quarta-feira, 26 de março de 2025

O sublime e a sublimação

 O nascer da lua cheia, o pôr do sol, o murmúrio das águas de um regato, os pingos de água da chuva que permanecem dependurados nas folhas, o sorriso de uma criança, tudo isso nos parece sublime, nos impressiona, nos inspira.

Mas é no território da arte que o sublime se destaca como qualidade inerente, que transmite plenitude, a arte é florescência da vida para Schopenhauer (1788-1860), manifestação da Vontade, sendo esta a pulsão presente em todos os seres, a necessidade de se expandir, em tudo o que se mostra, em tudo o que vive, desde a força mais íntima do ser humano, até o mais minúsculo animal, há Vontade, uma engrenagem geral de todos os seres. 

As formas de expressão do sublime são a música, a melodia que conecta do começo ao fim, por meio dela a consciência se esclarece, sendo a linguagem da música universal. O artista frui o belo, a arte consola, o artista entusiasmado esquece a penúria da vida, que para Schopenhauer é sofrimento, como se fosse um receptáculo sem fundo, o desejo satisfeito é imediatamente esquecido por outro desejo, por outro impulso, sem fim. "A ausência de satisfação é sofrimento, a ausência de novo desejo é o tédio". Assim, é na arte que é possível buscar satisfação e refúgio, um desdobramento da Vontade. A poesia, a arquitetura, a pintura, elevam, o sentimento do sublime preenche, e sublime é o objeto que causa essa sensação de plenitude.


Santa Cecília, a beleza humana, visão que arrebata.


Enquanto para Schopenhauer o sublime satisfaz, preenche, para Freud a sublimação, que deriva de Erhabenheit, tal como para o filósofo, para Freud tem outra conotação, muito diferente, poderíamos dizer que lembra contenção, substituição. Sublimação é a dedicação ferrenha a alguma atividade que aparentemente nada tem a ver com a libido, com o impulso sexual, com o instinto. O prazer sexual é canalizado por uma atividade que proporciona prazer, em tudo diversa do objeto de desejo, da pulsão. O que não implica desvalorizar esse diversionismo, pois muito poucos, segundo o psicanalista, têm êxito no desvio dos impulsos para finalidades culturais mais elevadas. 

Tanto para Schopenhauer como para Freud, a pulsão é determinante, para o primeiro a necessidade de se expandir sendo o sublime o mais alto grau; para o segundo, o desejo, o instinto e a busca de prazer, podem se dar até mesmo sublimados. A diferença está na relação do sublime com o enlevo da arte, para o filósofo. Mas a insatisfação é a pedra de toque para ambos.

De que matéria, afinal, somos feitos?

sexta-feira, 14 de março de 2025

A nação do baixo calão.

 Discursos célebres enaltecem o papel da democracia, da justiça e da legalidade. Péricles, século IV a. C., destacou a importância da liberdade, do mérito, da obediência às leis, que se deve cultivar o refinamento sem extravagância, sensibilidade sem ostentação, riqueza sem precisar exibi-la, opinar sobre todos os temas, as discussões devem ser preliminares para a ação prudente e sábia.

Abraham Lincoln, em meio à guerra civil, homenageia os mortos, que sua morte não foi em vão, que a nação venha a gerar uma nova Liberdade e que o governo do povo, pelo povo e para o povo jamais desaparecerá da face da terra.

Martin Luther King, em 1963, clamou para o sonho de que a condição do negro fosse a mesma dos brancos, obediência à constituição que garante os direitos, liberdade, a "busca da felicidade", a justiça racial.


Quanta diferença, que enorme contraste com as falas, as agressões, os vitupérios e as respostas torpes, estarrecedoras, que dão uma surra na língua portuguesa, como se lê em rápida pesquisa no Face. De um lado e de outro adjetivos para se referir ao atual e ao ex-presidente, afirmações vergonhosas, inadmissíveis para a moral e a inteligência.

O Presidente da República resolve responder a um malandro desbocado, filho de ex-presidente, e cai na sua própria armadilha. O presidente entende que beleza nas mulheres é fundamental? O poeta, Vinícius de  Moraes pediu licença às feias quando clamou que a beleza é fundamental. Licença poética que não cabe na boca de um mandatário. Pois bem, nas baixarias desse rapaz, desponta um termo que não vou repetir, e que não só ofende, mas também expõe o machismo decadente de uma geração. O próprio pai desse moleque em vários pronunciamentos descambava para as bravatas e asneiras.

O desdobramento é ainda mais patético, com a ampla divulgação e rastreando dessas "discussões", ficamos informados de que o presidente do Senado, sentindo-se ofendido com referências torpes veiculadas por certo senador, responde com a ameaça de destituí-lo. Com medo, ato contínuo o senador se retrata. 

Quem diria que a escolha de certa mulher para um ministério, sua beleza ou feiura rendessem tanto!

A grandeza de uma nação medida pelo baixo calão.

domingo, 9 de março de 2025

Em busca da autenticidade

 "Autêntico" vem do grego, a junção de autos (a si mesmo, para si mesmo), com hentes, aquele que faz. Autêntica seria, então, a pessoa que age com seus próprios meios, com seus próprios recursos, sem apelar para outrem. Autenticidade significa que algo é próprio, apropriado, que se sustenta sem estímulo externo, independente, capaz de autogestão.

O contrário seria então algo copiado, imitado, dependente, que não se sustenta.  Seria alguém carente da opinião alheia, que necessita de aprovação, que segue a onda e a moda, inseguro, volúvel.

Há quem sustente que a autenticidade inexiste, pois tudo se transformou ou se transforma a todo momento, que tudo é cópia, simulacro, que "nada se cria, tudo se copia", que ninguém inventa nada do zero, que tudo está à disposição, pronto para o uso imediato, ou com arranjos aqui e ali, tentativas canhestras de renovação, de reinvenção.

Ao contrário, na arte a autenticidade é território privilegiado. As artes plásticas, a música, o cinema, carregam mensagem, requerem interpretação. A arte produz, tem efeito estético e transformador, abre para novos insights e perspectivas. Duvidar da autenticidade de uma obra de arte evidencia que para ela a autenticidade é essencial.

Outro território próprio à autenticidade é o dos valores. Não o valor utilitário e sim o valor de uma pessoa, de seus projetos, de sua ação. A pessoa autêntica não precisa de subterfúgios, nem de justificar suas ações o tempo todo para os outros com desculpas, muito menos para si mesmo. A pessoa autêntica não dissimula, ela se expõe integralmente para seu próprio julgamento, para sua própria avaliação, sem camuflar.

A autenticidade pode ser buscada inclusive em certos modos de produzir que dispensam o carimbo de uma marca. Produtos autênticos: o pulôver tricotado para presente, não possui etiqueta; o bolo de polvilho na receita antiga, não vem embalado; legumes, frutas e verduras direto do produtor, sabor local é seu único carimbo.

Entrega do leite, a marca? A da confiança.

A autenticidade rareia, há uma busca desenfreada pela exposição de si, pela idolatria, imitar é o padrão. No supermercado importa marca, preço e qualidade; a autenticidade seria a origem rastreada? 

Um outro gênero de inquietude nasce do cuidado que o homem emprega em fingir e em jamais se deixar ver tal como é: é o caso de muitas pessoas, cuja vida é só hipocrisia e comédia. (...) Que segurança pode oferecer uma existência passada sob uma máscara? Que encanto, ao contrário, na espontânea simplicidade de um caráter que desconhece os ornamentos artificiais e que despreza disfarçar-se! (Sêneca, filósofo estoico, condenado por Nero ao suicídio, ano 65).



domingo, 23 de fevereiro de 2025

Educar não é doutrinar

No diálogo de Platão, "Alcibíades I", Alcibíades aconselha-se com Sócrates a fim de se tornar um bom governante de Atenas, preparar-se para entrar na vida pública, ele é ambicioso, e precisa, segundo o mestre estar preparado, Alcibíades ainda desconhece a noção de justiça. O primeiro passo é conhecer a si mesmo, saber que nada sabe, estar aberto à dúvida, ao diálogo. Merecer a liberdade cabe aos virtuosos, com a ajuda do mestre ele aprenderá o que é ser livre. Se quer cozinhar, precisa aprender, se quer navegar, precisa aprender, é preciso confiança, argumentação, apresentar questões, nunca impor uma solução, uma única visão, capacitar para as interpretações.

A mais nefasta ignorância é a "dos que não sabem mas pensam que sabem" (Platão, in: Alceabíades I).

Cuidar de algo ou de alguém é melhorar, aperfeiçoar, conduzir crianças e jovens para a autonomia, para o autoconhecimento. A educação do jovem para a prática da justiça, sabedoria, compreensão do todo, ser livres, se opõe à doutrinação, pois esta escraviza, é unilateral, deforma, desvirtua.

Vejamos um exemplo recente em "As contribuições teórico-metodológicas de Lênin e Gramsci para a educação contemporânea" (in Revista Percursos, 2024), considerados "pensadores atuais para pensar a crise do capitalismo, lutar contra as forças reacionárias e conservadoras que visam sustentar o sistema imperialista". Lênin morreu em 1924, Gramsci em 1937, ainda assim "atuais"? O ensino deve ser "geral e politécnico", prossegue o autor, "educar para o trabalho, para uma sociedade dirigida pelo proletariado, a cultura de massas, ensinar técnicas de trabalho modernas, ensinar os alunos a se organizarem para transformar e dirigir a sociedade", lições leninistas.


Discurso de Lênin, Revolução 1917


Lições de Gramsci: trabalho, revolução, contra a repressão da classe dirigente, de modo dialético, criativo, formação científico-profissional e sócio política do intelectual orgânico, criação de um "terreno ideológico", reformar consciências, conduzir a sociedade não só pela força, mas pela direção intelectual e moral, baseada na mais moderna filosofia da práxis. Segundo o próprio autor do artigo, o imperialismo é culpado pela migração, ambiente (sic), violência. A educação das classes trabalhadoras deve levar à "fundação de um novo Estado", "construir uma consciência política", "romper com o capitalismo e seus derivados (o trabalho explorado, a devassa do planeta, as desigualdades e injustiças, o racismo, o machismo, o imperialismo e todas as formas de dominação) construir uma sociedade integral civil e política".

Pausa para respirar. Em resumo, seria educar soldadinhos para que eles possam substituir o capitalismo e o imperialismo por uma sociedade integral que livrará o mundo de todos os malefícios acima citados. O ensino técnico sepultará o capitalismo e o imperialismo.

Então, no lugar do capitalismo e do imperialismo surgiria uma nova classe dirigente? Seria a dos trabalhadores, os empregadores seriam varridos do mapa? Nessa sociedade dirigida pelo proletariado, haveria apenas dirigidos, sujeitados ao trabalho, ao ensino técnico? Por quem? Proletários mandando em proletários, modernamente todos eles capacitados para o trabalho...

Note-se que não há nenhuma menção à liberdade, à ascensão social, nem à situação de países que supostamente se livraram do capitalismo, nem que o comunismo tenha sido e seja cruel, responsável por ditaduras, pela opressão, pela censura. 

Esse tipo de educação ideológica que vê dois inimigos, capitalismo e imperialismo, leva à abominação de todo um sistema global sem oferecer uma crítica efetiva e coerente. Analisar a realidade, apontar sim injustiças, mostrar que os discursos salvadores só servem para os próprios locutores, que há valores, como o de ser livres e autônomos, que há um sistema produtivo, inovador, um irrefreável avanço tecnológico, e que um dos benefícios da modernidade é a possibilidade de comunicação, de circulação de ideias, de responsabilidade social.  Nas sociedades democráticas há debate e confronto de ideias, é possível e salutar denunciar todo tipo de opressão, em especial no caso da educação, a implantação de ensino para "reformar consciências", com palavras de ordem fáceis de digerir retiradas das ideologias de Lênin e Gramsci. 




quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

A incansável alma humana

 Desde os primeiros balbucios da fala, o uso de toscos instrumentos, grupamentos em aldeias, houve uma evolução impressionante até a linguagem computacional, a exploração espacial e mísseis teleguiados. Milênios da história humana se passaram. 

Contrastes há até hoje: tecelões e artistas produzem ao lado de fábricas automatizadas, o carrinho de mão serve ao mesmo tempo que automóveis conduzidos por robôs fazem sua estreia. Há vilas e aldeias nas quais casas não precisam de grades e alarme, mas a segurança é cada vez mais reforçada nas cidades, nos prédios, nas ruas vigiadas por câmeras. Há neste instante um salvamento heroico e um covarde ataque a uma escola. O saber é transmitido por meio de livros, das cátedras, um poeta inspira, enquanto um grupo se arrisca em prédios para pichar as paredes com garatujas indecifráveis. O caminhão recolhe o lixo, garis se equilibram na traseira, um deles sorri para um passante, na outra ponta entulhos são despejados em terrenos, da janela de um luxuoso automóvel um papel de embrulho é jogado fora, na praia a família deixa para trás sacos plásticos. Um fiel se ajoelha e reza, faz seus pedidos, no mesmo templo um projétil é lançado porque aquele não é o seu deus. No mesmo globo, a diarreia mata, na outra ponta a ciência busca a cura para o câncer.  Em um campinho meninos se reúnem para uma pelada, no outro lado a disputa pelo Superbowl, com ingressos a 40 mil reais. 



Alçar voos, engrandecer, enveredar por caminhos, subir montanhas, estabelecer contatos, navegar, explorar novos povos e civilizações, a aventura humana não mais tem o privilégio do pioneirismo. Cada pedaço desse planeta já foi ou está sendo mapeado. Isso não resultou em respeito e nem direito de um povo de se autodeterminar e nem de se estabelecer. O mundo é um só, mas sem nenhuma organização forte o suficiente, respeitável, com legítima autoridade, com força e poder para se fazer ouvir e tomar decisões acertadas, equânimes. Pelo contrário, a política internacional segue por caminhos tortos, perigosos, irresponsáveis. Desde primórdios houve guerra de conquista, dominar, invadir, restabelecer fronteiras, conquistar, essa história se prolonga até a atualidade.

Morro carioca dominado pelo tráfico, zumbis no centro de São Paulo, o usuário de cocaína na casa noturna refinada de alguma cidade onde a riqueza e a ostentação são a regra: duas pontas que no fim se unem e que são comandadas pelos produtores e pelos chefes do narcotráfico. A matéria prima do fentanil, por exemplo, droga que alivia a dor mas vicia e mata, é produzida na China, traficada para os Estados Unidos. Produtos que beneficiam, produtos que sabidamente viciam, importa apenas vender, fazer preço, exportar. Dane-se o uso. 

Não vamos aprender nunca?! A estrutura mental oscila entre Eros e Thanatos, entre o prazer e a dor, entre a realização e a destruição, entre a sanidade e a loucura, entre a vida e a morte. Esses são os parâmetros mais gerais e indestrutíveis da alma humana. Em busca de solução e do sábio meio termo, pressionados por ambição, poder e glória, prosseguimos, bilhões de vidas formigando num planeta solitário. Pode ser que a sabedoria um dia seja a prática entre políticos, chefes, mandatários; pode ser que líderes religiosos conduzam crentes por caminhos de mútua compreensão; pode ser que as bases da educação beneficiem crianças e jovens no mundo todo; pode ser que a arte, a música e o lazer sejam compartilhados por muitos; pode ser que o fanatismo seja desmascarado; pode ser que esquerda e direita não sejam a única opção.

Pode ser, a alma humana é incansável. 


sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

O mito do herói

 As epopeias narram os feitos heroicos, Hércules, Teseu que venceu o Minotauro, Rômulo, Édipo. Há aqueles cujos feitos são históricos, como Moisés abandonado quando bebê em um cesto no Nilo, foi salvo, quando adulto conduziu seu povo para instaurar o monoteísmo.

Se hoje mencionamos feitos de um herói, salvo situações de salvamento, de luta em guerras de defesa, o que sobressai é muito mais o mito do que o heroísmo. Ao redor do mundo há dezenas de dirigentes que pretendem se perpetuar como mitos, quer dizer, fabulosos, capazes de se manter décadas no poder por meios tornados por eles próprios legítimos, no mais das vezes à revelia dos governados. Kim Jong-un recentemente mandou 11 mil soldados para ajudar o outro ditador, Vladimir Putin na guerra contra a Ucrânia, 4 mil morreram ou ficaram feridos; Lukashenko que se perpetua no poder na Bielo Rússia "silenciando" opositores; dezenas de mandantes que oprimem populações na África; eleições são fraudadas na Venezuela pelo chefete Maduro. Enfim, parece que as condições atuais na política mundial estão e permanecerão trágicas.



11 mil soldados norte-coreanos obrigados a lutar na guerra de Putin contra a Ucrânia.

Acresce que esses mandatários se consideram mitos, acima da lei, poderosos, oprimir seu povo não os abala. Mas, e se alguém renomear tal tipo de poder, renomear uma guerra de conquista como "ridícula"?

"Pare com esta guerra ridícula", a condenação feita por Trump a Putin reduziu toda e qualquer chance de considerar expansão de território da mãe pátria Rússia, saudosa da União Soviética, como conquista,  foi qualificada como teatro, circo, com a dimensão da piada. Ninguém ainda tinha pensado nisso, Putin como palhaço, ridículo, o oposto do herói mítico. Mas perigoso. Cômico se não fosse trágico, como se costuma dizer. Ditadores sanguinários se atribuem o poder de praticar injustiça e crueldade, expandir seu território sem considerar a soberania de um povo, a legitimidade do poder, opositores são envenenados. Seria "mito" no sentido de mistificador e não no sentido heroico.

Pior,  esses mandatários recebem apoio, tapinhas nas costas; sem levar em conta a situação histórica, prevalece o véu do autoengano, atêm-se a certo partido, a certa ideologia, o seu lado é sempre o do bem, o único verdadeiro. Resultados: divisão profunda, recusa de raciocinar, de acolher a realidade e suas implicações, indagar razões, apoiar-se em argumentos, trabalhar à luz dos fatos. 

Dirigentes ao redor do mundo perderam o passo, há atraso, insistência nos erros, censura, cegueira para os acontecimentos, seus juízos saem de sua própria cabeça, sem base alguma em análises, ocultam, prejulgam, seu olhar é sempre enviesado, torto. 

Sem deuses e heróis, sem epopeias para narrar, restam poucas conquistas, e sobram sofrimento, perseguição, aposta na desinformação conscientemente praticada,  mortandade em nome de um profeta, ilusão, acusações mútuas, ressentimento, ódio.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Nietzsche e o sentido de "Deus está morto"

 Uma das frases mais famosas  da História da Filosofia é a de Nietzsche em seu anúncio da morte de Deus. O que isso significa, por que escandaliza e faz dele um autor "perigoso"?

Há que compreender as razões, o filósofo se considera o "primeiro imoralista", que dizer, destruidor de ídolos a marteladas, como o deus Dionísio, deus do devir, das transformações, inspirador da arte. A recusa de um ideal e pôr em seu lugar o real, livrar-se do sufoco da fé que cega, caminhar por si, com suas próprias forças, superar as dificuldades por meio de sua vontade, esses são os meios para a vida, uma luta em que se conta com as condições terrenas, com a capacidade de reagir. Isso Nietzsche experimentou com o sofrimento por doença, dores de cabeça terríveis, mas ele reagiu e assim se tornou mais forte. 

Fraqueza seria renunciar ao que podemos contar aqui, com as condições que se nos apresentam, as condições da terra, o que terreno fortalece, ele põe a vida em lugar do mundo espiritualizado, da cultura banalizada.

Os espíritos livres são doadores de sentido, isso torna compreensível o slogan "Deus está morto", que implica na recusa de desejar alguém que mande, "um Deus, um príncipe, uma classe, um médico, um confessor, um dogma, uma consciência partidária", afirmou Nietzsche. É um adoecimento da vontade esse "tu deves", o fanatismo que hipnotiza os fracos e inseguros, o sentimento de culpa, o medo, o temor da condenação da alma. Essas são convicções, não ocorre às pessoas livrar-se desses sacrifícios para resgatar sua liberdade e autoconfiança. Quanto menor for a vida vibrante e atual, maior a necessidade de Deus salvador, das promessas da vida eterna. 

Para ele, a morte de Deus representa o maior dos acontecimentos, a morte das crenças e da moral europeia, essa morte seria uma nova aurora, caminhos abertos para navegar e enfrentar todo perigo, sem a tortura do mal e do pecado, quando o que se tem é a natureza humana, em que há sofrimento. A não aceitação do sofrimento produz o desejo de redenção, de salvação, resultados do orgulho humano, de o próprio homem se considerar um Deus.

Como seria então para Nietzsche uma vida vibrante e "terrestre"? 

A busca do autocontrole, do silêncio e solidão, como ele próprio gostava, caminhar, contemplar do alto de montanhas . O mesmo acontece com o homem comum quando busca a paz de espírito, a nobreza da aceitação, do "é assim mesmo", a necessidade da elevação de si, a compreensão de que suportar o mundo real não é uma condenação que precisaria da redenção à vida eterna para a alma imortal. Importam as condições do mundo real. 

 Nietzsche apreciava caminhar no silêncio e solidão de Sils Maria, pequena cidade Suíça. 


Para quem pensa é mesmo indelicado supor Deus, um obstáculo para todos aqueles que não veem sentido algum na salvação; faz sentido alimentar a vida, dançar, alegrar-se, dar valor ao corpo, aos desejos, livrar-se do sentimento de culpa, os desejos não são impuros.

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Ser "espírito livre", deixar o rebanho, parece cada vez mais complicado. Em nossos dias vemos hordas e mais hordas a gritar e a ameaçar, pessoas que veneram não só ídolos, mas o ideólogo do momento, o partido do momento, o retorno ao poder, o guru da moda. O grande perigo, afirmou Nietzsche, e isso vale inclusive para a atualidade, é quando a religião não opera para educar, disciplinar e passa às mãos obcecadas de tiranos que consideram sua crença como superior, única e suprema verdade. E, em nome de sua crença, perseguem, castigam, oprimem e matam.