe aos virtuosos, com a ajuda do mestre ele aprenderá o que é ser livre. Se quer cozinhar, precisa aprender, se quer navegar, precisa aprender, é preciso confiança, argumentação, apresentar questões, nunca impor uma solução, uma única visão, capacitar para as interpretações.

A mais nefasta ignorância é a "dos que não sabem mas pensam que sabem" (Platão, in: Alceabíades I).

Cuidar de algo ou de alguém é melhorar, aperfeiçoar, conduzir crianças e jovens para a autonomia, para o autoconhecimento. A educação do jovem para a prática da justiça, sabedoria, compreensão do todo, ser livres, se opõe à doutrinação, pois esta escraviza, é unilateral, deforma, desvirtua.

Vejamos um exemplo recente em "As contribuições teórico-metodológicas de Lênin e Gramsci para a educação contemporânea" (in Revista Percursos, 2024), considerados "pensadores atuais para pensar a crise do capitalismo, lutar contra as forças reacionárias e conservadoras que visam sustentar o sistema imperialista". Lênin morreu em 1924, Gramsci em 1937, ainda assim "atuais"? O ensino deve ser "geral e politécnico", prossegue o autor, "educar para o trabalho, para uma sociedade dirigida pelo proletariado, a cultura de massas, ensinar técnicas de trabalho modernas, ensinar os alunos a se organizarem para transformar e dirigir a sociedade", lições leninistas.


Discurso de Lênin, Revolução 1917


Lições de Gramsci: trabalho, revolução, contra a repressão da classe dirigente, de modo dialético, criativo, formação científico-profissional e sócio política do intelectual orgânico, criação de um "terreno ideológico", reformar consciências, conduzir a sociedade não só pela força, mas pela direção intelectual e moral, baseada na mais moderna filosofia da práxis. Segundo o próprio autor do artigo, o imperialismo é culpado pela migração, ambiente (sic), violência. A educação das classes trabalhadoras deve levar à "fundação de um novo Estado", "construir uma consciência política", "romper com o capitalismo e seus derivados (o trabalho explorado, a devassa do planeta, as desigualdades e injustiças, o racismo, o machismo, o imperialismo e todas as formas de dominação) construir uma sociedade integral civil e política".

Pausa para respirar. Em resumo, seria educar soldadinhos para que eles possam substituir o capitalismo e o imperialismo por uma sociedade integral que livrará o mundo de todos os malefícios acima citados. O ensino técnico sepultará o capitalismo e o imperialismo.

Então, no lugar do capitalismo e do imperialismo surgiria uma nova classe dirigente? Seria a dos trabalhadores, os empregadores seriam varridos do mapa? Nessa sociedade dirigida pelo proletariado, haveria apenas dirigidos, sujeitados ao trabalho, ao ensino técnico? Por quem? Proletários mandando em proletários, modernamente todos eles capacitados para o trabalho...

Note-se que não há nenhuma menção à liberdade, à ascensão social, nem à situação de países que supostamente se livraram do capitalismo, nem que o comunismo tenha sido e seja cruel, responsável por ditaduras, pela opressão, pela censura. 

Esse tipo de educação ideológica que vê dois inimigos, capitalismo e imperialismo, leva à abominação de todo um sistema global sem oferecer uma crítica efetiva e coerente. Analisar a realidade, apontar sim injustiças, mostrar que os discursos salvadores só servem para os próprios locutores, que há valores, como o de ser livres e autônomos, que há um sistema produtivo, inovador, um irrefreável avanço tecnológico, e que um dos benefícios da modernidade é a possibilidade de comunicação, de circulação de ideias, de responsabilidade social.  Nas sociedades democráticas há debate e confronto de ideias, é possível e salutar denunciar todo tipo de opressão, em especial no caso da educação, a implantação de ensino para "reformar consciências", com palavras de ordem fáceis de digerir retiradas das ideologias de Lênin e Gramsci. 




quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

A incansável alma humana

 Desde os primeiros balbucios da fala, o uso de toscos instrumentos, grupamentos em aldeias, houve uma evolução impressionante até a linguagem computacional, a exploração espacial e mísseis teleguiados. Milênios da história humana se passaram. 

Contrastes há até hoje: tecelões e artistas produzem ao lado de fábricas automatizadas, o carrinho de mão serve ao mesmo tempo que automóveis conduzidos por robôs fazem sua estreia. Há vilas e aldeias nas quais casas não precisam de grades e alarme, mas a segurança é cada vez mais reforçada nas cidades, nos prédios, nas ruas vigiadas por câmeras. Há neste instante um salvamento heroico e um covarde ataque a uma escola. O saber é transmitido por meio de livros, das cátedras, um poeta inspira, enquanto um grupo se arrisca em prédios para pichar as paredes com garatujas indecifráveis. O caminhão recolhe o lixo, garis se equilibram na traseira, um deles sorri para um passante, na outra ponta entulhos são despejados em terrenos, da janela de um luxuoso automóvel um papel de embrulho é jogado fora, na praia a família deixa para trás sacos plásticos. Um fiel se ajoelha e reza, faz seus pedidos, no mesmo templo um projétil é lançado porque aquele não é o seu deus. No mesmo globo, a diarreia mata, na outra ponta a ciência busca a cura para o câncer.  Em um campinho meninos se reúnem para uma pelada, no outro lado a disputa pelo Superbowl, com ingressos a 40 mil reais. 



Alçar voos, engrandecer, enveredar por caminhos, subir montanhas, estabelecer contatos, navegar, explorar novos povos e civilizações, a aventura humana não mais tem o privilégio do pioneirismo. Cada pedaço desse planeta já foi ou está sendo mapeado. Isso não resultou em respeito e nem direito de um povo de se autodeterminar e nem de se estabelecer. O mundo é um só, mas sem nenhuma organização forte o suficiente, respeitável, com legítima autoridade, com força e poder para se fazer ouvir e tomar decisões acertadas, equânimes. Pelo contrário, a política internacional segue por caminhos tortos, perigosos, irresponsáveis. Desde primórdios houve guerra de conquista, dominar, invadir, restabelecer fronteiras, conquistar, essa história se prolonga até a atualidade.

Morro carioca dominado pelo tráfico, zumbis no centro de São Paulo, o usuário de cocaína na casa noturna refinada de alguma cidade onde a riqueza e a ostentação são a regra: duas pontas que no fim se unem e que são comandadas pelos produtores e pelos chefes do narcotráfico. A matéria prima do fentanil, por exemplo, droga que alivia a dor mas vicia e mata, é produzida na China, traficada para os Estados Unidos. Produtos que beneficiam, produtos que sabidamente viciam, importa apenas vender, fazer preço, exportar. Dane-se o uso. 

Não vamos aprender nunca?! A estrutura mental oscila entre Eros e Thanatos, entre o prazer e a dor, entre a realização e a destruição, entre a sanidade e a loucura, entre a vida e a morte. Esses são os parâmetros mais gerais e indestrutíveis da alma humana. Em busca de solução e do sábio meio termo, pressionados por ambição, poder e glória, prosseguimos, bilhões de vidas formigando num planeta solitário. Pode ser que a sabedoria um dia seja a prática entre políticos, chefes, mandatários; pode ser que líderes religiosos conduzam crentes por caminhos de mútua compreensão; pode ser que as bases da educação beneficiem crianças e jovens no mundo todo; pode ser que a arte, a música e o lazer sejam compartilhados por muitos; pode ser que o fanatismo seja desmascarado; pode ser que esquerda e direita não sejam a única opção.

Pode ser, a alma humana é incansável. 


sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

O mito do herói

 As epopeias narram os feitos heroicos, Hércules, Teseu que venceu o Minotauro, Rômulo, Édipo. Há aqueles cujos feitos são históricos, como Moisés abandonado quando bebê em um cesto no Nilo, foi salvo, quando adulto conduziu seu povo para instaurar o monoteísmo.

Se hoje mencionamos feitos de um herói, salvo situações de salvamento, de luta em guerras de defesa, o que sobressai é muito mais o mito do que o heroísmo. Ao redor do mundo há dezenas de dirigentes que pretendem se perpetuar como mitos, quer dizer, fabulosos, capazes de se manter décadas no poder por meios tornados por eles próprios legítimos, no mais das vezes à revelia dos governados. Kim Jong-un recentemente mandou 11 mil soldados para ajudar o outro ditador, Vladimir Putin na guerra contra a Ucrânia, 4 mil morreram ou ficaram feridos; Lukashenko que se perpetua no poder na Bielo Rússia "silenciando" opositores; dezenas de mandantes que oprimem populações na África; eleições são fraudadas na Venezuela pelo chefete Maduro. Enfim, parece que as condições atuais na política mundial estão e permanecerão trágicas.



11 mil soldados norte-coreanos obrigados a lutar na guerra de Putin contra a Ucrânia.

Acresce que esses mandatários se consideram mitos, acima da lei, poderosos, oprimir seu povo não os abala. Mas, e se alguém renomear tal tipo de poder, renomear uma guerra de conquista como "ridícula"?

"Pare com esta guerra ridícula", a condenação feita por Trump a Putin reduziu toda e qualquer chance de considerar expansão de território da mãe pátria Rússia, saudosa da União Soviética, como conquista,  foi qualificada como teatro, circo, com a dimensão da piada. Ninguém ainda tinha pensado nisso, Putin como palhaço, ridículo, o oposto do herói mítico. Mas perigoso. Cômico se não fosse trágico, como se costuma dizer. Ditadores sanguinários se atribuem o poder de praticar injustiça e crueldade, expandir seu território sem considerar a soberania de um povo, a legitimidade do poder, opositores são envenenados. Seria "mito" no sentido de mistificador e não no sentido heroico.

Pior,  esses mandatários recebem apoio, tapinhas nas costas; sem levar em conta a situação histórica, prevalece o véu do autoengano, atêm-se a certo partido, a certa ideologia, o seu lado é sempre o do bem, o único verdadeiro. Resultados: divisão profunda, recusa de raciocinar, de acolher a realidade e suas implicações, indagar razões, apoiar-se em argumentos, trabalhar à luz dos fatos. 

Dirigentes ao redor do mundo perderam o passo, há atraso, insistência nos erros, censura, cegueira para os acontecimentos, seus juízos saem de sua própria cabeça, sem base alguma em análises, ocultam, prejulgam, seu olhar é sempre enviesado, torto. 

Sem deuses e heróis, sem epopeias para narrar, restam poucas conquistas, e sobram sofrimento, perseguição, aposta na desinformação conscientemente praticada,  mortandade em nome de um profeta, ilusão, acusações mútuas, ressentimento, ódio.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Nietzsche e o sentido de "Deus está morto"

 Uma das frases mais famosas  da História da Filosofia é a de Nietzsche em seu anúncio da morte de Deus. O que isso significa, por que escandaliza e faz dele um autor "perigoso"?

Há que compreender as razões, o filósofo se considera o "primeiro imoralista", que dizer, destruidor de ídolos a marteladas, como o deus Dionísio, deus do devir, das transformações, inspirador da arte. A recusa de um ideal e pôr em seu lugar o real, livrar-se do sufoco da fé que cega, caminhar por si, com suas próprias forças, superar as dificuldades por meio de sua vontade, esses são os meios para a vida, uma luta em que se conta com as condições terrenas, com a capacidade de reagir. Isso Nietzsche experimentou com o sofrimento por doença, dores de cabeça terríveis, mas ele reagiu e assim se tornou mais forte. 

Fraqueza seria renunciar ao que podemos contar aqui, com as condições que se nos apresentam, as condições da terra, o que terreno fortalece, ele põe a vida em lugar do mundo espiritualizado, da cultura banalizada.

Os espíritos livres são doadores de sentido, isso torna compreensível o slogan "Deus está morto", que implica na recusa de desejar alguém que mande, "um Deus, um príncipe, uma classe, um médico, um confessor, um dogma, uma consciência partidária", afirmou Nietzsche. É um adoecimento da vontade esse "tu deves", o fanatismo que hipnotiza os fracos e inseguros, o sentimento de culpa, o medo, o temor da condenação da alma. Essas são convicções, não ocorre às pessoas livrar-se desses sacrifícios para resgatar sua liberdade e autoconfiança. Quanto menor for a vida vibrante e atual, maior a necessidade de Deus salvador, das promessas da vida eterna. 

Para ele, a morte de Deus representa o maior dos acontecimentos, a morte das crenças e da moral europeia, essa morte seria uma nova aurora, caminhos abertos para navegar e enfrentar todo perigo, sem a tortura do mal e do pecado, quando o que se tem é a natureza humana, em que há sofrimento. A não aceitação do sofrimento produz o desejo de redenção, de salvação, resultados do orgulho humano, de o próprio homem se considerar um Deus.

Como seria então para Nietzsche uma vida vibrante e "terrestre"? 

A busca do autocontrole, do silêncio e solidão, como ele próprio gostava, caminhar, contemplar do alto de montanhas . O mesmo acontece com o homem comum quando busca a paz de espírito, a nobreza da aceitação, do "é assim mesmo", a necessidade da elevação de si, a compreensão de que suportar o mundo real não é uma condenação que precisaria da redenção à vida eterna para a alma imortal. Importam as condições do mundo real. 

 Nietzsche apreciava caminhar no silêncio e solidão de Sils Maria, pequena cidade Suíça. 


Para quem pensa é mesmo indelicado supor Deus, um obstáculo para todos aqueles que não veem sentido algum na salvação; faz sentido alimentar a vida, dançar, alegrar-se, dar valor ao corpo, aos desejos, livrar-se do sentimento de culpa, os desejos não são impuros.

***

Ser "espírito livre", deixar o rebanho, parece cada vez mais complicado. Em nossos dias vemos hordas e mais hordas a gritar e a ameaçar, pessoas que veneram não só ídolos, mas o ideólogo do momento, o partido do momento, o retorno ao poder, o guru da moda. O grande perigo, afirmou Nietzsche, e isso vale inclusive para a atualidade, é quando a religião não opera para educar, disciplinar e passa às mãos obcecadas de tiranos que consideram sua crença como superior, única e suprema verdade. E, em nome de sua crença, perseguem, castigam, oprimem e matam.

sábado, 4 de janeiro de 2025

Reflexão filosófica: características principais

 Há características comuns às várias escolas filosóficas, tais como: apartidarismo; universalismo; análise conceitual; busca do que é essencial; pertencimento a uma escola de pensamento; fundamentação lógica, metafísica ou ontológica; razões para a existência humana; perspectiva ética; relação sujeito/objeto; bases do conhecimento.

A cada época, antiga, medieval, moderna e contemporânea, um ou outro desses temas é privilegiado. Assim a metafísica para os antigos e para os medievais, a teoria do conhecimento para os modernos, a condição da existência e a historicidade para as escolas mais recentes. O que não implica que um filósofo contemporâneo aborde temas metafísicos e ontológicos, nem que um filósofo na antiguidade não tivesse abordado questões políticas, como Platão, por exemplo. A diferença está na base, nos pressupostos. 

Os pressupostos dos filósofos gregos são o cosmo e sua origem, a busca da essência de tudo o que há, o pensamento racional e conceitual, a metafísica do ser, das causas e princípios. A esses temas, a filosofia cristã sobrepôs Deus.

O homem que pensa e conhece, seus limites e fundamentos, é tema dos modernos, como Descartes e Kant. 

A historicidade e finitude são questões contemporâneas, o ser humano em sua concretude e limites, o que há para esperar, ou confrontar; a ação política; a linguagem; a sociedade.

Na relação entre essência e existência, a filosofia clássica privilegia a essência, os mais modernos privilegiam a existência. Essência é o imprescindível, aquilo sem o que algo não é nem vem a ser. O vir a ser, as mudanças se devem ao que a essência contém em si, potencialmente. Não havia noção darwiniana de  transformação na cadeia evolutiva, pois cada ente atualiza apenas sua potencialidade. A capacidade de vir a ser está contida integralmente no próprio ser. A natureza faz brotar o que está em germe, pois do nada, nada pode provir. Os seres são o que são em sua essência, prontos, acabados, e, para os medievais, obras perfeitas do criador.


"Pensador" na versão de Mikhail Nesterov.

A Filosofia não morre enquanto houver um único ser pensante na face da Terra.

Na relação entre essência e existência, a filosofia moderna realça o ser humano pensante, sua existência concreta tem como essência o pensar, o cogito, a razão. Existir é deduzido do pensar, o homem em carne e osso ainda não tinha nascido, como observou Foucault em As Palavras e as Coisas. Ele ainda era sujeito de uma razão pura, sem os esquemas a priori ele não pode aceder às coisas e nem a si mesmo, pois que para tal depende de conceitos, como o de espaço e tempo. O transcendental kantiano pressupõe uma rede para ser e conhecer, e para a ação reta, para a moralidade, o pressuposto são princípios absolutos e necessários, como a noção de dever.

O homem contemporâneo nasceu quando Nietzsche anunciou a morte de Deus, quer dizer, o homem está só, e tem que se haver com sua fraqueza, seus valores inventados, seus limites, e esse foi um caminho que existencialistas e Heidegger seguiram. No outro lado estão as filosofias da historicidade, a concretude se deve às leis de mudança histórica, a base material do homem pode ser igualmente a melhor chance para sua redenção, uma vez que as condições históricas, sendo pelo próprio homem criadas, podem sem igualmente por ele mesmo modificadas, como pensara Marx.

Mas esse homem foi divinizado, essa materialidade virou seu destino, o da revolução salvadora. Há que chamá-lo de volta à terra. Terra de seus condicionantes, a sociedade, a linguagem, a produção, os anseios políticos, ao planeta em crise. Ainda assim a filosofia sobrevive, e la nave va.