O marxismo foi em grande parte responsável pela divulgação da dialética de Hegel como método, como explicação do sentido da história. Os três momentos por que passam a história, o conhecimento e mesmo a natureza em seu desenvolvimento são: tese (ser, afirmação), antítese (não ser, negação) e síntese (vir a ser, superação ou ultrapassagem). Essa espiral crescente e transformadora mostra que não é por acréscimo que há mudança e sim por superação de dois momentos ou movimentos antagônicos reunidos em um terceiro momento em que a totalidade da história muda.
Mas Hegel não se limitou a esse esquema, e, é claro, nunca pretendeu com isso chegar à revolução do proletariado...
O que significa a mudança por contradição?
Que a negação é inseparável das determinações, do ser isso ou aquilo. Para algo ser determinado, isso requer ao mesmo tempo que ele não seja isso ou aquilo. A verdade reside na passagem, no devir. Quer dizer, a marca característica de algo, ser de tal ou tal espécie, implica diferença. Mas se é preciso a diferença, como se conhece tal espécie? Não é pela identidade?
Enquanto Kant resolve o problema pela fixação por meio de conceitos, pelo juízo que afirma, nega, contrapõe, etc., pelo recurso do entendimento às categorias imutáveis, puras a priori da razão, para Hegel isso levaria a um abismo entre o sujeito que representa o mundo e a realidade representada. Haveria dois momentos, o da apercepção do sujeito e o daquilo que ele conhece. Se o em si é incognoscível a consequência é o ceticismo, pois não é possível conferir ou confrontar representação com representado, seria preciso alguém ou algo de fora para "juntar" os dois momentos, os recursos para conhecer e o que é conhecido.
Para Hegel não há essa distância, a realidade em si pode ser apreendida, sensações que se tem e ideias ou conceitos são momentos que não se justapõem e nem se excluem, mas se complementam. Não por força do sujeito com sínteses transcendentais, mas do sujeito em relação permanente com as coisas em recíproca influência e modificação pelo uso da linguagem em proposições nas quais entram categorias e conceitos.
As proposições não são pura síntese, pois foram forjadas pelo próprio movimento histórico que pretendem explicar. Isto é, a história é o espírito humano se manifestando. Conceitos são criados e modificados. Quando se formula um juízo a respeito de algo há um uso, há a responsabilidade por conferir a apropriação ou não desse uso em um contexto. Em suma, há a preocupação pela correção do uso de uma proposição. As coisas são como o juízo afirma que elas são? Podemos conferir se sim ou não.
Como se vê, Hegel não se resume ao "método" dialético.
Se Kant não tivesse feito a mais radical crítica à metafísica (não se pode conhecer o noumeno ou algo em si mesmo e enquanto tal, só os fenômenos, o que se apresenta e como se apresenta ao conhecimento), Hegel não precisaria ter se esforçado tanto para recuperá-la. O em si e o para si não podem se divorciar, do contrário não haveria formas culturais de vida, a vida social e a construção do conhecimento da realidade são formas de o espírito operar sobre as coisas e de estas serem percebidas, ditas e usadas.
Esse duelo de gigantes, Kant X Hegel, é retomado por Habermas. Isso fica para a próxima postagem.
terça-feira, 1 de maio de 2012
sexta-feira, 27 de abril de 2012
Somos autônomos ou autômatos? Um confronto entre Kant e Freud
Todos temos noções de dever e de leis morais, diz Kant na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785). Uma lei moral só tem sentido se valer igualmente para todos, se for universal. As qualidades de caráter, dons naturais, saúde, poder, inclusive a busca da felicidade, tudo isso depende da vontade, da boa vontade. Nossa existência tem um objetivo mais nobre do que a busca da felicidade. Esse objetivo se encontra na razão que conduz a vontade para agir conforme ao dever, desinteressadamente.
Tudo o que fazemos por nossos impulsos e inclinações, amores, desejos não possui valor moral. Agir somente pelo dever é próprio de seres racionais para os quais vale a máxima: a ação deve poder servir como lei universal. Se alguém faz uma falsa promessa, e isso se tornasse válido para todos, a mentira seria regra e as promessas perderiam o sentido. E se ninguém for sincero? Não importa, isso não retira o valor da sinceridade, por exemplo, como necessária para a amizade.
Se alguém joga papel na rua com a justificativa de que nem todos jogam, imagine se esse ato fosse generalizado! A maioria de nossas ações, segundo Kant são movidas pelo egoísmo e pelo amor próprio e não pelo comando do dever, que pode exigir renúncia. É difícil praticar ações morais por puro dever da vontade.
A característica fundamental da vontade é a autonomia, a livre capacidade de escolher sob o comando da razão e não dos impulsos e instintos. O imperativo da ação moral é categórico, i. é, independe de desejos, pois a lei moral trata todos como se fossem fim em si, ou seja, são pessoas. O requisito absoluto é o respeito à dignidade da pessoa humana, sempre. Tratar os outros como um fim e não como um meio. A base da dignidade da pessoa é sua autonomia, as pessoas dão leis a si mesmas e seguem livremente o que estiver de acordo com a autonomia da vontade. Sem liberdade não há moralidade.
Em contraste, Freud mostra que autonomia, autodeterminação e liberdade têm uma quota limitada em nossas ações. O ego, a consciência de si mesmo é uma camada superficial. Por debaixo estão os impulsos, as pulsões e toda uma carga de afetos e emoções guardadas no inconsciente. É como se a luz do dia fechasse essa carga, resistimos em abri-la mesmo porque sentimentos, afetos, mágoas, traumas sofreram um processo de repressão. Isso tudo aflora nos sonhos, no que por vezes dizemos "sem querer", em nossos lapsos de linguagem, em certos gestos automáticos.
O psicanalista puxa o fio da meada, eventualmente chega aos episódios ou ao episódio traumático, que via de regra está ligado à vida sexual infantil. E não há como fugir disso.
Freud teve o mérito de descartar a noção de que transtornos psicológicos seriam inatos. Eles não são inatos, nem hereditários e nem fruto da "degeneração da personalidade", conceitos esses que levavam os problemas mentais e psicológicos para uma área próxima à da condenação moral. No lugar de "você é um degenerado", compreender que há um conflito no indivíduo entre seus desejos e as "aspirações morais e estéticas da própria personalidade". Pois "as aspirações individuais, éticas e outras, eram as forças repressivas" diz Freud. O impulso desejoso seria incompatível com a vida civilizada, com os códigos morais, por isso o ego reprime tais forças, e assim protege sua personalidade de um desprazer. Neuroses vêm daí. A possibilidade de alívio da ansiedade que elas produzem, pode vir da livre associação de ideias que o psicanalista induz. "... o psicanalista se distingue pela rigorosa fé no determinismo da vida mental. Para ele não existe nada insignificativo, arbitrário ou casual nas manifestações psíquicas" (Freud, Cinco lições de psicanálise).
Para Kant somos autônomos, a liberdade da vontade de decidir levando em conta o que vale para todos eleva o homem ao máximo de sua dignidade. Para Freud, valores morais têm o poder de sublimar impulsos, aquele que age por dever seria um obsecado, ou pelo menos, seduzido pelo dever como se esse fosse um prazer.
Qual dessas análises traduz melhor a condição humana? Excluir um ou outro desses pensadores seria uma perda cultural irreparável.
Tudo o que fazemos por nossos impulsos e inclinações, amores, desejos não possui valor moral. Agir somente pelo dever é próprio de seres racionais para os quais vale a máxima: a ação deve poder servir como lei universal. Se alguém faz uma falsa promessa, e isso se tornasse válido para todos, a mentira seria regra e as promessas perderiam o sentido. E se ninguém for sincero? Não importa, isso não retira o valor da sinceridade, por exemplo, como necessária para a amizade.
Se alguém joga papel na rua com a justificativa de que nem todos jogam, imagine se esse ato fosse generalizado! A maioria de nossas ações, segundo Kant são movidas pelo egoísmo e pelo amor próprio e não pelo comando do dever, que pode exigir renúncia. É difícil praticar ações morais por puro dever da vontade.
A característica fundamental da vontade é a autonomia, a livre capacidade de escolher sob o comando da razão e não dos impulsos e instintos. O imperativo da ação moral é categórico, i. é, independe de desejos, pois a lei moral trata todos como se fossem fim em si, ou seja, são pessoas. O requisito absoluto é o respeito à dignidade da pessoa humana, sempre. Tratar os outros como um fim e não como um meio. A base da dignidade da pessoa é sua autonomia, as pessoas dão leis a si mesmas e seguem livremente o que estiver de acordo com a autonomia da vontade. Sem liberdade não há moralidade.
Em contraste, Freud mostra que autonomia, autodeterminação e liberdade têm uma quota limitada em nossas ações. O ego, a consciência de si mesmo é uma camada superficial. Por debaixo estão os impulsos, as pulsões e toda uma carga de afetos e emoções guardadas no inconsciente. É como se a luz do dia fechasse essa carga, resistimos em abri-la mesmo porque sentimentos, afetos, mágoas, traumas sofreram um processo de repressão. Isso tudo aflora nos sonhos, no que por vezes dizemos "sem querer", em nossos lapsos de linguagem, em certos gestos automáticos.
O psicanalista puxa o fio da meada, eventualmente chega aos episódios ou ao episódio traumático, que via de regra está ligado à vida sexual infantil. E não há como fugir disso.
Freud teve o mérito de descartar a noção de que transtornos psicológicos seriam inatos. Eles não são inatos, nem hereditários e nem fruto da "degeneração da personalidade", conceitos esses que levavam os problemas mentais e psicológicos para uma área próxima à da condenação moral. No lugar de "você é um degenerado", compreender que há um conflito no indivíduo entre seus desejos e as "aspirações morais e estéticas da própria personalidade". Pois "as aspirações individuais, éticas e outras, eram as forças repressivas" diz Freud. O impulso desejoso seria incompatível com a vida civilizada, com os códigos morais, por isso o ego reprime tais forças, e assim protege sua personalidade de um desprazer. Neuroses vêm daí. A possibilidade de alívio da ansiedade que elas produzem, pode vir da livre associação de ideias que o psicanalista induz. "... o psicanalista se distingue pela rigorosa fé no determinismo da vida mental. Para ele não existe nada insignificativo, arbitrário ou casual nas manifestações psíquicas" (Freud, Cinco lições de psicanálise).
Para Kant somos autônomos, a liberdade da vontade de decidir levando em conta o que vale para todos eleva o homem ao máximo de sua dignidade. Para Freud, valores morais têm o poder de sublimar impulsos, aquele que age por dever seria um obsecado, ou pelo menos, seduzido pelo dever como se esse fosse um prazer.
Qual dessas análises traduz melhor a condição humana? Excluir um ou outro desses pensadores seria uma perda cultural irreparável.
sábado, 14 de abril de 2012
Sobre os cientistas ateus
Cientistas famosos e conceituados como o biólogo Richard Dawkins, o físico Stephen Hawking e Lawrence Krauss (ver entrevista em Época) se declaram ateus em nome de descobertas e teorias da ciência, e em razão do método científico fornecer provas.
Os argumentos utilizados se baseiam nas evidências acerca da origem da vida em nosso planeta (biologia) e no que até agora a astrofísica tem pesquisado sobre como o universo surgiu. A mais famosa teoria, como todos sabem, é a de uma explosão inicial de energia. E isso do nada.
Ora, na área cultural que as religiões ocupam há milênios, seres superiores ou, no caso do monoteísmo, Deus é a absoluta origem de todas as coisas. Para os gregos não poderia haver criação a partir do nada. Impossível o não ser gerar o ser. Para os cristãos, a geração divina de todas as coisas veio, sim, do nada. A pergunta não é como Deus poderia ter criado tudo do nada, como fazem os cientistas, pois assim usam uma questão científica para "provar" seu ateísmo. Os cristãos não precisam sequer pôr esse tipo de questão, Deus é onipotente e isso basta para aqueles que creem.
Não se pedem provas ou teorias para amparar crenças, a base delas é a fé transmitida pela tradição oral ou textos sagrados.
Quando um cientista faz profissão de fé em uma teoria científica, comete alguns equívocos:
- a ciência exige revisão permanente, todas suas teorias, ainda que sustentadas por cálculos e comprovação por meio de testes e/ou instrumentos, devem permanecer abertas para revisão. A ciência não pode se arvorar em palavra final. Se as teorias forem consideradas verdade final, a primeira teoria considerada científica bastaria e até hoje professores ensinariam a teoria de que tudo se compõe de terra, água, ar, fogo e éter (física aristotélica);
- se a ciência é convincente e seus resultados fantásticos, nem por isso ela ilumina corações e mentes com o conforto espiritual proporcionado pela fé religiosa ou pela crença em Deus;
- estados e nações em que a ciência e as religiões ocupam lugares específicos com funções próprias a cada uma delas, há maior tolerância e ambas são livremente praticadas e respeitadas.
Nada disso justifica, porém, a imposição de certas religiões ou chefes religiosos para que nas escolas em lugar do ensino de ciência (física, biologia em especial) sejam adotadas uma doutrina ou uma crença (criacionismo em lugar do darwinismo, por exemplo).
A separação entre Estado, religião e educação é imprescindível para assegurar a todos os cidadãos, justamente, que eles possam seguir uma crença, se assim desejarem, e aprender, informar-se e formar-se nas diversas e necessárias disciplinas escolares.
Essas reflexões que a abordagem filosófica enseja não são uma condenação do ateísmo. O problema do ateísmo é usá-lo como bandeira político-ideológica de defesa da ciência como saber absoluto. Dessa forma ela, ciência, extrapola suas funções e se assemelha a uma religião. Algo estranho e paradoxal: a fé no ateísmo...
Os argumentos utilizados se baseiam nas evidências acerca da origem da vida em nosso planeta (biologia) e no que até agora a astrofísica tem pesquisado sobre como o universo surgiu. A mais famosa teoria, como todos sabem, é a de uma explosão inicial de energia. E isso do nada.
Ora, na área cultural que as religiões ocupam há milênios, seres superiores ou, no caso do monoteísmo, Deus é a absoluta origem de todas as coisas. Para os gregos não poderia haver criação a partir do nada. Impossível o não ser gerar o ser. Para os cristãos, a geração divina de todas as coisas veio, sim, do nada. A pergunta não é como Deus poderia ter criado tudo do nada, como fazem os cientistas, pois assim usam uma questão científica para "provar" seu ateísmo. Os cristãos não precisam sequer pôr esse tipo de questão, Deus é onipotente e isso basta para aqueles que creem.
Não se pedem provas ou teorias para amparar crenças, a base delas é a fé transmitida pela tradição oral ou textos sagrados.
Quando um cientista faz profissão de fé em uma teoria científica, comete alguns equívocos:
- a ciência exige revisão permanente, todas suas teorias, ainda que sustentadas por cálculos e comprovação por meio de testes e/ou instrumentos, devem permanecer abertas para revisão. A ciência não pode se arvorar em palavra final. Se as teorias forem consideradas verdade final, a primeira teoria considerada científica bastaria e até hoje professores ensinariam a teoria de que tudo se compõe de terra, água, ar, fogo e éter (física aristotélica);
- se a ciência é convincente e seus resultados fantásticos, nem por isso ela ilumina corações e mentes com o conforto espiritual proporcionado pela fé religiosa ou pela crença em Deus;
- estados e nações em que a ciência e as religiões ocupam lugares específicos com funções próprias a cada uma delas, há maior tolerância e ambas são livremente praticadas e respeitadas.
Nada disso justifica, porém, a imposição de certas religiões ou chefes religiosos para que nas escolas em lugar do ensino de ciência (física, biologia em especial) sejam adotadas uma doutrina ou uma crença (criacionismo em lugar do darwinismo, por exemplo).
A separação entre Estado, religião e educação é imprescindível para assegurar a todos os cidadãos, justamente, que eles possam seguir uma crença, se assim desejarem, e aprender, informar-se e formar-se nas diversas e necessárias disciplinas escolares.
Essas reflexões que a abordagem filosófica enseja não são uma condenação do ateísmo. O problema do ateísmo é usá-lo como bandeira político-ideológica de defesa da ciência como saber absoluto. Dessa forma ela, ciência, extrapola suas funções e se assemelha a uma religião. Algo estranho e paradoxal: a fé no ateísmo...
segunda-feira, 9 de abril de 2012
Segurança, prisão e liberdade
O modelo prisional norte-americano vem de longa data. Mais precisamente 1790, estado da Filadélfia. Esse modo exclusivo e cada vez mais aperfeiçoado de punir, desde as menores infrações como beber na rua, ultrapassar limite de velocidade, portar e usar drogas ilícitas, mesmo a denúncia de que bate nos filhos, até o latrocínio e assassinato. Nada fica impune.
A população carcerária nos EUA é a maior do planeta. O orçamento com segurança, fora gastos militares, é gigantesto. Uma briga entre prisioneiros, por exemplo, é captada por câmeras, os envolvidos são julgados, o culpado é punido pelas regras internas com um ano de solitária.
Aeroportos são vigiados, todos os passageiros são "filtrados". Nos locais onde transitam muitas pessoas, o lixo é recolhido para ser examinado.
O preço a pagar para haver segurança, é, portanto, bem alto.
Ao mesmo tempo a democracia se enraizou nas instituições e os cidadãos se consideram livres e responsáveis.
Por que em uma sociedade democrática e liberal a prisão é o tipo quase exclusivo de punição até hoje?
As sociedades de segurança que emergiram com o aumento da produção e da população, instituíram não só um sistema carcerário rígido, como outros meios para assegurar que indivíduos pudessem ser moldados por instrumentos aparentemente não violentos, como analisa Foucault em Vigiar e Punir. O espaço ocupado pelo corpo em escolas, no exército, em hospitais, nas fábricas, desde meados do século 18, permite examinar, vigiar e punir indivíduos, facilmente detectar gestos e comportamentos desviantes da norma, e aplicar corretivos. Assim, todos são induzidos a responder às instruções, às ordens, aos medicamentos, ao aprendizado e rápida e eficazmente operar máquinas.
Enquanto escolas se tornaram também espaço de criação pessoal, os exércitos se sofisticaram por meio da tecnologia, hospitais refinaram métodos de detecção e cura de doenças, fábricas passaram a empregar maquinário que automatiza a produção - as prisões, em contraste, pouco mudaram.
Além da vigilância central, câmeras. Mas o regime prisional como um todo ainda visa observar, regular, recuperar, controlar, corrigir e restringir a ação e o comportamento para obter obediência estrita.
No Brasil, com exceção de prisões de segurança máxima, a situação em que se encontra a maioria dos cárceres é bárbara. Corrupção, violência e o resultado: nem punição, nem correção e nenhuma confiança da sociedade nesse sistema punitivo.
Assim, haver uma relativamente alta segurança, depende de um sistema carcerário bastante sofisticado apoiado por instituições judiciárias e policiais que fazem parte do cotidiano e do imaginário social.
E a inexistência ou a precariedade disso, como no Brasil, resulta em insegurança como permanente ameaça. As pessoas se defendem como podem: cerca elétrica, vigilância privada, vidros escuros e toda uma parfernália para evitar furto, roubo e morte.
Não há saída, não há a possibilidade de segurança com mais liberdade? Como evitar a impunidade e, ao mesmo tempo, cultivar a sociabilidade?
Alguns países encontraram essa saída em mais igualdade de oportunidades e educação, sempre que elas caminham juntas e uma reforça a outra.
Prisão em Nova York: nos EUA há 304 milhões de habitantes e uma população carcerária de 2.3 milhões
A população carcerária nos EUA é a maior do planeta. O orçamento com segurança, fora gastos militares, é gigantesto. Uma briga entre prisioneiros, por exemplo, é captada por câmeras, os envolvidos são julgados, o culpado é punido pelas regras internas com um ano de solitária.
Aeroportos são vigiados, todos os passageiros são "filtrados". Nos locais onde transitam muitas pessoas, o lixo é recolhido para ser examinado.
O preço a pagar para haver segurança, é, portanto, bem alto.
Ao mesmo tempo a democracia se enraizou nas instituições e os cidadãos se consideram livres e responsáveis.
Por que em uma sociedade democrática e liberal a prisão é o tipo quase exclusivo de punição até hoje?
As sociedades de segurança que emergiram com o aumento da produção e da população, instituíram não só um sistema carcerário rígido, como outros meios para assegurar que indivíduos pudessem ser moldados por instrumentos aparentemente não violentos, como analisa Foucault em Vigiar e Punir. O espaço ocupado pelo corpo em escolas, no exército, em hospitais, nas fábricas, desde meados do século 18, permite examinar, vigiar e punir indivíduos, facilmente detectar gestos e comportamentos desviantes da norma, e aplicar corretivos. Assim, todos são induzidos a responder às instruções, às ordens, aos medicamentos, ao aprendizado e rápida e eficazmente operar máquinas.
Enquanto escolas se tornaram também espaço de criação pessoal, os exércitos se sofisticaram por meio da tecnologia, hospitais refinaram métodos de detecção e cura de doenças, fábricas passaram a empregar maquinário que automatiza a produção - as prisões, em contraste, pouco mudaram.
Além da vigilância central, câmeras. Mas o regime prisional como um todo ainda visa observar, regular, recuperar, controlar, corrigir e restringir a ação e o comportamento para obter obediência estrita.
No Brasil, com exceção de prisões de segurança máxima, a situação em que se encontra a maioria dos cárceres é bárbara. Corrupção, violência e o resultado: nem punição, nem correção e nenhuma confiança da sociedade nesse sistema punitivo.
Prisão Central de Porto Alegre
E a inexistência ou a precariedade disso, como no Brasil, resulta em insegurança como permanente ameaça. As pessoas se defendem como podem: cerca elétrica, vigilância privada, vidros escuros e toda uma parfernália para evitar furto, roubo e morte.
Não há saída, não há a possibilidade de segurança com mais liberdade? Como evitar a impunidade e, ao mesmo tempo, cultivar a sociabilidade?
Alguns países encontraram essa saída em mais igualdade de oportunidades e educação, sempre que elas caminham juntas e uma reforça a outra.
terça-feira, 20 de março de 2012
Como se começa a filosofar?
Para filosofar basta fazer certo tipo de indagação: por que? como? quando?
E ir fundo com as questões. Quais são as causas mais essenciais e imprescindíveis de todas as coisas? Como é possível existirem tais coisas, como elas vieram a ser, não é incrível que haja o ser e não o nada? O que determina que um ser tenha as propriedades e características que o distinguem dos demais? Há um tempo, um "quando" responsável pela origem de tudo?
Essas perguntas também são feitas pelas religiões, e recebem respostas definitivas: no começo o caos ou o nada, depois a organização por forças cósmicas ou por Deus como nas crenças monoteístas. Tudo faz sentido, há um destino para todos os seres e em especial para os seres humanos.
A ciência também propõe investigar e procura respostas para o que nos intriga: tempo finito ou infinito, qual é a origem do universo, como a vida começou? Mas, ao contrário da filosofia e da religião, os cientistas não visam conciliar, consolar, dar sentido, apaziguar a existência humana, nossas dúvidas, nossos anseios.
A filosofia, sim. Ela busca pela razão de sermos no mundo, o que nos move, se há um sentido na história da humanidade, o que se pode mudar e o que nos condiciona.
O questionamento filosófico exige dialogar. Exige que nesse diálogo entrem pessoas dispostas a argumentar, a raciocinar, a ouvir as razões do outro, buscar respostas, inclusive com o risco de não encontrá-las, o que não leva a desistir do diálogo. Até mesmo o cético necessita argumentar para expor suas dúvidas.
Mas se o caminho for o da imposição dogmática, o diálogo cessa. Sempre que um dos lados se considera com a plena razão, resta ao outro submeter-se. É a morte da filosofia e o nascimento da intolerância, da violência, da censura.
Sendo assim, por que os próprios filósofos dificultam o acesso a essas indagações com seu vocabulário especializado, com termos e expressões que parecem nem fazer sentido?
Quem ler o prefácio da Crítica da Razão Pura ou o da Fenomenologia do Espírito desiste, a menos que haja um professor para debulhar conceitos e noções, comparar, expor com termos acessíveis o difícil pensamento dos mestres da filosofia.
Aulas de filosofia são exemplos de diálogos em estilo platônico: examinar conceitos revirando-os para que os alunos possam acompanhar o significado, ou seja, seu uso ou usos.
Se, ao final da aula pelo menos alguns alunos chegarem, eles próprios, a novas questões, se eles chegarem a esse ponto: "Como é que eu nunca havia pensado nisso!", a aula foi bem-sucedida.
Mudar algo na cabeça das pessoas, como disse certa vez Foucault, levá-las a pensar novamente o que estava assentado e dado como evidente, isso é filosofar.
Outros filósofos acrescentariam que há também a esperança iluminista de que tais diálogos melhorem nossas relações, ainda primitivas sob muitos aspectos.
E ir fundo com as questões. Quais são as causas mais essenciais e imprescindíveis de todas as coisas? Como é possível existirem tais coisas, como elas vieram a ser, não é incrível que haja o ser e não o nada? O que determina que um ser tenha as propriedades e características que o distinguem dos demais? Há um tempo, um "quando" responsável pela origem de tudo?
Essas perguntas também são feitas pelas religiões, e recebem respostas definitivas: no começo o caos ou o nada, depois a organização por forças cósmicas ou por Deus como nas crenças monoteístas. Tudo faz sentido, há um destino para todos os seres e em especial para os seres humanos.
A ciência também propõe investigar e procura respostas para o que nos intriga: tempo finito ou infinito, qual é a origem do universo, como a vida começou? Mas, ao contrário da filosofia e da religião, os cientistas não visam conciliar, consolar, dar sentido, apaziguar a existência humana, nossas dúvidas, nossos anseios.
A filosofia, sim. Ela busca pela razão de sermos no mundo, o que nos move, se há um sentido na história da humanidade, o que se pode mudar e o que nos condiciona.
O questionamento filosófico exige dialogar. Exige que nesse diálogo entrem pessoas dispostas a argumentar, a raciocinar, a ouvir as razões do outro, buscar respostas, inclusive com o risco de não encontrá-las, o que não leva a desistir do diálogo. Até mesmo o cético necessita argumentar para expor suas dúvidas.
Mas se o caminho for o da imposição dogmática, o diálogo cessa. Sempre que um dos lados se considera com a plena razão, resta ao outro submeter-se. É a morte da filosofia e o nascimento da intolerância, da violência, da censura.
Sendo assim, por que os próprios filósofos dificultam o acesso a essas indagações com seu vocabulário especializado, com termos e expressões que parecem nem fazer sentido?
Quem ler o prefácio da Crítica da Razão Pura ou o da Fenomenologia do Espírito desiste, a menos que haja um professor para debulhar conceitos e noções, comparar, expor com termos acessíveis o difícil pensamento dos mestres da filosofia.
Aulas de filosofia são exemplos de diálogos em estilo platônico: examinar conceitos revirando-os para que os alunos possam acompanhar o significado, ou seja, seu uso ou usos.
Se, ao final da aula pelo menos alguns alunos chegarem, eles próprios, a novas questões, se eles chegarem a esse ponto: "Como é que eu nunca havia pensado nisso!", a aula foi bem-sucedida.
Mudar algo na cabeça das pessoas, como disse certa vez Foucault, levá-las a pensar novamente o que estava assentado e dado como evidente, isso é filosofar.
Outros filósofos acrescentariam que há também a esperança iluminista de que tais diálogos melhorem nossas relações, ainda primitivas sob muitos aspectos.
quinta-feira, 15 de março de 2012
Teoria do Conhecimento e Epistemologia
O que é conhecimento, quais são suas fontes, como é possível assegurar se o conhecimento é confiável, verdadeiro, falível ou não, é disso que se ocupa uma área da Filosofia chamada de "Teoria do Conhecimento".
Para os céticos nada se pode saber com certeza. Platão discorda, pensamos por meio das ideias, ao mesmo tempo elas são o que há para ser conhecido após uma difícil empreitada, que começa com os objetos físicos apreendidos pelos sentidos, que nos enganam, até o mundo superior, inteligível.
Aristóteles considera que o acesso ao real, aos seres individuais é direto; a fonte do conhecimento é a capacidade de perceber e de pensar, e isso não se deve às ideias, que são apenas abstrações. Para conhecer a causa geral de todos os seres é preciso partir da experiência e ir abstraindo até formular juízos sobre a essência e as características das coisas.
Empiristas pensam que a experiência é fundamental, racionalistas como Descartes rejeitam a experiência como fonte: ela pode nos enganar e todo saber só é digno do nome se for indubitável, evidente e claro.O homem é uma coisa pensante dotado de um corpo, pura matéria.
Kant dá um passo definitivo e imprescindível: o conhecimento se estrutura por meio de formas puras, transcendentais sem as quais o mundo sensível permaneceria caótico e inacessível.
A fenomenologia eleva os fenômenos kantianos à condição de essência. Enquanto Kant se detinha na faculdade humana de apreensão ou intuição, dizia que o mundo das coisas em sua própria essência é inacessível, a fenomenologia de Husserl afirma que o conhecimento é das coisas mesmas. O fluxo da consciência que se tem dos fenômenos, das coisas (seja qual for a natureza delas) é próprio da consciência, é imanente a ela e, ao mesmo tempo, há a consciência que tem papel transcendental, o "eu penso" é evidente, tal como para Descartes.
Chama-se "Epistemologia", a indagação sobre o tipo de conhecimento da ciência. Já não é mais um sujeito que conhece realidade a questão central, e sim quais são os meios para construir o edifício da ciência: experiência, testes, observações, instrumental técnico, sínteses sob a forma de leis e grandes teorias.
Entre os epistemólogos se destacam: Wittgenstein (de cuja expressão "edifício da ciência" me apropriei); os filósofos analíticos (como Carnap, para quem o conhecimento científico é o único verificável, portanto, o único confiável); Popper (o critério para o conhecimento científico é a refutação, em contraste com o que é irrefutável como ideologias e credos) e T. Kuhn com a noção de paradigma (apenas a ciência progride e isso se deve aos paradigmas que funcionam como modelos capazes de levantar todo um campo prático e teórico utilizável pelos cientistas em dada época).
Pois bem, em linhas muito gerais é disso que trato em meu último livro "Curso de Teoria do Conhecimento e Epistemologia", resultado de aulas na UFPR e das aulas na PUCPR sobre essas disciplinas. Agradeço aos meus ex-alunos e alunas.
Para os céticos nada se pode saber com certeza. Platão discorda, pensamos por meio das ideias, ao mesmo tempo elas são o que há para ser conhecido após uma difícil empreitada, que começa com os objetos físicos apreendidos pelos sentidos, que nos enganam, até o mundo superior, inteligível.
Aristóteles considera que o acesso ao real, aos seres individuais é direto; a fonte do conhecimento é a capacidade de perceber e de pensar, e isso não se deve às ideias, que são apenas abstrações. Para conhecer a causa geral de todos os seres é preciso partir da experiência e ir abstraindo até formular juízos sobre a essência e as características das coisas.
Empiristas pensam que a experiência é fundamental, racionalistas como Descartes rejeitam a experiência como fonte: ela pode nos enganar e todo saber só é digno do nome se for indubitável, evidente e claro.O homem é uma coisa pensante dotado de um corpo, pura matéria.
Kant dá um passo definitivo e imprescindível: o conhecimento se estrutura por meio de formas puras, transcendentais sem as quais o mundo sensível permaneceria caótico e inacessível.
A fenomenologia eleva os fenômenos kantianos à condição de essência. Enquanto Kant se detinha na faculdade humana de apreensão ou intuição, dizia que o mundo das coisas em sua própria essência é inacessível, a fenomenologia de Husserl afirma que o conhecimento é das coisas mesmas. O fluxo da consciência que se tem dos fenômenos, das coisas (seja qual for a natureza delas) é próprio da consciência, é imanente a ela e, ao mesmo tempo, há a consciência que tem papel transcendental, o "eu penso" é evidente, tal como para Descartes.
Chama-se "Epistemologia", a indagação sobre o tipo de conhecimento da ciência. Já não é mais um sujeito que conhece realidade a questão central, e sim quais são os meios para construir o edifício da ciência: experiência, testes, observações, instrumental técnico, sínteses sob a forma de leis e grandes teorias.
Entre os epistemólogos se destacam: Wittgenstein (de cuja expressão "edifício da ciência" me apropriei); os filósofos analíticos (como Carnap, para quem o conhecimento científico é o único verificável, portanto, o único confiável); Popper (o critério para o conhecimento científico é a refutação, em contraste com o que é irrefutável como ideologias e credos) e T. Kuhn com a noção de paradigma (apenas a ciência progride e isso se deve aos paradigmas que funcionam como modelos capazes de levantar todo um campo prático e teórico utilizável pelos cientistas em dada época).
Pois bem, em linhas muito gerais é disso que trato em meu último livro "Curso de Teoria do Conhecimento e Epistemologia", resultado de aulas na UFPR e das aulas na PUCPR sobre essas disciplinas. Agradeço aos meus ex-alunos e alunas.
quinta-feira, 8 de março de 2012
Tempo cíclico, dialético e o eterno retorno

O que é se opõe ao que não é absolutamente. Algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo. Aliás, o tempo cíclico garante que as coisas permaneçam em sua essência e identidade. Nascer e morrer, geração e corrupção das coisas, faz da vida uma repetição das características das espécies.
A divindade (Zeus) é uma projeção de vícios e virtudes humanos.
Sem contestar o princípio de contradição para os discursos, Hegel (1770-1831) inaugura outra visão de tempo, de história, de natureza e de sociedade. Ele renova a metafísica posta em xeque por Kant ao entender que toda realização humana, seja na arte, na religião ou na filosofia, é obra do espírito, são ideias que movem a história. Essas realizações passam por mudanças. Para Hegel, houve o momento grego, uma cultura de harmonia na cidade-estado, legitimada pela representação do cidadão na pólis. Com o cristianismo houve nova transformação: todos podem pleitear representação mediante sua crença, há uma universalização do conceito de liberdade. E esta se torna plena nos Estados modernos. No início do século 19, após as conquistas napoleônicas, a Alemanha e a Prússia resgatam a representação política e a vida do povo como nação que se realiza em um tipo de moral social.
Hegel na chegada triunfal de Napoleão em Jena
A dialética é a lógica que expõe e que permite essas transformações históricas. Se houvesse simplesmente o ser e o não ser, algo e nada, teríamos duas "naturezas" distintas, fechadas em si mesmas. O ser não poderia determinar nada para o não ser e vice-versa. Mas, supõe Hegel, se olharmos para a história, as culturas e as sociedades, o que se tem é um movimento, um devir, o vir a ser isso ou aquilo.
Todo ser identificável, determinado, o é pelo não ser outro, e não por uma identidade ou essência fixas. Ser e não-ser só são inteligíveis pelo mover-se, pelo transformar-se.
E tudo culmina na plena realização do Espírito Absoluto. Em um céu platônico ou cristão? Não, na história moderna, na liberdade dos cidadãos.
Nietzsche (1844-1900) detona com todos esses conceitos. Não se deve buscar na história nenhum resgate, ela é feita de acontecimentos opacos, não há um Napoleão para encarnar o Estado. O próprio Estado e todas as instituições recebem uma marca, a das necessidades humanas, de troca, de vingança, de negociação. O tempo volta sempre, como em um imenso carrossel. Não há um valor transcendente, acima das lutas que envolvem desde a mesquinharia até a necessidade de poder. Em meio a esse tempo de condicionamentos, não há um absoluto e nem um devir a não ser aquele que serve para apascentar rebanhos, o dos conformistas. Ausência de fé, ausência de metas, de sentido e de valor, esses são os guias do niilista. Mas o niilismo não significa abandono ou renúncia absoluta, o puro não ser, o nada. Niilismo significa ir ao modo como os entes se manifestam, pelo eterno retorno do mesmo.
Concepção estranha e de difícil compreensão. É como se todo ente tivesse como condição ontológica a vontade de poder. Quer dizer, não se atinge nunca um fim, não há apaziguamento, e sim a vontade de poder que se distende sempre e nunca é satisfeita. Isso porque é impossível não haver obstáculos, e é covardia sucumbir a eles.
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