Um ativista é morto com tiro no pescoço ao expor suas ideias em espaço universitário; movimentos de massa são comandados por palavras de ordem; um julgamento, tal qual juízo final é conduzido por salvadores da pátria; a pressão política vem camuflada sob argumentos jurídicos; extremistas se empurram, se acusam e acuam uns aos outros em campos opostos, como verdadeiros inimigos.
Em meio a esse caos em que tudo tem a aparência de ordem, até mesmo a clareza do raciocínio serve aos ideólogos, o argumento baseado em fatos sofre pressão, não custa voltar ao Grande Irmão do livro premonitório de George Orwell, 1984. Citado, parodiado, enaltecido, merece ser lido ou relido. Tudo o que se conhece como civilização é destruído, há patrulhas em todo canto, a verdadeira força não vem dos exércitos e sim da conversão do pensamento e da linguagem. A Política do Pensamento, a invenção da Novalíngua que diz: Guerra é Paz, Liberdade é Escravidão, Ignorância é Força, empurra todos para a obediência, para a cegueira ideológica.
Vive-se em nosso país sob essa cegueira ideológica, que escraviza e compromete a integridade e a liberdade. Duas pontas de um mesmo cordão, a multidão insuflada e presa à imagem de liderança construída para se opor à outra imagem, de outra liderança, resultou em duas situações políticas, de direito e de fato, institucionalizadas, dois polos que se enfrentam pelo poder. Há mais ódio do que busca de entendimento, mais acusações mútuas do que sensatez e argumentos, mais lama jogada de um lado para o outro e arbítrio, do que compreensão baseada no justo meio, na inteligibilidade, na razoabilidade.
O condutor de massas, imbuído de missão salvadora, investido de uma mística, não é desvendado, não se aponta para suas fraquezas e insuficiências, e, principalmente, seus erros. Investido dessa mística ele eleva o tom, e o clamor de multidões não cessa ao ponto da quebradeira que acabou por justificar e dar voz aos justiceiros. E pior, o tribunal que investigou e condenou esse messias, não fez justiça, ludibriou, controlou, manipulou. Consequência, a mística se fortalece, a multidão agradece pois sua causa fica demonstrada. Trata-se, é claro, do ex-presidente.
Acima de tudo e de todos foi imposta, votada, anunciada a versão final dos fatos pelo juízes que dão a cartada final. Uma versão que agride o senso de justiça e que acaba por agigantar a mística: "tentar" deve ser entendido, na Novalíngua suprema, como executar, como ato realizado. O novo significado de "tentativa" é "realização". Assim, se alguém diz "tentaram roubar meu carro" = "roubaram meu carro"; "houve uma tentativa de escalar a montanha" = "a montanha foi escalada", e assim por diante.
Voltando à obra 1984, o Grande Irmão obrigou pessoas a trabalharem em versões diferentes dos fatos, selecionam uma ou outra, usam referências cruzadas "e então a mentira escolhida passaria para os registros permanentes e se tornaria verdade" (97-98).
Quem pacificará os ânimos? Como seria viver sem tutela? Qual o preço da idolatria? Quando a massa governável e manipulável acordará?