Poucas vezes uma adaptação de livro fez tanto sucesso como "Ainda estou aqui". Vi o filme, depois li a obra de Marcelo Rubens Paiva. Evidente que são duas linguagens, duas artes em tudo diferentes, cada qual com seu impacto, cada qual com sua mensagem.
Se tivesse que decidir diria: primeiro veja o filme, depois leia o livro. A notoriedade, as premiações tornaram Walter Salles e Fernanda Torres pessoas incensadas pela mídia, torcidas se formaram no país antes chamado de "país do futebol", alvoroço geral, que um dia termina e vai parar na TV paga. O livro, cuja primeira edição tem dez anos (2015), no país de pouca leitura, acabou sendo reimpresso treze vezes.
Uma casa, uma mãe, seus cinco filhos, a prisão do pai em 1971, ex-deputado cassado em 64, a prisão por doze dias da mãe, incomunicável, sem saber a razão de seu sequestro. Libertada, enfrenta o entra e sai de vigias na casa fechada e guardada. Onde antes havia uma família realizada e unida, o olhar resignado de Eunice na cena da confeitaria dirigido às pessoas na mesa em frente em contraste com a dela agora desfeita. Essa é a história que Salles apresenta: a luta de Eunice capaz de enfrentar e exigir a verdade acerca do paradeiro do marido, uma luta que só teve fim com o fim da ditadura, finalmente o atestado de óbito em mãos.
O livro: o escritor Marcelo Rubens Paiva nada tem de pretencioso, nem de estritamente literário, mas a escrita é honesta, sem firulas, um memorialista que não só denuncia crime e tortura, ele analisa a relação com a mãe, sincero, desapaixonado, mira ora um lado ora outro da história, se indigna por que razões o pai não foi cauteloso e levou toda a família para o exílio como outros fizeram?
O escritor Marcelo Rubens Paiva
O Doi-Codi era implacável, ser fichado, preso, torturado e morto, o corpo desaparecido, a narrativa forjada de que o pai fugira. Quem era o inimigo, para perseguir quem? Os comunistas. Quem eram os comunistas? Marcelo responde: "um bando de golpistas e fascistas" (atentar para os adjetivos...). O que levou o pai à prisão? Cartas que duas mulheres trouxeram após visitas a parentes exilados no Chile, cartas escondidas no corpo, e num envelope o número do telefone da casa de Rubens Paiva. Foi levado preso, torturado durante 24 horas, pedindo socorro e seus medicamentos. Uma carta... E tudo isso para salvar o país dos comunistas...
Marcelo tinha apenas 11 anos, foi levado para um sítio. É da perspectiva dele que Eunice se mostra distante, viúva aos 42 anos, teve que trabalhar, o filho lembra dela lendo, lendo sem parar, obcecada pela magreza, formou-se em direito, viveu da profissão, defensora da causa indígena, colaboradora com a política preservacionista do Banco Mundial, tudo isso o escritor aprova: "ninguém queria uma mãe num luto eterno". Pelo menos o atestado de óbito! Este veio em 1996.
Há páginas contundentes contra a violência da tortura, com ditadura longa e cruel. O mais tocante é a experiência dos filhos anos mais tarde com a doença incurável de Eunice, o mal de Alzheimer. Como pode alguém atuante, leitora, advogada de sucesso, perder tudo isso? A descrição no livro é detalhada, pungente, a decadência mental, a confusão, apenas alguns lapsos em poucos momentos, o breve sorriso quando o neto, filho de Marcelo, é posto em seu colo. Um breve sorriso. O sentido do título do filme/livro se esclarece, mesmo no estágio III (são quatro estágios) da doença, a mãe ainda está aqui. Ainda que por instantes...
Nenhum comentário:
Postar um comentário